A farmacovigilância, responsável por monitorar constantemente a segurança de vacinas e medicamentos no mercado, pode ter um papel fundamental para reconquistar as altas coberturas vacinais no Brasil. O tema foi pauta de um evento promovido nesta segunda (14) pelo Instituto Butantan, o workshop “O papel da Farmacovigilância nas coberturas vacinais”, que contou com a participação de representantes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Programa Nacional de Imunizações (PNI), da Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI) e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.
O objetivo do encontro foi discutir ações para aprimorar o monitoramento de eventos adversos de vacinas e para conscientizar a população sobre a segurança dos imunizantes, contribuindo para o aumento das coberturas vacinais – que têm ficado abaixo da meta para a maioria dos imunizantes do PNI desde 2016, segundo o Painel de Indicadores de Imunização do ImunizaSUS. No ano passado, a maioria dos municípios brasileiros não atingiu a meta de cobertura para vacinas do calendário infantil.
O diretor do Instituto Butantan, Esper Kallás, destacou a relevância da discussão
“Trata-se de um workshop estratégico não só para o Butantan, como produtor de vacinas, mas para o Brasil. A farmacovigilância é parte essencial do que fazemos e é uma grande satisfação poder compartilhar conhecimento com um grupo tão distinto de palestrantes”, declarou o diretor do Instituto Butantan, Esper Kallás, durante a abertura.
Também estiveram presentes a diretora médica do Butantan, Fernanda Boulos; o diretor de Matéria Médica, José Moreira; a responsável de Farmacovigilância, Vera Gattás; e a gerente de Farmacovigilância, Mayra Moura.
A diretora médica do Butantan, Fernanda Boulos, também esteve presente no evento
Para Fernanda Boulos, a discussão vem em um momento oportuno, em que se observa a queda da cobertura vacinal a nível global, e reforça a necessidade de fortalecer a confiança nas vacinas. “A farmacovigilância é a espinha dorsal de um produtor de vacinas. Compartilhar experiências e entender como podemos utilizar novas tecnologias é crucial para termos uma captura de dados e uma segurança cada vez mais consistentes”, afirmou.
No Brasil, um dos principais desafios é fomentar a participação dos profissionais da saúde na vigilância. Isso envolve incentivá-los a notificarem eventos adversos identificados em consulta, capacitá-los para dialogarem com os pacientes sobre a segurança dos imunizantes e educá-los, desde a graduação, a respeito da importância da farmacovigilância na saúde pública.
“A percepção da segurança, da eficácia e da importância das vacinas para as crianças caiu nos últimos anos no país. Um dos motivos para a hesitação vacinal é que os próprios profissionais da saúde, às vezes, demonstram desconfiança e contraindicam os imunizantes”, disse o coordenador-geral de Farmacovigilância do PNI, Jadher Pércio, mostrando que a confiança nas vacinas caiu de 93% em 2015 para 81% em 2023, segundo o Vaccine Confidence Project.
Vera Gattás, responsável de Farmacovigilância do Butantan, falou sobre o papel do profissional de saúde
Para a responsável de Farmacovigilância do Butantan, Vera Gattás, os profissionais de saúde desempenham papel importante como educadores e têm responsabilidade de ampliar a conscientização do público sobre vacinas. “E como aumentar o comprometimento desse profissional? Fazendo capacitação, informando qual é o produto que vai ser administrado, como ele funciona, qual é o perfil de segurança. O profissional tem que aceitar o produto com confiança para que possa transmitir essa confiança para o público”, destacou.
Outra peça fundamental na farmacovigilância são os cidadãos, que desde 2018 têm a possibilidade de registrar eventos adversos por meio da plataforma VigiMed, da Anvisa. O sistema, de tecnologia internacional, também pode ser usado por profissionais da saúde e produtores de vacina, e foi introduzido no Brasil após a inclusão da Anvisa no Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos para Medicamentos de Uso Humano (ICH, na sigla em inglês).
A técnica da Anvisa, Karen Fleck, contou como a agência monitora a segurança das vacinas
Junto ao e-SUS Notifica, sistema do PNI voltado exclusivamente para uso de profissionais da saúde, todos os dados do VigiMed são incorporados ao VigiBase, banco de dados global de Relatórios de Segurança da Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Nosso objetivo é ter os dados do Brasil consolidados em uma única base. Desde 2021, temos ficado acima da meta de notificações, o que demonstra a sensibilidade de nosso sistema de farmacovigilância. Isso é resultado do engajamento dos cidadãos”, ressaltou a técnica em Regulação e Vigilância Sanitária da Gerência de Farmacovigilância da Anvisa, Karen Fleck.
Também participaram do evento representantes da Fiocruz/Biomanguinhos, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e das equipes de farmacovigilância de indústrias farmacêuticas parceiras do Butantan, como Sanofi, GSK e MSD.
Experiências internacionais
A consultora independente de farmacovigilância Katharina Hartmann, ex-diretora-adjunta no Centro Suíço de Monitoramento de Medicamentos, foi uma das palestrantes estrangeiras convidadas. Com mais de 40 anos de experiência na área, ela abordou os desafios da farmacovigilância em países desenvolvidos e países em desenvolvimento.
