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Dia da Mulher: cientista apaixonada e leitora incansável, ela começou estudando o veneno da cascavel e hoje lidera 14 laboratórios do Butantan

Curiosa por natureza, Sandra Coccuzzo ocupa o cargo de diretora do Centro de Desenvolvimento Científico do Instituto com a responsabilidade de gerenciar centenas de pesquisadores e estudantes de pós-graduação


Publicado em: 06/03/2025

Reportagem: Mateus Carvalho
Fotos: Marilia Ruberti / Arquivo pessoal

O Butantan é um mundo onde a ciência, a pesquisa, a cultura e a produção de vacinas e soros se encontram. Entre as milhares de pessoas que fazem tudo isso acontecer diariamente, está uma mulher apaixonada, com empolgação de menina, brilho no olho e sorriso contagiante: a diretora do Centro de Desenvolvimento Científico (CDC) do Instituto, Sandra Coccuzzo. Nascida em São Paulo, com 30 anos de história dentro do Butantan, cerca de 100 artigos publicados, 35 orientações de estudantes entre as modalidades de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, participação em 129 bancas de defesa de dissertação e teses e uma carreira consolidada na pesquisa de toxinas presentes no veneno da cascavel, ela ainda sonha em alcançar novos voos para romper barreiras e transformar a saúde pública do Brasil.

Desde os seus primeiros passos no Butantan, Sandra sabia que estava assumindo mais do que uma carreira científica – o trabalho no Instituto era uma missão. Formada em Biomedicina pela Universidade de Santo Amaro (UNISA), com mestrado e doutorado em Farmacologia pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado pelo Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento da Universidade de São Paulo (USP), a pesquisadora não fica parada: além de gestora do CDC, é pró-reitora da pós-graduação do Instituto Butantan, e membro titular do Conselho Superior do Instituto Butantan e do Conselho Curador da Fundação Butantan. Também coordena o grupo Crotoxin, Matrix and Immunometabolism Research Group, que investiga a ação da Crotoxina (CTX), principal toxina isolada do veneno da cascavel (Crotalus durissus terrificus) sobre o imunometabolismo e o Centro para Vigilância Viral e Avaliação Sorológica (CeVIVAS) do Butantan, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

 


Sandra está no Butantan há mais de 30 anos

 

São mais de três décadas dedicadas à pesquisa, um interesse que se manifestou assim que Sandra teve contato com Farmacologia na faculdade, em 1992. “Depois da primeira aula, eu voltei encantada para casa achando tudo maravilhoso e já com a certeza de que eu seria farmacologista a vida inteira”, relembra. À época, a maioria das pessoas que cursava Biomedicina queria trabalhar com exames laboratoriais – já Sandra queria mesmo era conhecer um laboratório de pesquisa e atuar com células. Ela nem cogitava o Butantan, por achar que a instituição trabalhava apenas com serpentes. 

Tudo mudou em uma conversa informal com uma professora, a biomédica e ex-diretora do CDC do Butantan Yara Cury, que comentou sobre uma vaga de estágio no Laboratório de Fisiopatologia do Instituto. “A hora que eu entrei no laboratório e senti o cheiro do sal e do cloreto de sódio diluindo, eu só pensei comigo mesma que eu não queria fazer outra coisa da minha vida. Não queria sair do laboratório”, completa Sandra. 

Ela começou sua iniciação científica em 1995 com uma bolsa da FAPESP, que possibilitou o desenvolvimento de um projeto para entender os efeitos do veneno da cascavel – então, já se conhecia sua ação analgésica e anti-inflamatória. Sandra quis ir além: entender os efeitos inibitórios foi se tornando, com o tempo, seu principal objetivo como pesquisadora. 

 


Sandra com Yara Cury, uma de suas referências na ciência

 

De aluna a pesquisadora científica

Após anos de experiência no Laboratório de Fisiopatologia como bolsista, uma oportunidade de trabalho mais permanente surgiu com a abertura, em 2003, de um concurso público para pesquisadores do Instituto. Foi um período desafiador. Sandra estava no ano de qualificação de sua tese de doutorado, e o edital do concurso exigia conhecimentos em diversas disciplinas, como microbiologia, parasitologia, bioquímica, fisiologia e biologia molecular. Em três meses, a cientista se organizou e estudou tudo o que podia. 

“A concorrência era altíssima, eram apenas oito vagas para 100 pessoas. Estudei, fiz a prova, passei pela entrevista e fiquei entre os três primeiros colocados do concurso. Ver meu nome numa lista classificatória de um concurso do Butantan foi uma das maiores emoções da minha vida”, conta a diretora do CDC. 

