Reportagem: Camila Neumam
O Brasil reapareceu na lista dos 20 países com maior número de crianças não vacinadas contra difteria, tétano e coqueluche (DTP) em 2024, segundo relatório divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O país está em 17º lugar na lista, com 229 mil crianças que não receberam a primeira dose da DTP ou Tríplice Bacteriana em 2024. No calendário nacional de vacinação, a DTP é indicada em três doses e dois reforços, sendo a primeira aplicada aos 2 meses de idade.
Apesar da volta do Brasil à lista, da qual tinha saído em 2024, com dados de 2023, o relatório aponta que o país atingiu uma cobertura global da DTP1 de 91% - mais próxima da meta de 95%. Isso indica que o Brasil está entre os países com as maiores coberturas percentuais do imunizante do mundo.
“É uma lista que foca em números absolutos, não na cobertura vacinal. Apesar deste número corresponder a 2% da população de crianças que devem tomar essa vacina, 229 mil crianças é um número gigantesco, semelhante a populações inteiras de cidades e até de países, o que deve ser levado em conta”, afirma o infectologista e gestor médico do Butantan, Érique Miranda.
A vacina DTP na sua versão acelular é um dos imunizantes produzidos pelo Butantan. No ano passado, o Instituto forneceu ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) 4 milhões de doses, que foram encaminhadas aos estados e municípios pelo Ministério da Saúde para serem distribuídas gratuitamente à população nos postos de saúde.
Para a OMS, a primeira dose de DTP é um indicador para o acesso aos serviços de imunização. Quando ela não é administrada, a criança é considerada “zero dose”, ou seja, que não recebeu nenhuma vacina. No ano passado, o Brasil deixou de figurar na lista ao computar 103 mil crianças não vacinadas, uma queda acentuada comparada aos dados de 2022, quando foram registradas 418 mil crianças zero dose no país.
Segundo o Ministério da Saúde, no primeiro quadrimestre de 2025 o Brasil registrou um aumento na cobertura de 15 das 16 vacinas do calendário nacional na comparação ao mesmo período de 2024; entre os imunizantes que tiveram sua cobertura ampliada está o primeiro reforço da DTP, que foi de 74,49% para 81,97% - mas ainda fora da meta de 95%.
“Houve sim uma queda nas coberturas vacinais e essa variação desde a pandemia já foi suficiente para colocar o Brasil nesta lista. É um número macro e a tendência dele, de acordo com os dados recentes do governo, que demonstram uma curva de melhora, é o Brasil sair dessa lista novamente”, afirma Érique Miranda.
Durante a pandemia de Covid-19, houve uma queda significativa nas coberturas da primeira e terceira dose de DTP nas Américas. Em 2021, a região atingiu seu nível mais baixo em duas décadas, com coberturas de 87% para DTP1 e 81% para DTP3. No entanto, os dados de 2023 mostraram uma recuperação parcial, com 90% para DTP1 e 88% para DTP3, segundo a OPAS.
O relatório do Unicef aponta que 20 milhões de crianças permaneceram não vacinadas ou subvacinadas no mundo em 2024. Destas, 14,3 milhões não receberam nenhuma vacina (zero dose de DTP1), um aumento em relação aos 12,9 milhões de 2019. Entre as crianças que permanecem não vacinadas ou subvacinadas no mundo, aproximadamente 10,2 milhões (51%) vivem em países com fragilidade institucional e social ou afetados por conflitos.
Vinte e sete países apresentaram cobertura de DTP1 abaixo de 80%, sugerindo a necessidade de ampliar o acesso aos serviços de imunização locais. A maioria deles está localizada na África Ocidental e Central (7), África Oriental e Meridional (6) e América Latina e Caribe (6).
O relatório aponta que, globalmente, mais de 50% das crianças com zero dose estão concentradas em nove países altamente populosos e/ou que vivem em conflitos políticos e econômicos que impactam a vacinação.
São eles: Nigéria (228 milhões de habitantes e 15% de crianças zero dose), Índia (1,43 bilhão de habitantes e 6% de crianças zero dose), Sudão (50 milhões de habitantes e 6% de crianças zero dose), República Democrática do Congo (106 milhões de habitantes e 5% de crianças zero dose), Etiópia (129 milhões de habitantes e 5% de crianças zero dose), Indonésia (281 milhões de habitantes e 5% de crianças zero dose), Iêmen (39,4 milhões de habitantes e 4% de crianças zero dose), Afeganistão (41,5 milhões e 3% de crianças zero dose) e Angola (36,8 milhões e 3% de crianças zero dose).
O relatório pondera o grande número de habitantes de alguns países contribuem para os números globais, apesar das altas taxas de cobertura vacinal. Por exemplo, em 2024, a Índia contabilizou 909 mil crianças com zero dose, o que corresponde a 6% da população elegível, apesar de atingir 96% de cobertura para uma coorte de 22,7 milhões de bebês sobreviventes.
