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“Desistir jamais”: inspirada pela avó, pesquisadora nordestina que estuda peixes venenosos conquistou sonho de ser cientista no Butantan

Mônica Lopes veio de Maceió para São Paulo aos 21 anos e fez do Instituto sua segunda casa, fazendo importantes contribuições à área de toxinologia


Publicado em: 08/01/2024

Foi entre a calmaria das águas mornas de Maceió (AL) e a vida agitada de São Paulo (SP) que Mônica Valdyrce dos Anjos Lopes Ferreira, 56, encontrou seu equilíbrio. Nascida na capital nordestina, ela cresceu curiosa pela natureza da fazenda de seus pais e das praias que frequentava. Embora tenha pensado em ser médica ou psicóloga, acabou sendo conquistada pela biologia, ingressando na graduação da Universidade Federal de Alagoas em 1987. O que ela não imaginava é que passaria as décadas seguintes vivendo na selva de pedra, longe de casa, e trabalhando no Instituto Butantan – onde implantaria uma nova linha de pesquisa sobre peixes peçonhentos e um novo modelo animal de estudo: o zebrafish (Danio rerio).

Tudo começou quando, no segundo ano da graduação, Mônica conheceu o imunologista Ivan Mota, então diretor do Laboratório de Imunopatologia do Butantan. O pesquisador visitou a faculdade de Maceió para ministrar um curso intensivo de imunologia, que chamou a atenção da jovem estudante. “Aquilo foi me cativando, porque eu fui entendendo quem eu era, as minhas células, como meu corpo se defendia, qual era a importância das vacinas”, conta. 

Ao final do curso, Ivan convidou alguns alunos para uma entrevista, incluindo Mônica – o selecionado teria a oportunidade de fazer um estágio em seu laboratório, em São Paulo. Ela ficou tão entusiasmada que mal conseguiu dormir na noite anterior da seleção: a ansiedade era tamanha que nem mesmo contou para os pais.

“A primeira pergunta que Ivan me fez foi qual era minha praia favorita de Maceió. Ele era pernambucano e um apaixonado por imunologia. Era encantador conversar com ele”, lembra. Para a surpresa da jovem, a entrevista foi um sucesso e ela se viu diante de um impasse: como contaria para a família que passaria um mês em São Paulo, sendo que nunca tinha saído de casa? 


“Fiz um cafezinho, chamei meus pais e minha avó e disse: ‘Eu tenho uma grande notícia. Fui selecionada para um estágio no Instituto Butantan!’”

E foi com total apoio dos familiares que a bióloga seguiu para a capital paulista em julho de 1988, durante as férias. Ela ficou hospedada em um pensionato, chegava bem cedo no laboratório e passava as noites estudando o livro de autoria de Ivan Mota, “Imunologia Básica e Aplicada”. Teve contato com diferentes laboratórios, museus e pesquisadores. “Aí eu descobri que realmente gostava de ciência. Fiquei encantada pelos projetos, pelos animais peçonhentos, pela possibilidade de você ter um questionamento e poder fazer algo para comprovar.”

De volta a Maceió, uma greve na universidade levou Ivan a convidar Mônica para voltar a São Paulo e dar seguimento ao estágio. Era a oportunidade de sua vida e ela não teve dúvidas: mudou-se definitivamente para a capital paulista e transferiu sua graduação para a Universidade de Guarulhos, onde concluiu os estudos em Biologia.

Toda essa mudança não foi nada fácil – ficar longe da família, morar com pessoas desconhecidas, viver em uma cidade grande, enfrentar preconceitos pelo modo como falava e se comportava. Mas a paixão da nordestina pela pesquisa a manteve firme: fez iniciação científica no Butantan, e mestrado e doutorado direto em Imunologia no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), sob orientação de Ivan Mota. Ela já sabia que aquele era o seu destino.

