Foi correndo livre quando menino, em meio às florestas da Mata Atlântica do litoral paulista, que o zoólogo e herpetólogo Miguel Trefaut Rodrigues deu seus primeiros passos rumo à profissão que não apenas lhe permitiria experiências e descobertas incríveis, mas também ampliaria o conhecimento do Brasil sobre sua própria biodiversidade. Ao observar besouros, borboletas, tatus, pacas e tantos outros bichos do mato que cruzavam o seu caminho, uma pergunta ecoava na sua cabeça: “o que será que aconteceu para esse animal poder estar aqui?”
A busca por respostas para essa questão se perpetuou na vida de Miguel há mais de cinco décadas. Não à toa, o atual professor titular do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) é hoje apontado como um dos principais sistematas – profissional da biologia dedicado à identificação de novas espécies – em répteis do mundo. Até o momento, foram descritos por ele mais de uma centena de animais que integram a classe, além de outros 40 anfíbios.
Miguel Trefaut durante palestra realizada no Butantan
De acordo com Trefaut, são indispensáveis a um bom sistemata curiosidade, acuidade visual, persistência e capacidade analítica – características que ele começou a desenvolver cedo, mais especificamente aos 16 anos, quando iniciou sua carreira no Butantan. “Lembro que a Jandyra Planet do Amaral, diretora do Instituto na época, escreveu uma observação para o Alphonse Richard Hoge, pesquisador e chefe da seção de Herpetologia: ‘Esse rapaz parece que se interessa por herpetologia. Veja se dá para aproveitar’”, contou ao Portal do Butantan, após palestrar para os pesquisadores e alunos da instituição no início de abril.
As primeiras tarefas confiadas ao jovem foram a contabilização das serpentes do plantel e a conferência dos espécimes da coleção herpetológica. E o que era para ser um estágio de apenas seis meses virou um emprego fixo. Um ano depois, Miguel já conhecia todo o acervo e ajudava na recepção de animais. “No Butantan foi onde eu realmente me apaixonei pelas serpentes e desenvolvi uma curiosidade enorme por lagartos”, recorda.
Empolgado, escreveu para o curador do Museu Nacional de História Natural de Washington, nos Estados Unidos, James Peters, que não apenas respondeu sua carta, como enviou duas caixas de separatas (tipo de artigo científico publicado de forma impressa) aos seus cuidados, aconselhando-o também que procurasse por Paulo Emílio Vanzolini, então diretor do Museu de Zoologia da USP. Após cinco anos de muito trabalho e aprendizado, Miguel despediu-se do Butantan e passou a estagiar junto daquele que seria seu “guru”, orientando-o até a defesa do doutorado.
Espírito aventureiro
Por mais que a carreira de sistemata demande uma vasta rotina de laboratório, é durante o chamado “trabalho de campo” que Miguel Trefaut se sente bem. “Para mim, não tem coisa melhor no mundo do que estar em contato com a natureza, olhar os bichos e entender a evolução por trás de cada espécie. É minha paixão”, diz, empolgado.
Interessado pela história evolutiva da fauna neotropical, o zoólogo afirma que o Brasil é um dos melhores lugares para se estar. Nessa trilha, Trefaut tem aberto importantes caminhos, como a descoberta de um verdadeiro reduto ecológico nas dunas do Rio São Francisco, no noroeste da Bahia, considerada uma das áreas brasileiras com maior registro de endemismo – ocorrência de espécies exclusivas de um lugar.
Para se ter uma ideia da riqueza da região, das 44 espécies de lagartos registrados em toda a Caatinga, 20 são endêmicas das dunas – área que representa menos de 1% do bioma. Outra descoberta decorrente dessa empreitada do biólogo foram as “espécies-irmãs”: animais muito parecidos, porém com pequenas diferenças genéticas e de aparência, vivendo cada uma em lados diferentes das dunas do Velho Chico.
Os pesquisadores do Instituto Butantan lotaram o auditório do Museu Biológico para ouvir o herpetólogo
Picos dos sonhos
Aos 70 anos, Miguel Trefaut nem pensa em parar. Há mais de uma década, ele tem se dedicado ao estudo das regiões montanhosas e praticamente intocadas do norte da Amazônia, próximas à fronteira com a Venezuela. O interesse se deu por conta da história geológica da área, que é bastante antiga, acumulando mais de 1 bilhão de anos. “Lá, temos dois tipos de fisionomia de paisagem: as terras baixas, que é basicamente a floresta amazônica; e as terras altas, os chamados Tepuis, relevos residuais resultantes de um processo de erosão de milhões e milhões de anos”, explica.
