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“Ostra feliz não faz pérola”: após infância árdua, pesquisador do Butantan se tornou referência mundial em descrição de venenos e estudo de vacinas

Pupilo de Isaias Raw e com 30 anos de Instituto, Paulo Lee Ho ajudou a formar dezenas de profissionais e participa do desenvolvimento da vacina contra influenza H5N1


Publicado em: 30/11/2023

Foi aos 17 anos que Paulo Lee Ho viu o mar pela primeira vez. O encantamento pela natureza foi tanto que o levou a desistir de estudar Engenharia Eletrônica e decidir cursar Biologia. Nascido e criado na cidade de São Paulo em uma família humilde, o apoio (e, muitas vezes, sacrifício) dos pais e das duas irmãs foi crucial para que ele pudesse mergulhar na imensidão dos estudos. Quando criança, ele lembra de ouvir da mãe, analfabeta, que o único jeito para “gente como eles” era estudar. Hoje, aos 62, acumula uma contribuição de três décadas como pesquisador do Instituto Butantan, sendo um dos pioneiros da área de engenharia genética e caracterização de toxinas de venenos por sequenciamento genético.

“Eu não entendia por que as outras crianças tinham brinquedos e eu não. Lembro que a primeira bicicleta que tive foi a minha irmã que me deu comprada por prestação – ela começou a trabalhar com nove anos de idade”

Apesar das adversidades, que foram muitas, os estudos o levaram a se formar na Universidade de São Paulo (USP) e a trilhar um caminho incansável de dedicação à ciência e à saúde pública. Atualmente, Paulo é gerente de Desenvolvimento e Inovação de Produtos do Butantan, e ajuda a otimizar os processos de produção das vacinas bacterianas, além de desenvolver um imunizante contra a gripe aviária H5N1, cepa com potencial pandêmico.



Aprendiz, amigo e grande admirador do geneticista Isaias Raw, falecido em dezembro do ano passado, Paulo lembra bem do dia em que o viu pela primeira vez, durante a prova do concurso para pesquisador do Instituto Butantan, em 1986. No meio do teste, o então diretor do Instituto entrou na sala e disse “Quem é Paulo Lee Ho? Depois da prova, quero falar com você”. Foi o início de uma longa e importante jornada.

“Isaias tinha gostado do meu currículo e das minhas experiências. Acho que foi ele quem me escolheu na época. Eu ainda nem tinha concluído o mestrado, mas já tinha trabalhado em laboratório com projetos que interessavam a ele”

Na época, o pesquisador já era graduado em Biologia pela USP e fazia mestrado em Bioquímica na mesma instituição. Quando passou no concurso do Butantan, conseguiu transferência direta para o doutorado. Ele já tinha atuado como técnico de laboratório na Superintendência de Controle de Endemias (SUCEN) da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e no Instituto de Química da USP, onde adquiriu experiência com a rotina de pesquisa, lavando materiais, fazendo soluções e conduzindo experimentos.

No Butantan, uma das principais empreitadas que o biólogo participou e coordenou foi o Programa Genoma da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). O trabalho culminou na publicação de um artigo na capa da aclamada revista Nature, que decora a parede de seu escritório, e lhe rendeu a Medalha de Ciência e Tecnologia do Governo de Estado de São Paulo, além do troféu “A Árvore da Vida” (exposto no Museu de Microbiologia Isaias Raw), em 2000.

A pesquisa consistiu no sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, que acomete plantas economicamente importantes, como cafeeiros, oliveiras, laranjeiras, parreiras, entre outras, e é considerada uma das maiores ameaças à agricultura. Outros 191 pesquisadores integraram o grupo, que foi o 15º do mundo a ter expertise em sequenciamento genômico, colocando o Brasil no caminho do que era até então uma tecnologia inédita.

“O genoma da Xylella fastidiosa foi o primeiro genoma sequenciado de um organismo causador de doença em plantas. A partir deste trabalho, vários outros genomas [DNA] e transcriptomas [RNA] foram realizados, mostrando a capacidade técnica do grupo”


 

Formação de pesquisadores e descrição de venenos

Ao longo de 36 anos, Paulo colaborou com outros incontáveis projetos no Butantan e orientou diversos alunos e profissionais que hoje trabalham como pesquisadores na casa. Sua atuação foi importante para a formação de pessoas na área de biologia molecular de toxinas de venenos. “A maioria dos cientistas daqui que pesquisam toxinas passou pelo meu laboratório”, conta.

O pesquisador liderou a realização do primeiro transcriptoma completo de veneno da jararaca-ilhoa, a partir do aprendizado adquirido com o Programa Genoma-FAPESP. Para isso, criou uma biblioteca de DNA complementar obtido do RNA mensageiro purificado da glândula do animal. Desse conjunto de informações genéticas, foi possível identificar as toxinas do veneno, que eram as sequências mais abundantes. O trabalho, publicado em 2002, foi feito com seu então aluno Inácio Junqueira, hoje pesquisador do Instituto.

A equipe se tornou referência na área e realizou transcriptomas de glândulas de veneno de outras serpentes, como coral, jararaca e surucucu, além de outros animais peçonhentos como aranha-marrom, peixe niquim, sanguessugas e lagartas – trabalhos que ajudaram a trazer visibilidade para o Butantan.

“Com o transcriptoma, você consegue ter uma ideia global da composição dos venenos. E sabendo o que cada um dos componentes faz, você começa a entender melhor o quadro clínico dos envenenamentos”

Paulo contribuiu na produção de uma toxina recombinante do veneno da aranha-marrom (Loxosceles), conhecida por provocar lesões com necrose. Os cientistas confirmaram o principal componente responsável pelos efeitos do envenenamento a partir de sua produção em laboratório. A forma recombinante da toxina poderia ser usada para produzir um novo tipo de soro, eliminando a necessidade de extrair o veneno direto do animal, de acordo com testes de prova de conceito em animais publicados em 2008.

A ideia de produzir soros usando proteínas recombinantes, e não mais o veneno inteiro, já tinha sido explorada pelo pesquisador durante os seus primeiros anos no Butantan, na década de 1990. Em trabalho inovador publicado no Journal of Toxicology: Toxin Reviews, Paulo clonou os primeiros genes das toxinas de uma cobra coral com o objetivo de desenvolver toxinas recombinantes. Isso porque a extração era um desafio e, muitas vezes, resultava em quantidades insuficientes de veneno para a imunização dos cavalos usados na produção do soro.

Na mesma época, sob a direção de Isaias, o Instituto trabalhava para ampliar a produção de soros, já que o país tinha perdido seu principal produtor, uma empresa privada que teve fábricas fechadas por problemas de qualidade. Hoje, o Butantan é responsável pela quase totalidade dos soros antivenenos e antitoxinas fabricados no Brasil e fornece ao governo federal mais de 500 mil frascos do produto anualmente.


Prevenção de doenças e pandemias

Durante os anos 2000, Paulo foi saindo do mundo das serpentes e começou a explorar outra linha de pesquisa: o desenvolvimento de vacinas. Segundo ele, tudo começou quando uma pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Miriam Tendler, identificou um antígeno que era candidato vacinal para a esquistossomose. Popularmente chamada de “doença da barriga d’água”, ela é causada por um parasita e acomete regiões com saneamento básico precário.

“Nós colaboramos na produção e estabilização desse antígeno na forma recombinante. Hoje, a vacina contra esquistossomose está sendo testada pela Fiocruz em ensaio clínico de fase 2 na África”

Outra doença infecciosa de importância no Brasil, que tem sido investigada pelo Butantan, é a leptospirose. Paulo participou do sequenciamento do genoma da bactéria Leptospira interrogans, conhecimento que permite o estudo de um possível imunizante. “Nossa equipe identificou recentemente uma família de antígenos que têm um papel relevante na patogênese da doença e que podem ser usados na formulação de uma vacina candidata”, afirma.

Pensando no principal meio de infecção, Paulo também buscou desenvolver vacinas de administração via mucosa, como nasal, por exemplo. Para isso, construiu o primeiro gene sintético do Butantan, que era uma subunidade da toxina causadora da cólera, para ser usado como adjuvante. “No entanto, foi descoberto que esse tipo de sistema poderia danificar o nervo olfativo, então tivemos que seguir outro caminho”, explica. Os pesquisadores chegaram a explorar outro modelo de vacinas de mucosa utilizando lactobacilos recombinantes, produzindo conhecimento que pode ser aproveitado em futuros estudos.

A preparação contra epidemias e pandemias, que levou à criação da fábrica da vacina Influenza do Butantan, certificada em 2011, também faz parte das atividades de Paulo Lee Ho como cientista. Ele trabalha hoje no desenvolvimento de um adjuvante vacinal para potencializar a resposta da vacina da gripe e de imunizantes contra a influenza H5N1 e H7N9. Ambas as cepas têm potencial pandêmico e apresentam taxa de letalidade de 50% e 40%, respectivamente.

