Reportagem: Camila Neumam
Fotos: José Felipe Batista
Em 2010 o Brasil vivia uma epidemia de dengue, com quase 1 milhão de casos da doença, o triplo de notificações comparado a 2009. O número de óbitos – mais de 600, de acordo com o Ministério da Saúde – também assustava, porque havia dobrado entre um ano e outro. Naquele ano, a pesquisadora e gerente do Laboratório Piloto de Vacinas Virais Neuza Frazatti Gallina recebeu uma missão para lá de ousada do então diretor da Fundação Butantan, Isaias Raw (1927-2022).
“’Precisamos fazer uma vacina para dengue. Eu sei que vocês têm conhecimento para isso. Você topa?’ Eu falei: ‘Com certeza, professor. Nós vamos dar o sangue para que isso saia o mais rápido possível’”, lembrou a pesquisadora.
Neuza Frazatti Gallina se uniu a sua equipe de pesquisadoras, que já haviam desenvolvido imunizantes contra a raiva e rotavírus anos antes. No início dos anos 2000, sob comando dela, a equipe implementou no Butantan a tecnologia de produção de vacinas e antígenos virais em células Vero, que diminuía o uso de animais em pesquisas.
A mesma tecnologia seria utilizada nos anos seguintes na vacina da dengue batizada de Butantan-DV, feita a partir de uma parceria com o Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, que cedeu em 2007 quatro cepas do vírus dengue (os sorotipos 1, 2, 3 e 4) para serem usados na candidata vacinal.
Neuza Frazatti Gallina, que assumiu a missão de desenvolver a vacina da dengue
Muita dedicação
Apesar da expertise adquirida com outras vacinas, desenvolver um imunizante tetravalente capaz de proteger contra os quatro vírus da dengue se mostrou um desafio e tanto – sobretudo porque o objetivo era criar uma vacina de dose única.
“Quando fazemos separadamente os vírus e depois os misturamos para fazer a vacina, essa interação é altamente complexa, porque os quatro sorotipos da dengue têm que proteger da mesma maneira e com a mesma quantidade”, esclarece Neuza.
Foram necessários aproximadamente quatros anos para o desenvolvimento do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) e dos processos de formulação e liofilização do produto até chegar à etapa de ensaios clínicos, divididos em fase 1 (avaliação de segurança e dosagem com a participação de um grupo pequeno de voluntários), fase 2 (estudos e avaliação de segurança e eficácia com um número maior de voluntários) e fase 3 (estudos de confirmação de eficácia e segurança com grupos maiores de voluntários).
O NIH foi responsável pelos primeiros estudos clínicos da formulação da vacina, nos quais testou a formulação em apenas poucos voluntários nos Estados Unidos. Com a necessidade latente de se ter uma vacina no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), autorizou um estudo de fase 2 (2013-2015) no país, com a repetição dos testes feitos no exterior e a aplicação da primeira dose em um voluntário no Hospital das Clínicas de São Paulo em novembro de 2013. Na fase 3 (2016-2019), também realizada no Brasil, 16 mil voluntários foram imunizados e acompanhados por 5 anos.
Os dados de segurança e eficácia da vacina se mostraram altamente promissores. Divulgados em 2024 na prestigiosa revista científica New England Journal of Medicine, a candidata a vacina mostrou eficácia geral de 79,6% para prevenir casos de dengue sintomática. Resultados de dois anos de acompanhamento do ensaio clínico publicados na The Lancet Infectious Diseases mostraram, ainda, uma proteção de 89% contra dengue grave e dengue com sinais de alarme, além de eficácia e segurança prolongadas por até cinco anos.
“Foi um trabalho duro, de muita dedicação no qual tive que abdicar um pouco da minha vida pessoal para me dedicar ao projeto de desenvolvimento da vacina dengue. Entretanto, é extremamente gratificante saber que esta vacina vai salvar vidas e livrar as pessoas de uma doença que causa muita dor, desconforto e hospitalizações”, afirma Neuza.
De mulheres fabulosas
Com o Brasil diante de uma epidemia de dengue sem precedentes em 2024, com mais de 6,6 milhões de casos e mais de 6 mil mortes notificadas, a Anvisa adotou o procedimento de submissão contínua de documentos da Butantan-DV como forma de acelerar um possível processo de aprovação de seu uso.
Por esse motivo, ao longo do ano passado, o Butantan entregou ao órgão três dossiês para o pedido de aprovação: o primeiro com dados da formulação; o segundo com os resultados dos ensaios clínicos; e o terceiro com os dados do produto já envasado – é este documento que se encontra atualmente sob análise da agência.
“É o fim de um projeto de desenvolvimento, é a materialização de um objetivo que demandou tanto tempo, tanta dedicação, não só minha, mas da minha equipe, que é composta de homens e mulheres. São mulheres fabulosas, muito competentes que estão nessa jornada comigo”, ressalta Neuza.
Além de Neuza e das cientistas do Laboratório Piloto de Vacinas Virais, diversas mulheres trabalharam e continuam trabalhando todos os dias para fazer a Butantan-DV ser uma realidade para a população brasileira. O desenvolvimento da vacina está atrelado a uma enorme rede de profissionais que atuam na pesquisa, na produção, no controle e na garantia de qualidade, no cumprimento de normas regulatórias e no planejamento de ações estratégicas e comerciais.
Diretora médica de Ensaios Clínicos do Butantan, Fernanda Boulos
Que sentem orgulho
Uma dessas mulheres é a diretora Médica de Ensaios Clínicos do Butantan, Fernanda Boulos, que, junto com sua equipe, operacionalizou os estudos de fase 3 da vacina e viabilizou toda a documentação clínica a ser submetida à Anvisa.
“Sabemos a importância do desenvolvimento de uma vacina contra a dengue em um país endêmico como o Brasil. Levar o imunizante para milhões de brasileiros é um motivo de alegria, de orgulho e de uma construção coletiva aqui dentro”, afirma.
Para Fernanda Boulos, o fato da primeira vacina de dengue de dose única do mundo ser produzida no país é fruto do trabalho da ciência realizada aqui. “É um projeto feito inteiramente no Brasil, só com centros de pesquisa nacionais, que fazem parte do Sistema Único de Saúde. Finalizar um estudo como esse para pedir uma aprovação para a Anvisa é uma grande vitória da saúde pública e da ciência brasileira”, ressalta.
Daniella Ventini é gerente de produção da Butantan-DV
Honra
A gerente de produção da Butantan-DV, Daniella Ventini, lembra da emoção de voltar ao Instituto, em 2017, para trabalhar na coordenação da produção da vacina. Ela havia feito estágio na instituição em 2004, sob orientação de Neuza Frazatti Gallina.
Hoje, como líder do setor, é responsável por todas as etapas de fabricação – da manutenção do banco de células Vero à produção do IFA, assim como a liofilização do imunizante. De ponta a ponta, o processo é realizado por inteiro em uma fábrica próprio do Centro Bioindustrial do Butantan.
“É uma grande honra poder fazer parte e poder dar continuidade a um projeto que começou lá atrás, com uma grande mulher, e do qual toda a cadeia produtiva começou aqui no Butantan”, afirma Daniella Ventini.
Natully Fogaça, gerente de Controle de Qualidade
Alegria
Mas quem pensa que basta produzir uma vacina para que ela esteja pronta, engana-se. Um imunizante chega aos braços da população somente após uma série de testes de potência e de segurança, que aferem se ele está livre de qualquer contaminação e se se mantém dentro do prazo de validade proposto.
O laboratório da Seção de Controle Biológico do Butantan, que pertence à área de Controle de Qualidade, faz testes com as células, os vírus e o IFA antes mesmo da produção. Depois, faz novos testes com a vacina envasada e liofilizada, além de testes de estabilidade para garantir a qualidade do produto.
“Nosso papel é garantir que o produto que vai para o braço das pessoas é seguro, funciona, e que não vai causar nenhum problema de saúde. A vacina vai oferecer imunidade para a pessoa não se contaminar com vírus da dengue no futuro”, afirma a gerente de Controle de Qualidade – Seção de Controle Biológico, Natully Fogaça.
Há 11 anos no Butantan, Natully já trabalhou no controle biológico de outras vacinas desenvolvidas no Instituto, mantendo sempre seu propósito profissional de atuar em prol da saúde das pessoas.
“No dia que entregarmos os primeiros lotes da vacina para o Ministério da Saúde será a mesma alegria que sentimos quando entregamos uma campanha Influenza ou quando entregamos a CoronaVac pela primeira vez. É muito gratificante participar deste projeto”, ressaltou.
Gerente de Garantia da Qualidade do Butantan, Juliana Nonaka
Que trabalham pela qualidade e segurança
Fica a cargo de outra mulher que está há mais de uma década no Instituto a garantia da qualidade da vacina. “Nosso papel é fazer toda a verificação da documentação, das Boas Práticas de Fabricação, atestando que aqueles lotes que enviaremos para o Ministério da Saúde estão com a qualidade, segurança e eficácia necessárias. Tudo isso para que não haja nenhum risco para a população”, explica a gerente de Garantia da Qualidade do Butantan, Juliana Nonaka, há 15 anos no Butantan.
Segundo Juliana, poder oferecer um imunizante contra os quatro vírus da dengue em um momento de epidemia seria uma forma real de oferecer uma alternativa eficaz de prevenção da doença.
“É importante termos algum método de prevenção da transmissão dessa doença na população e que permite a redução da incidência de mortalidade. Lembrando o que ocorreu durante a pandemia de Covid-19, quando as pessoas entenderam a necessidade de ter uma vacina para combater a doença, ter uma vacina contra a dengue pode ajudar a reforçar que existem outras doenças nas quais precisamos também atuar com vacinas”, destaca.
Luciana Pimenta é diretora de Sistemas de Qualidade
Com responsabilidade
Mas como garantir que todo o padrão de qualidade alcançado na produção se mantenha ao longo do tempo e sem erros? Isso é possível devido à liderança de outra mulher: a diretora de Sistemas de Qualidade do Butantan, Luciana Pimenta.
É sua equipe que faz o oversight do sistema de gestão da qualidade no Butantan e que suporta a obtenção e a manutenção do certificado de Boas Práticas de Fabricação dado pela Anvisa para fabricantes de vacinas e outros imunobiológicos.
“Asseguramos a aplicação das boas práticas de fabricação durante todo o ciclo de vida do produto, incluindo a qualificação de fornecedores da matéria-prima, o gerenciamento de todos os documentos utilizados para registrar o processo de produção e análise da vacina, treinamentos dos colaboradores, gerenciamento de riscos, dentre outras atividade que tem como objetivo principal assegurar que os processos sempre ocorram da forma inicialmente planejada e com o mesmo padrão de qualidade, para que não haja erros e que se garanta a qualidade”, esclarece.
Para Luciana, fazer parte do projeto da Butantan-DV traz a sensação de realização e de poder contribuir com a saúde pública.
“Sempre falamos do quanto nos impacta positivamente trabalhar no Butantan e poder contribuir com a saúde pública do Brasil e do mundo. Conseguirmos chegar nas últimas etapas e finalmente ver que o trabalho desenvolvido ao longo de todos esses anos vai poder chegar aos usuários finais da cadeia é uma grande satisfação. É uma sensação de dever cumprido!”, relata.
Rosilane de Aquino Silva é diretora de Assuntos Regulatórios
Articulação
Os documentos que permitem à Anvisa autorizar o uso de uma vacina no Brasil só saem do Butantan com o crivo da diretora de Assuntos Regulatórios, Rosilane de Aquino Silva. Com mais de 20 anos de carreira em assuntos regulatórios, sendo 18 deles na Anvisa, ela e sua equipe são responsáveis por fazer a interface do Butantan com a agência, garantindo o envio de todas as informações solicitadas no trâmite de submissão e de quaisquer outras solicitações.
“Nosso papel começa com o envio dos documentos e com a articulação interna, ou seja, trazer para dentro do Butantan possíveis dúvidas, coletar essas respostas, articulá-las entre a agência e áreas técnicas, para que a agência esteja absolutamente segura de que a vacina cumpra com todos os requisitos e pode ser aprovada”, explica.
No Butantan desde 2023, Rosilane se diz orgulhosa de fazer parte do projeto e ressalta que está engajada desde o dia zero – o imunizante contra a dengue foi assunto de sua primeira reunião na instituição.
“Sabemos o potencial dessa vacina em relação a oferecer uma proteção para a população maior do que a que se tem no mercado atualmente. E ela tem a vantagem de ser dose única em um país endêmico, que tem um programa de vacinação que depende muito de campanhas. Ter uma vacina que permite uma única ida ao posto de saúde facilita demais em termos de programa de vacinação”, afirma.
Gerente de Qualidade e Inovação, Adriana Regina Miranda
Estratégia
Mas como fazer todos estes setores conversarem com as diferentes áreas e parceiros que também atuam no projeto Butantan-DV? A gerente de Qualidade e Inovação do Butantan, Adriana Regina Miranda, e sua equipe 90% feminina têm essa missão.
“Fazemos a interface de todas as áreas da qualidade com as áreas de assuntos regulatórios, PMO e parceiros externos, para centralizar as conversas, demandas e entregas nas reuniões dos projetos, garantindo o cumprimento de todos os requisitos e boas práticas, desde a ideia do produto até o registro”, esclarece Adriana.
Adriana diz ser uma satisfação profissional e pessoal imensa participar do projeto, no qual está envolvida há mais de dez anos, iniciando como analista no Controle de Qualidade.
“No meu primeiro emprego em um posto de saúde, em 2004, quando estava em uma função administrativa, eu sonhava em trabalhar com vacinas, mas nunca projetei que estaria no Butantan um dia. Tenho muito orgulho e gratidão por fazer parte do Projeto Dengue”, ressalta.
A coordenadora de projetos Maristela Rezende Gama
Foco na população
São, aliás, as áreas estratégicas que traçam os planos que permitirão tornar a vacina disponível para os brasileiros. E uma dessas áreas conta com a expertise da coordenadora de projetos do PMO - Escritório de Projetos do Butantan, Maristela Rezende Gama, que fez carreira na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e chegou ao Butantan em 2022 para coordenar as ações necessárias ao desenvolvimento e à ampliação da capacidade analítica e produtiva da vacina.
“O meu papel hoje é orquestrar as diversas áreas, garantindo o cumprimento dos prazos, facilitando a comunicação de informações e dados estratégicos com a alta gestão, e resolvendo questões operacionais, sempre com o objetivo de assegurar o cumprimento dos prazos para disponibilizar a vacina porque não adianta só ter o registro”, esclarece.
Para Maristela, estar no projeto Butantan-DV é a realização de seu propósito de trabalhar com saúde pública. “Fazer essas trocas com os colaboradores vai de encontro com a minha construção profissional. Sempre foquei em trabalhar e contribuir com algo relevante, então é uma honra para mim”, completou.
Jaqueline Borin, diretora da Franquia Arboviroses
Porque a saúde tem pressa
Dentro do que parece ser um quebra-cabeça com mais de cem pessoas envolvidas diretamente, cabe à diretora da Franquia Arboviroses (Chikungunya e dengue) do Butantan, Jaqueline Borin, garantir que tudo se encaixe perfeitamente para garantir que a vacina seja disponibilizada no Sistema Único de Saúde.
“Meu papel é garantir o alinhamento estratégico entre todas as áreas envolvidas no projeto até o lançamento e o fornecimento, que é quando teremos a vacina no braço da população, articulando com instituições parceiras e órgãos externos. São muitas peças, e uma integração complexa, mas que é essencial para que possamos disponibilizar a vacina o mais rápido possível. A saúde tem muita pressa, e os números crescentes de casos de dengue, e também de chikungunya no Brasil exigem uma resposta coordenada, estratégica e eficaz”, afirma.
Para Jaqueline, essa conquista é um reflexo da dedicação de uma equipe diversa, unida e altamente comprometida, com mulheres inspiradoras ocupando posições de destaque ao longo de toda a jornada. Um verdadeiro motivo de orgulho para o Butantan e para a ciência brasileira.
“Diante do cenário atual, com o avanço das arboviroses e o aumento do número de casos, o Butantan tem assumido um papel de protagonismo nessa luta. É inspirador saber que nosso trabalho vai deixar um legado real para a saúde pública no Brasil e em outros países. Fazer parte disso é motivo de muito orgulho”, conclui.