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A cobra não tem pé, a cobra não tem mão: a ciência por trás da cantiga popular

Evolução de espécies selecionou serpentes que sobem em árvores e vivem lá no alto; cientistas explicam fenômeno e origem da canção


Publicado em: 25/07/2025

Reportagem: Camila Neumam
Ilustrações: Lorena Weinketz

“A cobra não tem pé, a cobra não tem mão, como é que ela sobe no pezinho de limão?” O comecinho da cantiga tão conhecida dos brasileiros nos ajuda a entender três fatores fundamentais sobre as serpentes: elas realmente não têm pés nem mãos, mas têm a habilidade de subir em árvores e de até viver sobre elas. 

Como elas conseguem chegar lá em cima sem pernas ágeis e braços fortes pode parecer um mistério, mas é pura biologia. Ou melhor, pura seleção natural.

A teoria evolutiva da seleção natural, formulada pelo biólogo britânico Charles Darwin (1809-1882), explica como características genéticas podem ser selecionadas com o tempo, levando à adaptação e ao surgimento de novas espécies. 

“Na sua origem, como parentes de lagartos, as serpentes tinham patas. As que tinham corpo mais longo e membros menores foram selecionadas durante a evolução. Esses membros posteriores foram sendo perdidos, embora alguns resquícios deles sejam vistos até hoje em jiboias e sucuris”, descreve o pesquisador científico do Laboratório de Coleções Zoológicas do Butantan, Francisco Franco.

As serpentes que encontramos por aí farfalhando entre folhas, rastejando pela terra ou nadando próximo às cachoeiras deixaram de ter membros posteriores porque eles atrapalhavam a passagem por ambientes estreitos, conta o pesquisador. 



 

A COBRA NÃO TEM PÉ
A cobra não tem pé,
a cobra não tem mão.
Como é que ela sobe no pezinho de limão?

A cobra vai subindo,
vai, vai, vai.
Vai se enrolando,
vai, vai, vai.

A cobra não tem pé,
a cobra não tem mão.
Como é que ela desce do pezinho de limão?

A cobra vai descendo,
vai, vai, vai.
Vai desenrolando,
vai, vai, vai.


Ponto de demanda

Apesar de ser conhecida como uma cantiga infantil, a canção “A cobra não tem pé” tem uma origem religiosa. Ela pertence a uma tradição chamada ponto de demanda ou ponto de desafio, vinculada à umbanda, uma religião afro-brasileira. 

A umbanda é resultante da combinação entre ritos de ancestralidade de povos africanos como os bantos, os rituais calundus, o candomblé nagô e encantarias, associados às pajelanças indígenas e os catimbós [o culto de origem tapuia], mais elementos do cristianismo e do espiritismo kardecista europeu.

Os pontos de demanda já eram manifestados no Brasil pelas comunidades negras em rodas de partido alto e jongo – estilos musicais que originaram o samba como conhecemos hoje –, nas quais um partideiro improvisava uma fala para desafiar o outro a responder. 

“O ponto de demanda é uma tradição muito forte em uma série de elementos das culturas africanas que pertence à história oral. Não se encontra registro de autoria porque se cantava nos velhos terreiros há muito tempo”, afirma o mestre em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) Luiz Antonio Simas, autor do livro “Umbandas: uma história do Brasil”.

A “Cobra não tem pé, a cobra não tem mão” é um ponto de demanda que se canta para desafiar alguém ou para responder a um desafio que foi lançado, explica o historiador – que também é escritor, poeta e compositor.

“’A cobra não tem pé’ é você desafiando a outra pessoa. Significa algo assim: como é que você quer ser o que você não pode ser? Você acha que eu não sou nada? Você acha que eu não tenho pé, não tenho mão, não consigo fazer as coisas? Mas eu consigo, hein? Eu vou te pegar. Eu te pego. É um ponto de demanda, uma tradição”, esclarece Luiz Antonio Simas.



Tradição oral

O fato de as cantigas serem produções coletivas repassadas no boca a boca ao longo dos anos dificulta saber como e por que a “A cobra não tem pé” se tornou uma canção infantil.

“Embora não se consiga localizar sua origem, as cantigas de ninar, de roda e laborais têm uma força vital que as faz permanecer entre comunidades, entre pessoas e entre tempos. Elas são transmitidas de geração em geração, de forma oral e de maneira ritmada por movimentos corporais”, afirma o professor de Literatura Infantil do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) Francisco Camêlo.

Para o professor, as cantigas infantis que nossas avós e mães cantavam ou que aprendemos na escola permanecem vivas porque são o primeiro contato com a cultura e com a língua de uma comunidade. “Elas estão presentes em todas as culturas e remetem às raízes mais remotas do fazer poético. Estes ritmos, além de acalantar crianças e conduzi-las às brincadeiras, são a nossa primeira experiência com a linguagem e com suas possibilidades expressivas”, ressalta. 

Para além da história da canção, o pesquisador científico do Instituto Butantan Francisco Franco explica as diferenças entre serpentes e esclarece por que algumas conseguem subir em árvores e até viver sobre elas tranquilamente e com a alimentação em dia. Veja as respostas abaixo. 

 

 

1 - Como a cobra se locomove sem ter pés?

