Existe um dia no ano, geralmente no final de setembro, em que alguns dos profissionais responsáveis pela produção da vacina contra a gripe do Butantan chegam ao trabalho antes mesmo do amanhecer. Em uma das salas da Fábrica da Influenza, diretores, gerentes e coordenadores acompanham atentos a reunião de divulgação das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a composição do imunizante que deverá ser utilizado na próxima campanha contra a gripe. Imediatamente após o anúncio, é dada a largada para a fabricação das 80 milhões de doses do produto que irá proteger os brasileiros das possíveis complicações causadas pelo vírus influenza.
“No mês de início da campanha nacional de imunização, os esforços precisam começar simultaneamente em todos os estados do país. Por isso, tudo precisa ser milimetricamente calculado e organizado para que as primeiras entregas ao Ministério da Saúde aconteçam ainda em março. A produção da Influenza é uma engenharia complexa, pois nada pode sair do previsto”, explica o diretor técnico de produção do Butantan, Douglas Macedo. São cerca de sete meses de trabalhos intensos, com colaboradores e colaboradoras revezando-se 24 horas por dia para processar os mais de 500 mil ovos – matéria-prima utilizada para o desenvolvimento da vacina – que chegam diariamente à fábrica.
Banco de cepas utilizadas na produção da vacina contra a gripe
Um imunizante, muitas particularidades
Para garantir uma proteção eficiente, a composição da vacina da gripe precisa ser atualizada anualmente. Às vezes, a composição do imunizante não varia de um ano para o outro; outras vezes, pode mudar uma, duas ou até as três cepas da vacina trivalente. Isso porque o vírus influenza – agente causador da doença – se multiplica e evolui rapidamente, fazendo com que mutações surjam com certa frequência: são as tão faladas novas cepas.
“Essas evoluções são naturais. Elas podem tanto apontar uma eficácia das vacinas aplicadas nas campanhas anteriores, como uma eficácia de infecção pelo novo vírus. É uma dinâmica bastante complexa”, explica o gerente de Desenvolvimento e Inovação de Produtos do Butantan, Paulo Lee Ho.
A OMS faz um monitoramento contínuo em todo o globo para entender quais são os vírus influenza que mais estão circulando em cada um dos hemisférios. Cerca de seis meses antes do início da temporada de frio, período de maior transmissão viral, a entidade anuncia quais as três principais cepas que devem estar na composição dos imunizantes.
A vacina sempre contém dois vírus do subtipo A, até o momento H1N1 e H3N2, encontrados em várias espécies de animais e capazes de infectar humanos, sendo os responsáveis por grandes pandemias. Além desses, outros vírus A de origem animal podem infectar humanos e causar quadros graves da doença – caso do H5N1, que tem afetado milhares de aves silvestres nos últimos tempos. Completa a formulação um vírus do tipo B (atualmente da linhagem Victoria), que infecta apenas seres humanos e pode desencadear epidemias sazonais.
É por isso que as vacinas são chamadas de “trivalentes”. Durante a fabricação do imunizante, cada uma dessas cepas dará origem a um monovalente, que deve ser produzido individualmente por questões de qualidade e segurança. Depois de prontos, os três monovalentes são, enfim, combinados e envasados.
Existem, também, as vacinas quadrivalentes, até o momento disponíveis apenas na rede privada de saúde e que incluem uma cepa extra do tipo B, da linhagem Yamagata. Entretanto, todos os vírus influenza B circulantes detectados pelas OMS entre fevereiro e agosto de 2023, como nos últimos anos, pertenciam apenas à linhagem Victoria – contemplada na versão trivalente do imunizante.
A vacina do Butantan traz duas cepas de Influenza A e uma cepa de Influenza B
Agilidade e expertise
Neste ano, a reunião da OMS aconteceu às 4h da manhã (horário de Brasília) do dia 29 de setembro. As cepas recomendadas para as vacinas trivalentes feitas à base de ovos, caso do produto do Butantan, foram as seguintes: A/Victoria/4897/2022 (H1N1); A/Thailand/8/2022 (H3N2); e B/Austria/1359417/2021 (B/linhagem Victoria).
