Portal do Butantan

Uma epidemia que já dura 40 anos: mutações do HIV dificultam produção de vacina, mas PrEP reduziu em 11% infecções no Brasil

Junto a avanços na prevenção, consórcio internacional pesquisa cura do HIV; o médico infectologista Esper Kallás, diretor do IB, integra a iniciativa


Publicado em: 01/12/2023

Os primeiros casos de HIV (vírus da imunodeficiência humana) foram registrados em 1978 nos Estados Unidos, Haiti e África Central, mas foi na década de 1980 que o vírus se tornou uma emergência global. Quarenta anos depois, a doença causada por ele, a Síndrome da Imunodeficiência Humana (AIDS), já foi responsável por 40 milhões de óbitos em todo o mundo. Enquanto a busca por uma vacina continua, avançaram os tratamentos e outras estratégias de prevenção, como a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), que hoje alcança uma eficácia próxima a 100%. No Brasil, o uso de PrEP reduziu as infecções em 11,1% entre 2019 e 2021, de 46 mil para 40,8 mil casos por ano. Apesar dessa vitória, ainda é preciso combater complicações de longo prazo e seguir pesquisando uma cura funcional, visando melhorar a qualidade de vida dos pacientes e evitar que precisem tomar remédios para o resto da vida.

O HIV infecta as células de defesa humanas, mais especificamente os linfócitos T CD4. Ele se integra ao material genético do linfócito e se multiplica, depois mata a célula e reinicia o ciclo, infectando outras células. Com isso, o sistema imune vai ficando enfraquecido, mas pode levar anos até que a infecção cause algum sintoma.

Os passos iniciais para o desenvolvimento de um tratamento contra a infecção foram dados já na década de 1980: o primeiro fármaco, a azidotimidina (AZT), começou a ser aplicado em 1987 e controla a replicação do vírus no organismo. Com o tempo, outros antirretrovirais foram sendo produzidos e aprimorados para reduzir os efeitos adversos de curto e longo prazo, dando origem aos chamados “coquetéis antiaids”. No Brasil – onde cerca de 1 milhão de pessoas já foram diagnosticadas com a doença – existem 34 opções de medicamento disponíveis gratuitamente para a população atualmente, de acordo com o Ministério da Saúde. Essas medicações diminuem a multiplicação do vírus, recuperam as defesas do organismo e, consequentemente, aumentam a qualidade de vida.

Centro médico de Feira de Santana, Bahia, realizando testes rápidos para detectar o vírus em abril de 2023

Considerada a epidemia mais longa da história, a infecção pelo HIV foi e continua sendo marcada por inúmeros desafios e preconceitos. O médico infectologista, diretor do Instituto Butantan e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Esper Kallás, viveu de perto essa história. Além de atender pacientes com HIV, ele publicou mais de 80 artigos sobre o tema e participou de estudos de tratamentos e métodos profiláticos. Neste Dia Mundial de Luta contra a AIDS, o pesquisador relembra os marcos da epidemia e traz perspectivas sobre seu futuro combate.

“Quando surgiu o HIV, acreditava-se que em poucos anos teríamos uma vacina. O que não se sabia, na época, era o quanto o vírus se modificava. A capacidade mutagênica do HIV é uma das maiores que se conhecem entre os vírus” 

Além do patógeno escapar facilmente da resposta imune, os anticorpos sozinhos não são suficientes para neutralizar o vírus: é preciso ter resposta celular. Mas mesmo as iniciativas mais recentes e avançadas para desenvolver um imunizante esbarraram no obstáculo da resistência que o HIV ganha com as mutações. No início deste ano, uma vacina da Janssen teve seu estudo de fase 3 encerrado, após ter se mostrado ineficaz em ensaios clínicos conduzidos em diferentes países – inclusive no Brasil, no Hospital das Clínicas da FMUSP, com participação de Esper. 