Seu destino estava realmente ligado ao Butantan: enquanto um ciclo se encerrava, outro se iniciava. Sandra foi chamada para assumir a posição de pesquisadora científica no Laboratório de Fisiopatologia em setembro de 2004. Um mês depois, defendeu a tese de doutorado e, enfim, passou a receber salário como funcionária pública. “Esse foi o primeiro e único concurso que prestei na vida. Eu tenho para mim que toda pessoa tem suas missões e destinos, mas nada disso cai no colo. É preciso botar esforço, vontade e conquistar as coisas por merecimento.” 

 


A cientista durante sua defesa de tese do doutorado em 2004

 

Além de atuar como pesquisadora, ela tinha a função de ser orientadora de estudantes, norteá-los sobre as perguntas científicas que deveriam ser feitas e ajudar a conquistar recursos financeiros das agências de fomento para a realização dos projetos. “Para mim foi curioso, porque dormi como aluna e no outro dia acordei como pesquisadora, e isso muda tudo na nossa vida científica. Eu não estava mais em um grupo em que tinha a ajuda de um orientador. Naquele momento eu iniciava como líder de uma equipe”, relembra.

 

O projeto de uma vida 

A carreira profissional de Sandra foi moldada principalmente pelos estudos sobre o veneno da cascavel. Junto a seu grupo de pesquisa, ela descobriu que a crotoxina, uma das moléculas do veneno da serpente, é capaz de modular o sistema imune na presença do câncer. A ação da toxina sobre os macrófagos, que são células de defesa do organismo, indica um caminho possível para futuras imunoterapias. A pesquisa da cientista e de seu grupo é pioneira e foi publicada em revistas de alto impacto como a Scientific Reports

Agora, seu grupo busca combinações estruturais da crotoxina responsáveis pelos seus efeitos imunomodulador e antitumoral. 

“O estudo da crotoxina fez toda a minha carreira, até hoje. Ano passado, nós, que ingressamos em 2004 no Instituto, fizemos 20 anos de carreira científica dentro da instituição e hoje fazemos parte do maior núcleo de pesquisadores do estado. Eu tenho muito orgulho de ser servidora pública”, conta.

 


Sandra com os avaliadores de sua banca de doutorado

 

Desafios da vida materna e profissional

Se a vida científica de Sandra avançava, a vida pessoal também mudava: após casar, em 2005, sua filha Maria Clara nasceu em 2007. Na mesma época, ela iniciava um projeto financiado pela FAPESP para estruturar a área de cultura celular dentro de seu laboratório. De posse de poucos recursos, os próprios pesquisadores se encarregavam de montar os espaços, organizar equipamentos e criar um ambiente propício para a pesquisa. Sandra conciliava tudo: a maternidade, a carreira, a orientação de alunos – e tudo com o mesmo entusiasmo de sempre.

Olhando para trás, ela reconhece que nada veio fácil. Cada conquista foi fruto de esforço e dedicação, e, acima de tudo, da certeza de que seu lugar sempre foi ali, entre frascos, experimentos e descobertas. 

“Voltei para o Butantan quando minha filha estava com quatro meses. Eu não posso deixar de lembrar da minha mãe Valéria, que foi fantástica ao me ajudar e a me deixar tranquila com todo o apoio que tive. Isso me permitiu continuar com minha carreira com determinação e sem preocupações”, conta Sandra.

 


Sandra e sua mãe Valéria após sua defesa de mestrado em 2000

 

No mês das mulheres, ela também lembra de pessoas que a ajudaram a chegar no seu atual momento profissional. A cientista destaca a parceria de todas as cientistas do Instituto, em especial a pesquisadora e diretora do Laboratório de Ciclo Celular do Butantan, Maria Carolina Sabbaga, pelo trabalho incansável e dinâmico no CDC, e o apoio das irmãs Vanessa e Stela.

Hoje, como diretora do CDC do Butantan, a pesquisadora se destaca por sua capacidade de formar e inspirar novas gerações de cientistas e até mesmo pesquisadores experientes. Com empatia e liderança, faz da ciência um ambiente colaborativo, onde o conhecimento se multiplica e se transforma em legado. Para ela, formar pessoas não é apenas ensinar técnicas, mas cultivar um ambiente onde a curiosidade e a paixão pela ciência possam se fortalecer.