“Ser cientista é dinâmico, pulsante, e me permite aprender todos os dias, orientar pessoas, divulgar ciência e me reinventar. É uma carreira que me tira da zona de conforto o tempo todo – e eu adoro desafios”


 

Um peixe especial

A trajetória de Mônica na pesquisa é marcada por um companheiro inusitado que lhe trouxe grandes oportunidades: o peixe niquim (Thalassophryne nattereri), cujo nome, de origem, tupi-guarani, significa “feio e espinhoso”. Pouco antes de ingressar no mestrado, enquanto passava férias em Maceió, ela ouviu falar sobre um peixe que estava causando acidentes de envenenamento na região. Como sua mente estava a milhão com o tema “animais peçonhentos”, devido à recente experiência no Butantan, a bióloga logo enxergou o niquim como um possível objeto de estudo. Mas esse não era o plano de seu orientador, que a queria trabalhando com Doença de Chagas.

“Quando sugeri a ideia para o professor Ivan, ele disse: ‘se você pescar o peixe, extrair o veneno e escrever o projeto, eu oriento você’. Então comecei a circular por todas as lagoas, rios e mares de Maceió à procura do niquim”

A cientista se tornou conhecida entre os pescadores da cidade, que a ajudaram em sua saga. Um dia, um pescador da Lagoa Mundaú lhe telefonou: tinha conseguido um balde cheio de exemplares do niquim, bastava ela ir buscar. Mônica começou a estudar o peixe na universidade, extraiu seu veneno, fez o projeto e voltou do recesso com o pedido do professor em mãos. No avião, em um saco grande cheio d´água do próprio local onde o animal era coletado, armazenado dentro de uma caixa de isopor, ela levou alguns niquins para mostrar à equipe, além de amostras do veneno. 

“O niquim é muito resistente, isso ajudou muito. Nos anos seguintes, sempre que ia para Maceió, fazia a extração do veneno e devolvia os animais ao seu local de morada. Hoje em dia, quase não extraímos peçonha, pois já desenvolvemos peptídeos sintéticos”, explica.

Seu bom desempenho no mestrado, analisando os componentes e os efeitos do veneno, lhe permitiu migrar para o doutorado direto e defender a tese "Thalassophryne nattereri: do veneno à terapia” em 2000. Desde então, os trabalhos relacionados ao niquim não pararam mais – ela publicou mais de 20 artigos científicos sobre o assunto e mais de 50 sobre peixes peçonhentos no geral.

O niquim é encontrado no litoral Norte e Nordeste do Brasil, e seu veneno provoca dor local intensa, inchaço e manchas vermelhas na pele, seguidos de uma necrose (morte de tecidos) que persiste por vários dias e é de difícil cicatrização. Como não existe tratamento específico, o acidente pode levar a uma ferida necrótica crônica. A estimativa é que ocorram centenas de casos de envenenamento por ano, segundo análise publicada no Journal of Venomous Animals and Toxins including Tropical Diseases, porém há muitos acidentes não notificados.

Para combater esse problema de saúde pública, Mônica e sua equipe têm se dedicado ao estudo de um soro, que está sendo testado em animais e já demonstrou capacidade de neutralizar as principais toxinas do veneno do niquim e também de outros animais marinhos peçonhentos, como peixe-escorpião, arraia de água doce e bagre-amarelo. Os resultados foram publicados no International Journal of Molecular Sciences em maio de 2023.


 

Zebrafish: do laboratório às escolas

A relação com o mundo marinho não parou nos peixes peçonhentos. Em 2004, Mônica passou no concurso para pesquisador científico no Butantan e, em 2007, migrou do Laboratório de Imunopatologia para o Laboratório de Toxinologia Aplicada, onde está hoje. Foi nessa época que ela trabalhou na implantação da Plataforma Zebrafish, que integra o Centro de Toxinas, Resposta-imune e Sinalização Celular (CeTICS).

