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Pressão predatória pode moldar comportamento de defesa e outras características das serpentes insulares, mostra pesquisa do Butantan

Estudo foi conduzido nas ilhas da Queimada Grande e de Alcatrazes, no litoral paulista, e abre caminhos para uma melhor compreensão evolutiva de espécies endêmicas


Publicado em: 29/09/2025

Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Marília Ruberti/Comunicação Butantan; Karina Banci e Otavio Marques

Uma pesquisa conduzida por cientistas do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEv) investigou como a pressão predatória de duas ilhas do litoral paulista pode ter influenciado não apenas o comportamento defensivo, mas também outras características de jararacas endêmicas das localidades, contribuindo com ideias valiosas sobre a evolução dessas espécies. O estudo integrou a pesquisa de doutorado da técnica de apoio à pesquisa científica e tecnológica do Butantan Karina Banci, e foi publicado recentemente na revista científica Amphibia-Reptilia.

“Testamos a hipótese de que as taxas de predação sobre a Bothrops insularis, da Ilha da Queimada Grande, e a Bothrops alcatraz, da Ilha dos Alcatrazes, seriam menores quando comparadas à da espécie continental de jararaca. Adicionalmente, o estudo avaliou o comportamento defensivo dessas serpentes em seu habitat natural”, explica Karina, primeira autora da pesquisa. 
 

Espécime de uma serpente de jararaca-ilhoa (Bothrops insularis) de cor amarelada, enrodilhada em galho de árvore na Ilha da Queimada Grande

Espécime de Bothrops insularis na Ilha da Queimada Grande (Foto: Otavio Marques)

 

Principais achados

Um estudo prévio, realizado em 2018 pelo LEEv, já havia apontado uma taxa de predação de 12% da jararaca comum (Bothrops jararaca) em um fragmento de mata contínua do continente – no caso, o Parque Estadual da Cantareira, no município de São Paulo. Essa intensa pressão predatória é exercida, principalmente, pelo gambá – um tipo de mamífero marsupial – e por diversas espécies de aves.

Na Ilha dos Alcatrazes, localizada a 35 quilômetros da cidade de São Sebastião (SP), a análise publicada recentemente pelo LEEv mostrou uma taxa de predação intermediária de 8%, sendo comparável à predação sobre jararacas em fragmentos urbanos no continente. Além das aves, a pesquisa levantou a hipótese de que um dos principais predadores da jararaca-de-alcatrazes sejam os teiús, um lagarto de grande porte que é comum na ilha. 

“Como lá não existe predação por mamíferos, é como se o lagarto ‘ocupasse o lugar’ do gambá, sendo responsável por metade dos ataques à jararaca da ilha. Existem vários relatos de teiús predando cobras não venenosas, mas também evidências de que eles possam predar jararacas na natureza”, afirma o pesquisador científico do LEEv e também autor do estudo Otavio Marques.

 

Karina Banci: mulher com cabelos morenos, camiseta preta e casaco verde em ambiente externo

Karina Banci é a principal autora do estudo. Pesquisa fez parte do doutorado da técnica de apoio à pesquisa científica e tecnológica do Butantan (Foto: Marília Ruberti)

 

Já a Queimada Grande, no litoral sul paulista, registrou uma taxa de predação praticamente inexistente, de apenas 1%. “É curioso, pois o número de aves predadoras nas duas ilhas é similar, girando em torno de 10 espécies. Porém, na Queimada Grande, apenas uma ave é residente, enquanto em Alcatrazes seis são moradoras da ilha, o que aumenta bastante as chances de encontro com uma serpente”, explica Karina Banci.

De maneira geral, em áreas onde a taxa de predação é elevada, as serpentes apresentam um repertório defensivo mais amplo, incluindo comportamentos associados à retaliação ou ao enfrentamento.

Como esperado, o estudo do LEEv confirmou que as serpentes insulares apresentam táticas de defesa bem mais restritas diante de situações ameaçadoras quando comparadas à espécie do continente: enquanto 20% das B. jararaca responderam dando bote, mais de 90% das B. insularis fugiram e o restante permaneceu imóvel; já em relação aos espécimes de B. alcatrazes, 60% fugiram e os demais não se moveram.