“A vacina que chegou mais perto do ideal, desenvolvida na Tailândia, conferiu uma proteção de 32%, que ainda é muito baixa. Do ponto de vista de saúde coletiva, não há praticidade em adotar uma vacina com esse nível de proteção”

O diretor do Instituto Butantan, Esper Kallás, se dedica ao atendimento de pacientes e estudo do HIV desde a década de 1990

 

Métodos atuais de prevenção

Esper Kallás participou do primeiro estudo que demonstrou a eficácia da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), publicado em 2010 no The New England Journal of Medicine e conduzido em colaboração com a Universidade da Califórnia e o Instituto Gladstone, ambos dos Estados Unidos. A terapia consiste em usar os antivirais com regularidade para evitar a infecção em caso de contato com o vírus – na pesquisa, a estratégia reduziu em 44% a prevalência do HIV. O trabalho influenciou na adoção do novo protocolo, que chegou ao Sistema Único de Saúde (SUS) em 2018. Hoje, mais de 100 mil brasileiros usam a PrEP.

Oferecida em 144 países, a terapia é a combinação de dois medicamentos (tenofovir e entricitabina) que bloqueiam a infecção. Segundo o Ministério da Saúde, a PrEP é indicada para qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade para o HIV, como aquelas que possuem histórico de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) ou que têm relações sem preservativo com múltiplos parceiros.

No entanto, um dos principais desafios da PrEP é a manutenção do uso dos comprimidos, que devem ser administrados todos os dias. Se a pessoa esquece muitas vezes de tomar o remédio, os níveis de proteção caem e ela fica novamente exposta à infecção. A atual taxa de descontinuidade do tratamento é de 29%, de acordo com o painel de monitoramento do Ministério da Saúde.

Os preservativos também ajudam a prevenir diferentes doenças sexualmente transmissíveis


Em junho deste ano, foi aprovado um novo fármaco injetável pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que pode ser administrado a cada dois meses, o cabotegravir. “A alternativa se mostrou três vezes mais eficiente do que o comprimido diário, já que evita problemas relacionados ao esquecimento e a dificuldades de manter o uso”, explica Esper, que também contribuiu no estudo do medicamento ao lado de pesquisadores norte-americanos.

O infectologista ressalta que a utilização da PrEP não substitui outras formas de profilaxia, como o uso da camisinha. Na verdade, quanto mais estratégias são combinadas, melhor a proteção contra o HIV e outras ISTs. “Mas é importante também respeitar as particularidades de cada indivíduo, que pode se adequar melhor a diferentes métodos. Senão, o sistema de prevenção falha.”

 

Da PEP à PrEP

Muito antes da hipótese de tomar a medicação pré-exposição ao HIV, surgiu na década de 1990 a PEP (Profilaxia Pós-Exposição), inicialmente destinada a profissionais da saúde que corriam risco de se infectar acidentalmente por meio de objetos contaminados, como agulhas. O tratamento foi sendo incorporado em outros casos, como para impedir a transmissão do vírus da mãe para o bebê durante a gestação e no parto, e para pessoas que sofreram violência sexual.

“Você cria uma barreira medicamentosa depois do contato com o vírus, para não dar tempo de ele entrar e se estabelecer dentro das células”, aponta o médico infectologista. “Quanto mais rápido a terapia era aplicada após a exposição, melhor era a eficácia. Então surgiu a pergunta: e se o remédio estivesse presente no momento do contato? Assim surgiu a PrEP.”

Embora ambas sejam compostas por medicamentos anti-HIV, a PEP e a PrEP têm indicações distintas: a primeira é usada em caráter de urgência, após uma situação de risco, e somente por 28 dias; a segunda consiste em um uso programado, por tempo indefinido, para a proteção de pessoas frequentemente expostas ao risco em relações sexuais.

A testagem em populações de risco é fundamental para detectar a infecção no início


Quando o HIV evolui para AIDS

As pessoas vivendo com HIV produzem anticorpos contra todas as porções do vírus, mas isso só acontece anos depois da infecção ter se estabelecido, quando a Síndrome da Imunodeficiência Humana já está instalada. Considera-se que o paciente progrediu da infecção com HIV para a AIDS quando seus linfócitos T CD4 (células de defesa) caem para níveis abaixo de 200 células por milímetro cúbico de sangue.