Mesmo prevendo a substituição das cepas H1N1 e H3N2 – detalhe que poderia adicionar camadas de complexidade a uma cadeia de produção repleta de especificidades –, horas depois do anúncio o Butantan já iniciava a fabricação da sua mais nova e atualizada vacina contra a gripe.
“Nossa preparação já começa semanas antes ao anúncio, quando selecionamos as possíveis cepas que poderão ser indicadas e que temos disponíveis no nosso banco biológico. Também organizamos as documentações necessárias e revisamos todos os materiais. A ideia é fazer tudo com calma e tranquilidade, para evitar erros e dilatar nosso prazo produtivo ao máximo”, conta Douglas Macedo.
Por mais que a substituição da H1N1 tenha se confirmado há pouco para o Hemisfério Sul, a cepa chegou ao Instituto em março de 2023. “Quando saiu a recomendação para o imunizante do Hemisfério Norte, em fevereiro deste ano, vimos que ela havia mudado e já importamos a amostra. Por mais que nem sempre se confirme, são altas as chances de uma cepa que esteja com alta circulação por lá também chegar aqui. Ficamos sempre alertas, é uma questão estratégica e de inteligência”, afirma Paulo Lee Ho.
Em abril, alguns lotes do monovalente A/Victoria/4897/2022 (H1N1), foram produzidos para que a equipe pudesse atender demandas comerciais, já que o Butantan fornece a vacina influenza trivalente para alguns países do Hemisfério Norte.
“Este ano, por exemplo, teremos que importar a nova cepa de H3N2 e ainda não sabemos qual rendimento ela terá. Ou seja, podemos demorar mais ou menos do que o esperado para atingirmos o volume necessário do insumo farmacêutico ativo [IFA]. É por isso que qualquer dia que temos a mais no nosso cronograma é de extrema importância”, conta Douglas.
Por conta dos prazos de importação, o monovalente referente à H3N2 será o último a entrar na escala produtiva. “Começaremos pela cepa H1N1 e depois seguiremos com a cepa B. É o tempo exato da nova cepa chegar ao Butantan, desenvolver os bancos de vírus e, assim, produzir o terceiro monovalente que compõe o imunobiológico”, completa o diretor da produção.
A expectativa é que no início de fevereiro de 2024 os primeiros lotes da versão atualizada do imunizante já estejam na etapa de formulação e envase, seguindo para entrega final ao Ministério da Saúde no mês seguinte.
A partir de abril, as doses do imunizante já estarão disponíveis nas salas de vacinação de todo o Brasil
Campanha Nacional de Vacinação contra a Influenza
A gripe é uma doença provocada pelo vírus influenza, capaz de provocar infecção aguda do sistema respiratório. Com alto potencial de transmissão, pode desencadear epidemias e até pandemias, como a registrada no ano de 2009 por uma cepa do vírus H1N1.
Todos os anos o Ministério da Saúde organiza a campanha nacional de vacinação, com foco nas crianças de 6 meses a 6 anos de idade, gestantes, puérperas, povos indígenas, trabalhadores da saúde, idosos com 60 anos ou mais, professores das escolas públicas e privadas, pessoas com doenças crônicas não transmissíveis e outras condições clínicas especiais, pessoas com deficiência permanente, profissionais das forças de segurança e salvamento e das forças armadas, caminhoneiros, trabalhadores de transporte coletivo rodoviário de passageiros urbano e de longo curso, trabalhadores portuários, funcionários do sistema prisional, adolescentes e jovens de 12 a 21 anos de idade sob medidas socioeducativas e população privada de liberdade.
Esse público-alvo corresponde a mais de 80 milhões de pessoas e a meta é vacinar 90% de cada um dos grupos elegíveis. O objetivo é minimizar a circulação do vírus, além de prevenir o surgimento de complicações decorrentes da doença e evitar uma possível sobrecarga dos serviços de saúde.
Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Comunicação Butantan