Após quatro anos de muito planejamento, uma expedição para a região enfim se tornou realidade em novembro de 2017. O primeiro destino foi nada menos que o ponto mais alto do Brasil: o Pico da Neblina, a 2.995 metros de altitude. “Tivemos a ajuda muito importante do professor Raul Machado [diretor de Alianças Científicas Nacionais e Internacionais do Butantan até meados de maio deste ano], que nos ajudou a triangular a comunicação com o Exército Brasileiro.”
Com o apoio dos militares e o aval de duas comunidades indígenas Yanomami que vivem na região, os pesquisadores passaram cerca de uma semana na montanha coletando amostras de répteis, anfíbios, aves, mamíferos e plantas. Os estudos apontaram a presença de 12 novas espécies de répteis e anfíbios, incluindo duas novas famílias de sapos braquicefaloides: a Caligophrynidae e a Neblinaphrynidae. A hipótese é que ambas tenham surgido há 45 e 55 milhões de anos, respectivamente.
Além da coleta de espécimes, os cientistas recolheram dados fisiológicos sobre a tolerância térmica das espécies que vivem na região mais elevada do país. A conclusão é que os répteis e anfíbios do Pico da Neblina estão vivendo muito próximos das temperaturas máximas que toleram, estando em sério risco de extinção frente às transformações provocadas pelo aquecimento global.
Em novembro de 2022, uma nova expedição foi realizada à Serra do Imeri, outra área montanhosa, localizada próxima ao Pico da Neblina e isolada pelo vale de dois rios. O objetivo da empreitada também foi reconhecer a biodiversidade da região, verificando a ocorrência de endemismos. “Estar nos picos de altitude da Amazônia, definitivamente, é algo inimaginável. São expedições que estavam no nível dos sonhos”, afirma.
Dessa vez, a excursão científica foi maior, envolvendo 14 pesquisadores – entre eles um parasitologista, responsável por coletar amostras sanguíneas dos vertebrados – e 110 militares. Por conta do difícil acesso e da complexidade do terreno, foram necessárias mais de 25 horas de voo de helicóptero para reconhecimento da região.
A análise dos 160 espécimes de répteis e anfíbios coletados apontou a presença de várias novidades. Destaque para quatro novas espécies de lagartos, sendo duas delas bastante semelhantes a exemplares identificados no Pico da Neblina, distante 90 quilômetros dali. “Isso mostra que houve uma relação pretérita entre essas duas áreas. Provavelmente elas estiveram em contato no tempo em que existia uma cobertura sedimentar comum entre os dois picos.”
Além da relação histórica entre as cadeias montanhosas da Amazônia, os resultados das análises corroboram ligações de espécies da região com outras típicas dos Andes e dos campos de altitude da Mata Atlântica. “Por outro lado, os bichos que estão lá em cima não têm absolutamente nada a ver com a fauna presente na parte baixa da floresta amazônica. É um padrão completamente novo”, observa.
Para ajudar na compreensão dessa e de outras lacunas que ficaram em aberto, uma nova expedição já está programada para a Serra de Tulu-Tuloi, também no estado do Amazonas, no final de 2025.
Miguel com as pesquisadoras Viviane Maiomi, Erika Hingst-Zaher e Ana Maria Moura
Valor das coleções científicas
Tentar compreender como patrimônios genéticos diferentes podem produzir morfologias semelhantes – a chamada convergência – é o atual “mistério dos mistérios evolutivos”, na opinião do professor da USP. E a solução desse problema pode estar nas coleções científicas. Isso porque cada indivíduo coletado guarda em si um conjunto de caracteres que representam o registro de um determinado tempo-espaço. “O clima pelo qual aquela linhagem passou, as adversidades, os competidores, tudo está ali. A questão é que ainda temos pouco acesso a isso.”
Diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo entre 1997 e 2001, e membro do Conselho Deliberativo de Curadoria das Coleções Científicas Zoológicas do Instituto Butantan de 2003 a 2007, Miguel vê com otimismo os investimentos e a valorização dos acervos. “A coleção do Butantan continua exercendo um papel relevante, com diversos espécimes-tipos [“indivíduos originais” utilizados na descrição de uma espécie]. É uma representação única da história do planeta”, afirma.
De acordo com o zoólogo, valorizar a importância da biodiversidade também é indiscutível para quem busca acessar as informações que estão “escondidas” nos genes das milhões de espécies que já habitaram ou ainda habitam a Terra. Entretanto, nesse ponto, as perspectivas não são boas. “Precisamos desenvolver nossa consciência coletiva. A riqueza de um país não está nos metais preciosos, no dinheiro, mas sim na biodiversidade. É isso o que temos de mais valioso”, finaliza.
Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: José Felipe Baptista