A evolução para AIDS geralmente ocorre quando as pessoas ficam sem tratamento. Como a infecção muitas vezes não causa sintomas nas primeiras semanas, é difícil identificá-la precocemente. Aos poucos e sem terapias adequadas, o sistema imune vai ficando enfraquecido, provocando sinais como gânglios linfáticos inchados, perda de peso, febre, diarreia e tosse. Com a imunidade comprometida, o paciente corre risco de ter doenças graves e até morrer ao contrair outras infecções virais e bacterianas. Por isso, a testagem recorrente em populações de risco é fundamental.

O vírus pode ser transmitido não só por meio da relação sexual, mas também por transfusões de sangue, leite materno, durante a gravidez e no parto, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Não é possível se infectar por meio do contato diário comum, como beijos e abraços, e nem pelo compartilhamento de objetos, alimentos ou água. Pessoas vivendo com HIV que estão sob tratamento e com carga viral indetectável não transmitem o patógeno aos seus parceiros.

Movimento da George House Trust, organização sem fins lucrativos do Reino Unido que dá suporte a pessoas vivendo com HIV (Manchester, 2022)


Lições e perspectivas da epidemia de HIV

Para Esper Kallás, que atua na luta contra a AIDS desde que os primeiros casos foram registrados no Brasil, um dos principais ensinamentos dessas quatro décadas de epidemia foi a importância de se antecipar e agir rapidamente ao identificar um agravo de saúde pública – como também foi observado com o surgimento da Covid-19. Além disso, para ele, é fundamental ouvir quem sofre com a doença.

“A epidemia de HIV enfrentou muito despreparo, negação, dificuldade de adotar medidas de controle e excesso de preconceito em relação às formas de transmissão. E muitas pessoas morreram por causa disso”

Os impactos da discriminação são incalculáveis. O infectologista se lembra de uma história que o marcou: uma paciente que descobriu que estava com AIDS anos depois da infecção, e suas duas filhas também estavam doentes. Ela tinha sofrido abuso sexual quando era adolescente, teve um aborto retido (retenção do embrião ou feto sem vida pelo útero) e desenvolveu uma infecção, precisando receber múltiplas unidades de sangue – e, na época, não havia testagem para HIV.

“A família a mandou embora de casa. Ela veio para São Paulo, tratamos ela e as crianças. Como a doença já estava avançada e ainda não havia tratamento adequado, as três acabaram falecendo, em meio ao absoluto abandono e preconceito”, relata.

Segundo Esper, a discriminação muitas vezes vinha também dos próprios profissionais da saúde, que se recusavam a tratar ou operar pacientes com HIV porque diziam que “não valia a pena”.

“A infectologia ajuda você a viver esse tipo de situação e evoluir com um pensamento e uma atitude de compaixão, de estar ao lado dos pacientes”

Para o futuro do combate ao HIV, o médico infectologista acredita que a ciência deve focar em três pilares: tornar o tratamento cada vez mais eficaz, com menos intervenções e mais qualidade de vida; combater complicações de longo prazo, seja do uso dos remédios ou do próprio HIV; e eliminar o vírus do organismo ou controlá-lo de forma definitiva, retirando a necessidade do tratamento prolongado e chegando à cura funcional.

E os esforços já começaram. Junto à equipe da USP, Esper faz parte do consórcio HOPE (sigla para Controle do HIV por Epigenética Programada, em português), que investiga a cura do HIV com base em uma estratégia de “bloquear, prender e retirar”, ou seja, silenciar a expressão do vírus dentro das células, removendo-o permanentemente do corpo. Ainda em estágios iniciais, a pesquisa reúne especialistas de 16 instituições de todo o mundo.



Reportagem: Aline Tavares

Fotos: Comunicação Butantan e Shutterstock