“O ponto de virada da farmacovigilância na Europa foi a implementação do conceito E2E [de ponta a ponta] em 2012, seguindo boas práticas do ICH. Com isso, o foco passou a ser o monitoramento da relação benefício/risco e a detecção precoce de sinais de segurança para mitigar riscos, em vez de um monitoramento reativo aos eventos adversos”, explicou.
Katharina tem mais de 40 anos de experiência em Farmacovigilância e atuou no Centro de Monitoramento da Suíça
Segundo Katharina, os principais desafios em países em desenvolvimento são obter financiamento, instalar sistemas de qualidade que acompanhem e validem os dados de segurança, e ter sistemas de notificação integrados, além de criar legislações regulatórias específicas. Como ação para apoiar essas nações, ela destacou o Plano Global de Segurança de Vacinas da OMS, que fornece diretrizes e ferramentas necessárias para fortalecer os sistemas de farmacovigilância.
Outra participação internacional foi a do epidemiologista do Escritório de Segurança de Imunizantes do CDC, Pedro Moro, que discorreu sobre a experiência da organização norte-americana utilizando sistemas de vigilância passiva e ativa, dando destaque para os sistemas Vaccine Adverse Event Reporting System (VAERS) e o Vaccine Safety Datalink (VSD). O VAERS está disponível para uso de toda a população desde 1990 e recebe notificações de eventos adversos. Já o VSD é um projeto que monitora a segurança de vacinas e conduz estudos, utilizando dados de prontuários eletrônicos dos hospitais integrantes. “Isso permite detectar eventos adversos praticamente em tempo real”, disse.
O epidemiologista também contou sobre como, durante a pandemia, o CDC criou o aplicativo V-SAFE, que serviu para monitorar a segurança das vacinas contra a Covid-19 nos Estados Unidos. “O paciente se cadastrava e recebia mensagens periodicamente perguntando sobre sintomas pós-vacinação, se precisou ir ao hospital ou consultar um médico etc.”, explicou.
Pedro Moro contou a experiência do CDC com os sistemas de vigilância nos Estados Unidos
Preparação para pandemias
Aprimorar o sistema de monitoramento de segurança das vacinas também é uma forma de se preparar para futuras pandemias. O tema foi discutido pelo líder sênior de Farmacovigilância da Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI) em Londres, Alexander Precioso. A organização foi criada porque, com a pandemia de SARS-CoV-2, viu-se a necessidade de estabelecer um plano coordenado, internacional e intergovernamental para desenvolver e implementar novas vacinas epidêmicas.
Nesse sentido, um dos objetivos da CEPI é apoiar produtores de países em desenvolvimento para estruturarem sistemas de farmacovigilância compatíveis com as regulamentações internacionais, migrando de um sistema reativo para um sistema proativo, ou seja, baseado em análises de benefício e risco.
“A fabricação sustentável de vacinas em países em desenvolvimento é essencial para aumentar o acesso equitativo e para a preparação contra pandemias, conforme demonstrado pela pandemia de Covid-19 e pelo recente surto de Mpox. Para isso, o fortalecimento dos sistemas de farmacovigilância é fundamental”, apontou Precioso, que também é ex-diretor de Farmacovigilância do Butantan.
Precioso foi diretor de Farmacovigilância do Butantan e hoje atua em organização internacional para preparação contra epidemias
Farmacovigilância no Butantan
Todos os soros e vacinas desenvolvidos pelo Instituto passam pelo constante monitoramento da equipe de Farmacovigilância, seja pelo modelo ativo ou passivo. Na farmacovigilância ativa, ou estudo clínico de fase 4, uma pesquisa recruta voluntários para traçar o perfil de segurança de um produto já disponível no mercado. Essa etapa serve, principalmente, para avaliar a vacina em grupos específicos, como gestantes, imunossuprimidos e idosos – eles são mais vulneráveis e, portanto, não devem ser expostos às primeiras fases de um estudo.
Já a farmacovigilância passiva ocorre quando pessoas que tomaram alguma vacina do Butantan entram em contato para relatar eventos adversos. Esse atendimento é feito pelo Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC), por e-mail (sac@butantan.gov.br) ou telefone (0800 7012850). Os dados coletados são encaminhados à Anvisa e, dependendo da frequência e do conteúdo dos relatos, são feitas alterações na bula e outros procedimentos.
Em 2023, a Farmacovigilância do Butantan automatizou o processo de detecção de sinais de segurança dos produtos, o que permitiu uma menor intervenção humana e mais celeridade na etapa de limpeza e tratamento de dados, além do manuseio e armazenamento em plataformas tecnológicas indicadas pela Anvisa e agências reguladoras internacionais. Foram 20 documentos regulatórios encaminhados à Anvisa ao longo do ano, entre Relatórios Periódicos de Avaliação Benefício-Risco, Sumários Mensais, Planos de Gerenciamento de Risco e Relatórios de Atualização de Segurança do Desenvolvimento do Medica
Reportagem: Aline Tavares
Fotos: André Ricoy e José Felipe Batista