“Meu papel não é ser só a líder, mas coordenar soluções, revelar novos pesquisadores e subir profissionais para serem tão líderes quanto outros que já temos na instituição. Se eu conseguir fazer isso, significa que fizemos um bom trabalho”, comenta a diretora.  

Com uma rotina intensa, Sandra se orgulha do respeito e reconhecimento de seus pares e equipes que fazem parte dos 14 laboratórios do CDC. “Eu sinto que as pessoas se sentem à vontade comigo, porque eu quero ouvir, quero considerar e não tenho problema de voltar atrás. Se eu entender que o que as pessoas estão falando faz sentido, eu mudo de opinião sem problemas. É gratificante para mim ter o respeito das pessoas que eu represento, o reconhecimento deles, que apesar das dificuldades que temos aqui dentro, eles sabem que eu brigo muito por eles”, diz a pesquisadora, orgulhosa.  

 


A diretora do CDC gerencia 14 laboratórios científicos e centenas de pesquisadores

 

Pandemia de Covid-19: uma virada de chave 

A pandemia de Covid-19 foi um divisor de águas na trajetória de Sandra. Ao mesmo tempo um momento aterrorizante e estarrecedor, serviu também como ponto de virada para se reinventar, principalmente na posição de diretora — ela assumiu o cargo em 2018. Era um cenário que exigia respostas rápidas, criatividade e uma capacidade de adaptação, já que sua experiência estava diretamente ligada à pesquisa básica e ao estudo da crotoxina.

“De uma hora para outra eu estava lidando com vírus, com diagnóstico, logística, coisas que me fizeram sair da minha zona de conforto”, relembra. Quando foi decretado o estado de pandemia em 2020, em apenas 24 horas Sandra e sua equipe apresentaram um planejamento detalhado para lidar com a disseminação do SARS-CoV-2 e para conquistar a tão sonhada vacina para a população.

O período trouxe aprendizados que extrapolaram o campo acadêmico. A diretora do CDC entendeu o potencial da integração de competências, passou a lidar com médicos, gestores públicos e, acima de tudo, com a sociedade. Tudo funcionou na base do trabalho conjunto: afinal, ninguém faz nada sozinho. Por outro lado, o impacto emocional também foi intenso. Não foi nada fácil ver os estudantes da pós-graduação paralisados, sem poder desenvolver suas pesquisas e teses. “Tive que lidar com a pandemia além do ponto de vista científico. Algumas pessoas superaram a pandemia, mas outras nunca mais serão as mesmas”, lamenta. 

No final, o que ficou foi um profundo senso de missão cumprida: a ciência se popularizou, a vacina chegou ao Brasil e, com a liderança de Sandra, o Butantan conseguiu implantar o exame de sorologia IgG e IgM e lançou o projeto LabMóvel – um laboratório itinerante para o diagnóstico e sequenciamento genômico do SARS-CoV-2 para acelerar o processo de testagem dos casos suspeitos da doença e aprimorar o monitoramento das variantes do vírus no estado de São Paulo. 

 


LabMóvel - laboratório itinerante criado para o combate da Covid-19

 

“Hoje, eu olho para trás e me orgulho das coisas que eu me revelei, mas eu não estava sozinha. Estava em um grupo direcionado a uma missão, respeitando o papel de cada um nesse período. Depois da pandemia, eu tenho muito menos medo das coisas do que um dia eu já tive”, resume a pesquisadora.  

 

Ler e nadar para se inspirar 

Como qualquer cientista, Sandra lê muito. Nela, o hábito foi incentivado pela avó, que sempre gostou de escrever e a introduziu às obras da escritora britânica Agatha Christie. Dentre as histórias de detetive que marcaram sua infância, a pesquisadora lembra de “O mistério do 5 estrelas”, clássico de Marcos Rey que faz parte da Coleção Vaga-Lume. 

Segundo a pesquisadora, a leitura ajudou a se reconhecer na área científica, em que é necessário se debruçar, ler demasiadamente e se dedicar a um estudo. A paixão pela leitura é tanta que Sandra sempre lê dois livros ao mesmo tempo. E para relaxar a cabeça, a pesquisadora gosta de nadar: é dentro da piscina que ela reflete, se faz perguntas e encontra soluções para situações que precisam ser resolvidas. Afinal, a pesquisadora continua sonhando e buscando respostas para os problemas do Butantan, de seus colaboradores e servidores, e da saúde pública do Brasil.

 


Sandra e suas colegas no congresso da  Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE) 

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