A lista de 20 países elaborada pela Unicef leva em conta o número absoluto de crianças não vacinadas, portanto destacam-se países muito populosos e com graves limitações do sistema de saúde pública. “A Nigéria, que está no topo da lista, com 2 milhões de crianças não vacinadas, é o sexto país mais populoso do mundo e ainda é uma área endêmica para poliomielite que enfrenta questões de segurança, socioeconômicas, de infraestrutura e sistêmicas que contribuem para o desafio geral de alcançar uma alta cobertura vacinal no país”, explica Érique Miranda.
Em segundo lugar vem a Índia, o segundo país mais populoso do mundo e seis vezes mais populoso que a Nigéria, porém com metade do número de crianças sem vacinar observado no país africano: quase 1 milhão. O Brasil, que tem uma população um pouco menor que a da Nigéria, tem 229 mil, e está em 17º na lista, ao lado da China.
O relatório detalhou também a cobertura global da terceira dose da vacina contra difteria, tétano e coqueluche (DTP3) - frequentemente usada como um indicador de quão bem os países estão fornecendo serviços de imunização de rotina para crianças – e da vacina de sarampo, já que a doença é considerada um marcador de transmissão.
Em 2024, a cobertura global da terceira dose da DTP3 foi de 85%, de acordo com as estimativas mais recentes da OMS e do Unicef, pouco abaixo da meta global de 90% estabelecida pela Agenda de Imunização 2030.
Ao todo, 111 países (57%) alcançaram pelo menos 90% de cobertura da DTP3 em 2024. Esse número é menor do que em 2019, quando 125 países atingiram a meta.
A Europa, Ásia Central e o sul da Ásia apresentaram a maior cobertura da vacina DTP3, com 92%, enquanto a África Ocidental e Central apresentaram a menor, com 72%. A cobertura nos países da América Latina e Caribe foi de 82%.
No seu Alerta Epidemiológico de Aumento de Casos de Coqueluche na Região das Américas, a OPAS apresentou a evolução das coberturas de DTP3 entre 2020 e 2024 em sete países da região — Brasil, Colômbia, Equador, Estados Unidos, México, Paraguai e Peru —, que registram surtos de coqueluche em 2025.
Segundo o relatório, a cobertura de DTP3 no Brasil sofreu altos e baixos nos últimos quatro anos, com totais de 86% (2020), 68% (2021), 77% (2022), 90% (2023) e 91% (2024).
No Brasil, até meados de maio de 2025, foram notificados 1.819 casos confirmados de coqueluche, incluindo seis óbitos. Dos estados com casos confirmados de coqueluche, os que apresentaram maior número foram Minas Gerais (417 casos e um óbito), São Paulo (321 casos e dois óbitos), Rio Grande do Sul (249 casos e um óbito) e Paraná (247 casos). A faixa etária mais acometida é a de crianças menores de um ano (498 casos), representando 27,4%, seguida da faixa etária de 1 a 4 anos (462), representando 25,4%.
“A queda das coberturas durante a pandemia fez ressurgir surtos de coqueluche em adultos que estão infectando crianças porque, depois dos 7 anos, não se recebe mais reforço da coqueluche, só se recebe a vacina duplo adulto acelular (tétano e difteria). Os adultos sem imunidade contra coqueluche infectam principalmente bebês que ainda não receberam os três reforços. Por isso, é importante possibilitar reforços para adultos, para além das gestantes e profissionais de saúde”, explica Érique.
Causada pela bactéria Borderella pertussis, a coqueluche é repassada pelo contato com gotículas de pessoas doentes, sendo altamente transmissível. É justamente por esse motivo que a meta de vacinação é a mais alta - de 95%.
O documento da OMS e Unicef destaca que os desafios para aumentar a cobertura vacinal são numerosos e persistem em regiões frágeis e afetadas por conflitos. Em 2024, ao menos oito países apresentaram coberturas da DTP3 de 60% ou menos (Afeganistão, Azerbaijão, Bolívia, República Centro-Africana, Líbano, Papua-Nova Guiné, Sudão e Iêmen). Seis em cada oito desses países vivem em situação de fragilidade institucional e social, ou são afetados por conflitos.
O documento ressalta ainda que a cobertura também é afetada por investimentos inadequados em programas nacionais de imunização, escassez de vacinas e surtos de doenças.
“Para elevar os níveis globais de imunização, é essencial priorizar os esforços nos países com os maiores números absolutos de crianças não vacinadas. No entanto, é igualmente importante garantir que os países com baixas taxas de cobertura, onde as crianças têm maior probabilidade de não serem imunizadas, recebam a atenção necessária, especialmente em nações com coortes de nascimento menores”, pondera o Unicef.