 

Modelo de serpente amarelada feito com massa de modelas com marcas de predação

Protótipo de Bothrops insularis, feito com massa de modelar, apresenta sinais de predação (Foto: Karina Banci)

 

Detalhes do experimento

Para realizar o estudo, os pesquisadores do LEEv criaram centenas de réplicas de serpentes com massa de modelar – um trabalho cuidadoso que envolveu misturar cores específicas para imitar o padrão da jararaca-ilhoa e da jararaca-de-alcatrazes. “Trata-se de uma técnica bastante efetiva, uma vez que observar um evento de predação de serpente em seu habitat natural é algo extremamente raro”, observa Otavio Marques. 

A fim de garantir um volume suficiente para as análises, foram confeccionados 560 protótipos da jararaca da Ilha da Queimada Grande e 200 da serpente de Alcatrazes. “Montar as réplicas foi uma etapa que deu muito trabalho e algo bastante minucioso. Para padronizar, precisamos saber exatamente quantas gramas de cada cor de massinha precisa ser utilizada”, completa Karina Banci.

 

Espécime de serpente Bothrops alcatraz, encontrado na Ilha de Alcatrazes

Espécime de Bothrops alcatraz, encontrado na Ilha de Alcatrazes, durante a condução do estudo (Foto: Otavio Marques)

 

As réplicas foram posicionadas a cada dez metros ao longo de um quilômetro de trilhas estratégicas das ilhas e fixadas com a ajuda de arames no substrato para que não fossem “levadas” pelos predadores. No caso da B. insularis, que é semiarborícola, metade dos protótipos foi fixada na vegetação.

Após 48 horas, os pesquisadores realizavam a retirada dos modelos e inspecionavam os sinais de predação: marcas em formato de “U” ou “V” correspondiam a ataques de aves, enquanto os teiús eram reconhecidos pelo formato da arcada dentária e de suas garras. 

 

Otavio Marques: homem branco, de cabelos grisalhos e óculos, segurando livro, segurando livro com árvores ao fundo

O pesquisador científico do LEEv Otavio Marques foi o orientador do estudo (Foto: Comunicação Butantan)

 

Pistas sobre a evolução das serpentes insulares

Além de elucidar a taxa de predação nas ilhas da Queimada Grande e dos Alcatrazes, bem como o comportamento defensivo de suas respectivas espécies endêmicas, uma melhor compreensão desse cenário pode apontar caminhos sobre a evolução de ambas serpentes. 

Os cientistas acreditam que as jararacas insulares descendem de uma mesma espécie: a hipótese é que há cerca de 11 mil anos, quando grandes massas de gelo derreteram, uma parcela da população “original” da serpente acabou isolada em ilhas, sob condições de sobrevivência bastante distintas.

Sem a presença de roedores nessas localidades – principal alimento das jararacas adultas do continente –, quatro das cinco jararacas de ilha conhecidas até hoje mantiveram seus hábitos de filhote, alimentando-se de presas ectotérmicas, como anfíbios, lagartos e lacraias. A única exceção é a jararaca-ilhoa, que além de ter tamanho mais avantajado, possui coloração amarelada e se alimenta de aves.

 

Pesquisadora aparece em segundo plano manejando espécime de Bothrops insularis

Karina Banci maneja um espécime de jararaca-ilhoa no LEEv (Foto: Marília Ruberti)

 

Uma explicação para que isso tenha acontecido pode ser o relaxamento da predação na Ilha da Queimada Grande. A ausência de ameaças teria permitido que a jararaca-ilhoa ficasse mais exposta, passando a subir em árvores para caçar aves e até adquirindo uma coloração diferenciada, aparentemente menos camuflada. “Nas outras ilhas, onde a taxa de predação é maior, a serpente não teve muitas opções: para sobreviver, foi preciso permanecer escondida e continuar vivendo como um filhote”, exemplifica Otavio Marques. 

Os próximos passos da pesquisa incluem a compreensão da pressão exercida pelos predadores em outras ilhas onde há espécies endêmicas de jararacas, além da avaliação da taxa de predação em réplicas com a coloração da Bothrops insularis no continente. O objetivo será entender se a cor amarelada da espécie pode atrair ou não mais predadores, como sugere uma das hipóteses.