Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Andréa Pagnota (1,4), Janet Guardiola (2), Shutterstock (3)
Elas produzem o próprio alimento, constroem metrópoles embaixo da terra e contribuem para a saúde do solo: estamos falando das saúvas (gênero Atta), formigas cortadeiras nativas do Cerrado brasileiro. Seu principal trabalho é cortar folhas, ingrediente que elas usam para preparar um banquete exclusivo: o fungo Leucoagaricus gongylophorus.
Como a receita da vovó, o fungo é passado de geração em geração há milhões de anos e é cultivado pelas saúvas dentro do ninho. Os dois possuem uma relação de simbiose – o que significa que um não vive sem o outro. Enquanto a formiga traz folhas para alimentar e fazer crescer o fungo, o fungo serve de alimento para a formiga e para as larvas. Um equilíbrio perfeito!
Mas de onde vem o fungo e como surge o formigueiro?
Tudo começa na época reprodutiva, entre novembro e dezembro, quando a rainha passa a botar ovos especiais que darão origem às formigas aladas. Algumas são princesas, também conhecidas como tanajuras ou içás, e que mais tarde se tornarão rainhas; e outras são machos, chamados popularmente de bitus.
Nesse período, as formigas se espalham pelos céus para realizar o voo nupcial. Após o acasalamento, cada fêmea se dispersa para um local bem distante e constrói outro formigueiro do zero. Com uma pequena bolsinha chamada espermateca, ela armazena o esperma dos machos e consegue botar milhares de ovos para o resto da vida sem precisar copular novamente.
Saúvas cultivando o fungo Leucoagaricus gongylophorus
Os machos, por outro lado, concluem sua missão ao fecundar as fêmeas e não são aceitos de volta no formigueiro, vivendo uma vida curta de alguns dias. Assim, o ninho passa a ser 100% feminino – pelo menos até a próxima época reprodutiva.
Para o novo lar, o segredo do sucesso está guardado no fundo da boca da princesa: um pedacinho do fungo L. gongylophorus herdado da mãe. É assim que a rainha recém-coroada começa a cultivar o alimento que sustentará seus herdeiros por muitos e muitos anos – há registros de sauveiros (como são chamados os formigueiros das saúvas) com mais de 30 anos!
Recentemente, cientistas descobriram que a “agricultura das formigas” pode ter surgido há mais de 60 milhões de anos, como consequência do meteoro que extinguiu os dinossauros. O céu ficou todo escuro, encoberto pela poeira, e a falta de luz fez muitas plantas e animais morrerem. Isso favoreceu a expansão dos fungos e deu oportunidade para que as formigas passassem a cultivá-los e aproveitá-los como alimento, já que outros nutrientes estavam escassos.
Cidade secreta
As saúvas formam uma sociedade muito bem estruturada, onde cada formiguinha tem sua função: as jardineiras são as menores, responsáveis por cultivar o fungo e cuidar dos ovos e das larvas; as cortadeiras, de tamanho médio, cortam as folhas e as carregam até o formigueiro; já as soldados são grandes e só saem do formigueiro para defendê-lo em caso de ataque.
Reunindo centenas de milhares de moradoras, o sauveiro é sempre subterrâneo e pode chegar a até sete metros de profundidade e mais de 100 metros de comprimento. É composto por dezenas de câmaras interligadas por túneis, chamadas de panelas, e cada espaço serve a um propósito diferente – assim como os cômodos das nossas casas. As panelas vivas abrigam a “fazenda”, onde as formigas cultivam o fungo e cuidam dos ovos, e também é o local em que a rainha vive; já as panelas mortas são destinadas ao descarte de lixo, como fungo seco, talos e restos de folha suja.
A higiene, aliás, é prioridade para as saúvas. As panelas mortas são mantidas distantes do alimento e, quando o espaço fica lotado de lixo, é fechado com terra pelas formigas para não contaminar outros cômodos. Em seguida, elas cavam uma nova panela, expandindo o formigueiro.
Comunicação e trabalho em equipe
Para fazer todas essas engrenagens funcionarem, as formigas se comunicam por meio da liberação de substâncias chamadas feromônios, que servem para alertar sobre o perigo, reconhecer indivíduos da mesma colônia e marcar caminhos para ninguém se perder. É como se fosse um cheiro que todas identificam e conseguem rastrear.
Com tamanha sintonia, as saúvas sabem identificar as necessidades do ninho e administrá-lo da melhor forma. Por exemplo, se há poucas jardineiras, as larvas recebem menos alimento para ficarem pequenininhas e ocuparem aquela posição; já quando é preciso formar mais soldados, as larvas são mais nutridas para ficarem bem grandes.
A união também faz a força na hora de carregar folhas muito grandes e pesadas para dentro do formigueiro. Mas, em geral, elas são capazes de se virar sozinhas: com pernas fortes e bem articuladas, cada formiga aguenta cerca de 20 vezes o peso do próprio corpo.
Pequenas, mas resilientes
Nativa do Cerrado, a saúva se dá bem em matas abertas e é um dos grupos de formigas que melhor se adaptou à urbanização. Sua incrível capacidade de adaptação lhe permitiu, também, sobreviver em locais de baixíssima biodiversidade – como as plantações de monoculturas –, ainda que acabe se tornando praga nesses ambientes, causando danos à lavoura.
Imagine só: esse animalzinho depende de folhas para sobreviver e encontra um lugar com uma enorme quantidade de uma mesma planta. Como a saúva se contenta com diversos tipos de folha, diferente de outras formigas que podem preferir plantas específicas, isso não é problema para ela. Assim, com alimento e espaço de sobra, o resultado é uma superpopulação de saúvas.
Por outro lado, é preciso reconhecer que a saúva possui papel importante no ecossistema, contribuindo para a aeração do solo (circulação adequada de ar no subsolo), a dispersão de sementes e a transferência de nutrientes entre as plantas e o solo.
Essa matéria contou com a colaboração do biólogo e monitor do Museu Biológico do Parque da Ciência Butantan, Bruno Schneider.