As cobras não têm pés, mas “andam” fazendo movimentos sinuosos de um lado para o outro porque se apoiam em pequenas irregularidades do solo e impulsionam o corpo para a frente. Elas conseguem ser muito flexíveis e rápidas, porque o seu corpo é longo. Algumas serpentes têm mais de cem vértebras ligadas às costelas, que funcionam como pezinhos de centopeia, ajudando também na ligeireza. 

Mesmo sem patas, as serpentes selecionadas de hoje ocupam vários ambientes: a terra (terrestres) e seu subsolo (fossórias e criptozóicas); as águas de rios e mares (semiaquáticas e aquáticas) e até folhagens, arbustos e árvores (semi-arborícolas e arborícolas). Cada grupo possui características específicas, selecionadas ao longo de milhões de anos de evolução.  

O termo “fossório” significa “escavar”, e se refere a serpentes que vivem enterradas. Já o termo “criptozoico” é uma junção das palavras gregas cripto (escondido; oculto) e zoikos (vida animal), indicando serpentes que vivem escondidas. O termo arborícola, por sua vez, significa animais que vivem em árvores.

Algumas espécies, como jiboias e sucuris, têm ossinhos do quadril e um esporão perto da cloaca – onde termina o corpo e começa a cauda – que são resquícios de patas posteriores. 

 


2 - Como as cobras agarram presas sem ter mãos?

A ausência de mãos (patas) não impede as serpentes de dominarem suas presas, que são abocanhadas e engolidas inteirinhas. Essa proeza só é possível porque os ossos que formam a cabeça, como as mandíbulas, são móveis e articulados, assim elas conseguem abrir um bocão de respeito, permitindo abocanhar a presa inteira. Também elas não têm o osso do centro do peito (esterno), que nos outros animais unem as costelas de ambos os lados. Tendo as costelas soltas uma das outras, a presa inteira pode passar pela garganta e chegar ao estômago, onde vai ser digerida ao longo de alguns dias.
 

 

 

3 - Quais serpentes sobem em árvores? 

A maioria das serpentes é capaz de subir em árvores, mas as mais adaptadas para este fim são as semi-arborícolas (que não vivem o tempo todo sobre as árvores, mas conseguem subir e se locomover por lá) e as arborícolas (que vivem e se alimentam sobre as árvores). No Brasil temos várias espécies de serpentes semi-arborícolas ou arborícolas, como a cobra-cipó (Chironius exoletus), a caninana (Spilotes pullatus), a cobra-papagaio (Corallus batesii), a focinhuda (Oxybelis aeneus) e a dormideira (Imantodes cenchoa). Algumas dessas espécies têm corpo alongado e bem fininho, semelhante aos galhos das árvores. 
 

 


4 - O que define uma serpente arborícola?

As serpentes, no geral, foram selecionadas para ter um bom desempenho no habitat que ocupam.  A serpentes arborícolas foram selecionadas dentre várias espécies durante a evolução.

Ao longo de milhões de anos, as que conseguiam se deslocar de forma mais eficiente e se esconder de predadores nas árvores foram poupadas, enquanto outras foram predadas.

Algumas serpentes se camuflam entre os galhos e folhagens por terem o corpo fino, comprido e amarronzado ou verde. Assim passam com facilidade pelos galhos e se mantêm despercebidas na copa das árvores. Essa característica permite a elas fugir de predadores e comer animais que vivem nas árvores. 

Durante o processo de evolução, aquelas que conseguiam se alimentar de lagartos arborícolas, de pássaros e de seus ovos, rãs e pererecas que habitam as árvores tiveram taxas de sobrevivência maior do que aquelas menos eficientes. Estas seleções foram moldando as espécies de modo que pudessem viver nas árvores, se abrigando de predadores e se alimentando bem. 

 

 

5 - Como as serpentes arborícolas conseguem se manter nas árvores sem cair? 

Pode parecer um mistério, mas as serpentes arborícolas ou semi-arborícolas sobem nas árvores pelo tronco e depois usam estratégias diferentes para se manter lá em cima sem acidentes. 

Nas serpentes arborícolas, o coração é deslocado para a frente do corpo para fornecer uma melhor oxigenação da cabeça quando elas estão na vertical – mecanismo não existente nas serpentes não arborícolas. 

As arborícolas, no geral, têm um corpo muito longo e passam de galho em galho tranquilamente porque são leves e têm as costelas e as vértebras organizadas de modo a conseguir esticar o corpo. Assim, elas alcançam galhos distantes uns dos outros com facilidade. 

Já as cobras-papagaio (Corallus hortulana e C. batesi), as suaçuboias (Corallus hortulana) e mesmo as jiboias (Boa constrictor), maiores e mais pesadas, se utilizam de cauda preênsil, que foi adaptada para se enrolar firmemente aos galhos, dando segurança e equilíbrio para as serpentes. Sabe aquela imagem da serpente pendurada pelo rabo, no galho da árvore, que você vê nos livros? Ela está realmente pendurada pela cauda.

A jararaca-ilhoa (Bothrops insularis) é outro exemplo de adaptação, embora mais recente – há poucos milhares de anos. Por ter sido isolada na Ilha da Queimada Grande (SP), rodeada de mar, a espécie sofreu adaptações físicas e alimentares, passando a matar a fome com aves migratórias que pousam nas árvores do território. Comparada às jararacas do continente (todas pertencentes ao gênero Bothrops), as jararacas-ilhoas são menores, têm a pele mais elástica, cabeça proporcionalmente maior e dentes menores para facilitar a captura e deglutição de aves.