“O adjuvante e as vacinas H5N1 e H7N9 são projetos muito promissores, que nos preparam para enfrentar possíveis pandemias de influenza. Fico muito orgulhoso de poder participar desses trabalhos”

O pesquisador foi, ainda, um dos responsáveis pelo pontapé inicial do projeto da ButanVac, vacina contra a Covid-19 em desenvolvimento pelo Butantan, devido às conexões feitas com cientistas do exterior durante sua atuação como diretor de Produção, entre 2012 e 2016. A grande vantagem do imunizante é poder ser produzido em ovos, mesma plataforma já utilizada para a vacina da gripe, especialidade do Instituto.

Ele também dirigiu o Centro de Biotecnologia do Butantan (2002-2010), é editor acadêmico da revista científica PLoS One desde 2008 e tornou-se editor da Toxins em 2023, além de possuir patentes publicadas no Brasil e no exterior. Já foi homenageado com a Medalha de Excelência em Desenvolvimento Farmacêutico pela Academia de Ciências Farmacêuticas (2016), a Medalha Albas Lavras da Associação de Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (2016) e o Prêmio de Pesquisador Sênior pela Biotech Space (2016).


Inspiração que percorre gerações

Para além de prêmios e contribuições científicas, poucos pesquisadores podem dizer que escreveram artigos com seus filhos. Esse é um dos maiores orgulhos de Paulo Lee Ho, que publicou um estudo com a filha Joana, bióloga, em 2021. A irmã gêmea da jovem, Paula, também seguiu o caminho da Biologia – afinal, o exemplo na família vinha em dobro: a mãe das meninas, esposa do pesquisador, é bióloga e trabalha no Instituto Oceanográfico da USP.

As gêmeas passaram no vestibular no mesmo ano e fizeram a faculdade juntas. Suas carreiras acabaram se cruzando com as dos pais: Joana fez mestrado em Ciências no Butantan sob orientação da pesquisadora Patrícia Aniz, que havia sido orientada por Paulo, e Paula fez estágio no Instituto Oceanográfico.

Antes de servir de inspiração para as filhas, o cientista foi influenciado por seu mentor Isaias Raw, que lhe ensinou tudo sobre o lado humano de fazer pesquisa e sobre responsabilidade social. Para Paulo, o lugar que o Butantan alcançou se deve à liderança de Isaias, que sempre pensou muito no coletivo e na importância de se fazer vacinas eficazes, seguras e sobretudo acessíveis e de baixo custo.

“Eu sinto que fomos referência em casa, e que eu fui e sou referência aqui no Butantan, o que me traz muita satisfação. E grande parte disso eu devo ao Isaias: o mundo seria melhor se tivesse mais pessoas como ele”

 

“Ostra feliz não faz pérola”

Paulo Lee Ho nasceu em 10 de julho de 1961 e cresceu no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Fã de cinema e teatro, gosta de ler e viajar para conhecer outras culturas. O senso de humanidade que aplica na pesquisa, com os ensinamentos de Isaias, se estende à preocupação com o meio ambiente e à luta pela sustentabilidade. Ele acredita que investir na educação dos jovens, especialmente no quesito da responsabilidade coletiva, social e ambiental, é a chave para que eles possam construir um futuro melhor.

Foi por acaso que ele decidiu estudar Biologia – na época, nem entendia muito bem o que era fazer ciência na prática, e a mãe tinha ficado decepcionada com sua escolha, pois queria que ele fosse engenheiro, médico ou advogado. Mas não foi por acaso que Paulo se tornou um pesquisador de prestígio, que ajudou na formação de tantos outros cientistas, fez contribuições importantes na área de vacinas, biotecnologia, genômica, toxinologia e biologia celular, e deixou a mãe orgulhosa ao aparecer em publicações e reportagens na televisão.

O cientista, assim como todos que escolhem essa profissão de “questionador”, nem sempre teve respostas positivas para as perguntas que fez. Muitas das suas hipóteses e experimentos desembocaram em becos sem saída. Para Paulo, no entanto, a importância está justamente em fazer essas perguntas. Suas conquistas são resultado da perseverança diante das dificuldades e da coragem de se arriscar e aproveitar as janelas de oportunidade que apareceram em seu caminho.

 

“’Ostra feliz não faz pérola’, como diz o livro de Rubens Alves. Se você está acomodado, confortável, você não vai produzir nada importante, bonito. É preciso pensar grande, ter desafios: é assim que conseguimos fazer algo importante para a humanidade e viver um sentimento de realização, de felicidade”

 


Reportagem: Aline Tavares

Fotos: José Felipe Batista/Comunicação Butantan