O zebrafish, ou paulistinha, é um pequeno peixe que mede de 3 a 4 centímetros e possui uma genética 75% parecida com a do ser humano. Por intermédio de Hernan Chaimovich, então diretor da Fundação Butantan, a bióloga conheceu o zebrafish como modelo animal para estudos científicos – ele era utilizado por um pesquisador colaborador de Hernan no Chile. Até então, o Butantan trabalhava somente com camundongos, e havia uma necessidade de expandir os modelos in vivo para ampliar as possibilidades de pesquisa.

Mônica logo se interessou e começou a estudar a fundo o paulistinha: em um ano e meio, viajou para o Chile, Portugal, e passou pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), referência no uso do zebrafish. Aprendeu a criar e manejar o animal, com o objetivo de viabilizar a construção de um biotério no Butantan, que contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 

Em 2015, a plataforma foi inaugurada, e a pesquisadora desenvolveu um curso de Criação e Manejo de Zebrafish, que nos últimos anos contou com a participação de mais de 400 cientistas de todo o Brasil. Hoje, o biotério tem capacidade de criar 12 mil peixes adultos.


Mas por que esse modelo de estudo é tão interessante? Segundo Mônica, além da alta similaridade genética com humanos e do fácil manejo, existem vantagens econômicas, de rendimento e de agilidade na pesquisa. Cada acasalamento rende de 200 a 300 embriões, que são os alvos dos experimentos e das modificações genéticas usadas para estudar doenças.

“O zebrafish possui embriões e larvas transparentes, facilitando a visualização de mudanças morfológicas sem precisar de procedimentos invasivos, como retirada de órgãos. E ele se desenvolve em apenas 72 horas, o que otimiza o tempo dos estudos”


Preocupada com a aproximação entre ciência e sociedade, Mônica também viu no paulistinha uma oportunidade de ouro para fazer divulgação científica. A ideia resultou em diversos eventos, exposições e oficinas, como o Plataforma Zebrafish de Portas Abertas, que recebe crianças e adultos no biotério para uma visita guiada, e o Paulistinha Chega às Escolas, projeto educacional realizado em escolas públicas e particulares do estado de São Paulo. Ela conta que as pessoas ficam fascinadas ao descobrir como um peixinho pode ser tão importante para a ciência.

“Ver as reações das crianças, receber cartinhas de agradecimento, é a coisa mais linda do mundo. Este é o meu ofício, não poderia ser outro, porque só ele me permite esses tantos encontros”

Outro enfoque importante que Mônica faz questão de dar em suas palestras para o público infantojuvenil é mostrar que a ciência é para todos, combatendo a imagem estereotipada do cientista homem, branco e mais velho. Com isso, busca promover a diversidade e inspirar os jovens a seguirem esse caminho. “Cientista pode ser mulher, jovem, idoso, negro, pode ser qualquer pessoa. Temos que quebrar essas barreiras”, reforça.


 

Lembranças bordadas

Longe das pipetas e da agitação do trabalho, com uma linha e uma agulha, o pensamento de Mônica vai para um lugar mais calmo. O bordado em bastidor é um de seus hobbies preferidos, que não deixa de refletir suas paixões: desenhos de peixes, capas de revistas científicas e figuras de artigos enfeitam a parede da escada que leva à Plataforma Zebrafish.

Se hoje Mônica acumula 34 anos de dedicação ao Butantan, foi por sua coragem em sair de Maceió para enfrentar os desafios de São Paulo, por amor à biologia, pelo apoio que sempre teve de seus pais e, em especial, pela lição que aprendeu da avó: desistir, jamais. Para ela, “não é a distância física que nos separa dos nossos.”

Mãe de sua mãe, Alcina Araújo dos Anjos é a maior inspiração e referência de Mônica. Professora dedicada, sua avó encontrava em todos os lugares que frequentava alunos e ex-alunos, que sempre a tratavam com carinho e admiração. Hoje, quando dá aula, a pesquisadora lembra da avó e da importância de ser referência para alguém.

“Sou muito feliz, realizada com o que faço, vivo na paz e tenho muita coisa ainda para fazer. E quem quiser, pode me acompanhar”

 

 

Reportagem: Aline Tavares

Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan