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Dia da Mulher: líder em inovação, empreendedora nata e amante da natureza, ela vive sonho de pesquisar medicamentos no Butantan há 40 anos

Criada em uma pequena vila rural de imigrantes europeus, Ana Marisa Chudzinski-Tavassi construiu centros de pesquisa de ponta e se tornou liderança científica no Instituto


Publicado em: 07/03/2025

Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan e arquivo pessoal

 

Não foi por acaso que a menina de uma pequena comunidade rural de Santa Catarina, que sonhava em “fazer remédios”, alcançou o título de membro titular da Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil. Pesquisadora científica do Instituto Butantan há quase 40 anos, diretora do Centro de Desenvolvimento e Inovação (CDI) e coordenadora do Centro de Excelência para Descoberta de Novos Alvos Moleculares (CENTD), Ana Marisa Chudzinski-Tavassi carrega no DNA o amor pela ciência e pela inovação. O que nem todos sabem é que por trás de tantas conquistas, existe uma história pautada em valores familiares e figuras femininas potentes.

Bisneta de poloneses que imigraram para o Brasil, Ana Marisa, 64, cresceu no distrito de Felipe Schmidt, perto de Canoinhas (SC). Uma escola, uma igreja, uma sociedade recreativa, uma farmácia, um açougue e alguns poucos comércios locais – como o armazém dos pais – formavam o mundo que ela conhecia. Enquanto o pai saía cedo para trabalhar na fazenda, a mãe e os avós maternos cuidavam do comércio da família. Até as crianças ajudavam: algumas tarefas do armazém eram delegadas a Ana e aos irmãos, que recebiam uma pequena recompensa no final de cada dia, no fechamento do caixa.

“Fomos praticamente treinados para empreender. A gente era envolvido em tudo, sabia vender, não podia errar na conta e tinha que anotar tudo na caderneta”

Ana Marisa morava em uma casa ampla e sempre movimentada: o avô era muito conhecido por exercer o papel de intendente local, representando a prefeitura de Canoinhas, e conversava com todo mundo, dos moradores aos andarilhos que passavam por ali. A menina aprendeu a nunca fazer distinções – em Felipe Schmidt, lembra, não importava que roupa a pessoa usava, a casa em que morava ou se tinha carro, apenas se era uma boa pessoa. Já a mãe, amante da arte, era famosa pelos belos bordados e vestidos de festa que fazia para as moças da vila. Foi com ela que Ana aprendeu o valor da independência.

 

Ana Marisa Chudzinski-Tavassi é pesquisadora do Butantan desde 1987

 

“Minha mãe nunca gostou muito de tarefas do lar; ela fazia, mas não gostava [risos]. Ela sempre prezou por um super ‘controle de qualidade’ no seu trabalho – por ser tão eficiente, recebia muita gente da comunidade e até dos arredores. Também sempre fez questão de administrar o próprio dinheiro”, conta a pesquisadora.

Ao mesmo tempo em que crescia rodeada de empreendedores, Ana Marisa desenvolveu um verdadeiro encanto por remédios. Afinal, entre os variados itens vendidos no armazém da família, havia curativos, comprimidos e medicamentos fitoterápicos, e o avô passava horas estudando as propriedades medicinais das ervas, o que despertava sua curiosidade. Ainda criança, a jovem tinha certeza que queria ser farmacêutica.

Como o Grupo Escolar Benedito Therézio de Carvalho, onde ela estudava, ia só até o 4º ano, foi preciso mudar de cidade para dar seguimento ao ensino fundamental e médio. A família foi para União da Vitória (PR) e lá construiu uma nova casa e mais um armazém. Enquanto os avós maternos ficaram em Felipe Schmidt cuidando do comércio original, a neta seguiu firme nos estudos – o pai, Juca, sempre cobrou excelência dela e dos irmãos Arlete, Edilson e Edson, reforçando que o “trabalho” dos filhos era estudar.

“O objetivo era passar na Universidade Federal do Paraná, que era mais perto. Não existia opção de fazer faculdade particular, isso não fazia parte da nossa realidade”

Com determinação herdada da família, Ana Marisa fez um cursinho intensivo e passou direto no vestibular. Aos 17 anos, entrou na graduação em Farmácia e Bioquímica na Universidade Federal do Paraná e partiu rumo a Curitiba para um novo desafio, que duraria de 1978 a 1982.

 

Ana Marisa relembra infância com os irmãos em Felipe Schmidt

 

O início de um sonho – deu tudo certo

Na capital do Paraná, Ana Marisa inicialmente morou na casa de dona Vanda Piotrowski, uma senhora conhecida da família – essa foi a condição para que o pai deixasse a jovem sair sozinha de União da Vitória. Depois, mudou-se para uma casa de estudantes, onde morou com várias colegas. Logo no início da faculdade, conheceu sua grande amiga Fernanda Boff, também aluna do curso de Farmácia, que anos mais tarde se mudaria com ela para São Paulo.

Durante a graduação, o maior interesse da pesquisadora era estudar o sistema imune, que ela considerava o mais inteligente do corpo humano. Nas férias, quando voltava para casa, o pai tentava convencê-la a abrir um novo negócio da família na cidade, que ficaria sob sua responsabilidade: a farmácia Chudzinski. Mas a jovem queria mesmo colocar a “mão na massa” e desenvolver medicamentos.

No último ano do curso, a universidade organizou viagens para que os alunos visitassem indústrias farmacêuticas. Junto com sua turma, Ana Marisa conheceu a Nestlé e o Instituto Vital Brazil, no Rio de Janeiro, e o Instituto Butantan, em São Paulo. Quando o ônibus passou pela portaria da Avenida Vital Brasil, ela se deparou com a imensidão do verde e decidiu prontamente: trabalharia no Butantan. Enquanto os colegas faziam a visita guiada, Ana Marisa já perguntava onde se inscrever para um estágio de férias. 
 

 Primeira visita ao Instituto Butantan com colegas da UFPR, em frente ao Museu Biológico

 

O Butantan era familiar a ela desde criança: além da prefeitura, o avô também trabalhava nos Correios, onde recebia as famosas caixas de madeira criadas por Vital Brazil para transportar serpentes capturadas em áreas rurais. Naquela época, a população enviava os animais ao Instituto e recebia em troca ampolas de soro antiofídico – prática extinta há muitos anos. Curiosamente, a estação ferroviária da região de Felipe Schmidt chamava-se Jararaca.

“O Butantan tinha pesquisa, produção, tudo o que eu queria. E era uma fazenda: tinha árvores, flores, gente caminhando... A identidade do lugar tinha tudo a ver comigo”

Ana Marisa conseguiu o estágio e passou as férias de julho de 1982 em São Paulo, trabalhando com a pesquisadora Hisako Higashi no setor de Imunologia, que produzia soros e vacinas contra difteria e tétano e soro antibotulínico. Aprendeu sobre a rotina de produção, mas ainda desejava uma oportunidade em pesquisa. Por indicação de Hisako, Ana Marisa conversou sobre uma possibilidade de estágio com o pesquisador Ivan Mota, que na época dirigia um Centro de Imunologia da Organização Mundial da Saúde (OMS) sediado no Instituto.

“Ivan Mota foi muito legal. Ele disse que eu já podia pegar o jaleco e começar, mas eu precisava voltar ao Paraná e terminar a faculdade. Quando me formei, mudei para São Paulo de vez e comecei o estágio em Imunologia, orientada pela pesquisadora Adenir Perini”, conta a farmacêutica.

 

A amiga Fernanda Boff Gomes com o marido Jackson Gomes, e Ana Marisa ao lado do marido Henrique

 

Entre pipetas e cantorias

Ana Marisa veio para a capital paulista em 1983 com sua fiel escudeira, Fernanda, que também conseguira um estágio no Butantan. Juntas, elas desbravaram a cidade grande e iniciaram a construção de suas carreiras. Fora dos laboratórios, faziam curso de inglês e participavam do Coral da Universidade de São Paulo (USP), onde criaram importantes vínculos – até hoje, o grupo se reúne de tempos em tempos. Naquela turma, conheceram Ligia Amadio, que mais tarde tocaria órgão no casamento de Ana Marisa e acabaria por se tornar uma das maiores maestras brasileiras. Foi um período de amadurecimento, novas amizades e muito trabalho.

“Fernanda é minha família. Ela achava maluquice que eu vinha trabalhar aos sábados e domingos, e era ela que me puxava para fazer tudo e conhecer a cidade. Se eu estivesse sozinha, talvez teria sentido medo das aventuras; com ela, nunca tive medo”

Após um ano se dedicando ao Centro de Imunologia, Ana Marisa conseguiu uma bolsa de aperfeiçoamento profissional no Laboratório de Fisiopatologia Experimental do Butantan. A equipe era dirigida pela pesquisadora Eva Kellen, que estudava moléculas da saliva de sanguessuga para identificar possíveis terapias contra trombose. A linha de pesquisa tinha tudo a ver com o que a farmacêutica sonhava fazer desde pequena.

 

Coleta de sanguessugas no Rio Grande do Sul para estudar novos anticoagulantes

 

Por intermédio de Eva, a jovem conheceu uma professora da Faculdade de Farmácia da USP de Ribeirão Preto, Zuleika Rothschild, que a indicou para a pós-graduação na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Lá, Ana Marisa fez mestrado e doutorado em Ciências Biológicas, sob orientação da pesquisadora Misako Uemura Sampaio e do pesquisador Claudio Sampaio. Parte das pesquisas era feita na Unifesp, e outra parte no Butantan.

No mestrado, defendido em 1989, a cientista estudou a purificação e caracterização de moléculas do sangue da jararaca (Bothrops jararaca); no doutorado, pesquisou proteínas anticoagulantes das glândulas salivares da sanguessuga Haementeria depressa – trabalho que lhe rendeu uma bolsa de doutorado sanduíche no Instituto Pasteur, em Paris, sob orientação do pesquisador Cassian Bon. Mais tarde, em 2001, fez pós-doutorado na Academia Nacional de Medicina de Buenos Aires, na Argentina, onde estabeleceu forte colaboração com a cientista Mirta Schattner.

O título oficial de pesquisadora, no entanto, veio antes do esperado. Em 1987, quando ainda estava no mestrado, Ana Marisa foi surpreendida com a abertura de um concurso para pesquisador científico no Butantan. Sem a pós-graduação concluída e com pouca experiência no currículo, ela sabia que seria preciso um grande esforço para passar. Mas conseguiu.

“Eu estudei, estudei e estudei, à exaustão, e fui muito bem na entrevista. Passei em primeiro lugar”

 

A pesquisadora ao lado de sua primeira mentora, Eva Kellen, e colegas de laboratório, em 1988

 

Construindo caminhos

Ana Marisa costuma dizer que é uma construtora. Sua trajetória no Butantan é prova disso: ajudou a montar o primeiro laboratório de Biologia Molecular, no Laboratório de Fisiopatologia Experimental; a estabelecer projetos de parcerias público-privadas com indústrias nacionais e internacionais; a montar plataformas tecnológicas para rotas de desenvolvimento; e a implantar Boas Práticas em laboratórios e em biotérios de manutenção. Participou, ainda, do primeiro Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) do Butantan, o Centro de Toxinologia Aplicada, aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) em 2000. Mais tarde, em 2016, essas contribuições embasaram a sua indicação para dirigir o Centro de Desenvolvimento e Inovação (CDI) e o Centro de Excelência para Descoberta de Novos Alvos Moleculares (CENTD).

O grande objetivo dessas ações, e motivação diária de Ana Marisa, é chegar em novos produtos para tratamento ou prevenção de enfermidades – uma tarefa nada simples, que requer uma equipe altamente especializada e uma infraestrutura de ponta. No começo dos anos 2000, a inovação ainda dava seus primeiros passos no Brasil, e foi preciso desvendar o universo da propriedade intelectual, contratos, tecnologias e parcerias conforme as pesquisas avançavam. Preocupada com a formação de novos profissionais na área, Ana Marisa também liderou uma iniciativa para criar um MBA em Gestão da Inovação em Saúde no Butantan.

“É uma construção: todos esses anos nós fomos montando essas estruturas, e eu sempre lutei para obter investimento e ter os melhores equipamentos. Hoje estamos no estado da arte e temos vários projetos com potencial de virar produto”

Enquanto isso, era preciso orientar estudantes, pesquisar, escrever artigos, participar de eventos científicos. Ao longo da carreira, Ana Marisa publicou mais de 150 artigos e cerca de 200 resumos em congressos, formou 27 alunos de doutorado, 29 de mestrado e 26 de pós-doutorado, além de estudantes de iniciação científica. Possui 25 patentes depositadas no Brasil e no exterior e recebeu 19 prêmios, entre eles o Prêmio Octávio Frias de Oliveira (2016), do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, e o Prêmio CAPES de Tese (2010), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

 

 

Entre suas maiores contribuições científicas, estão a descrição de um anticoagulante extraído da saliva de sanguessugas; uma proteína antitumoral desenvolvida a partir do DNA da saliva do carrapato-estrela; e o estudo do envenenamento pela lagarta Lonomia obliqua, que foi importante para a indicação de tratamento e para o desenvolvimento do soro antilonômico fabricado pelo Butantan. A pesquisadora também atuou no enfrentamento da pandemia de Covid-19, liderando o projeto multidisciplinar do soro anti-Covid, que rendeu uma patente e uma publicação na revista Scientific Reports.

Em 1994 e 1998, a vida acadêmica ganhou um novo significado: foi nestes anos que nasceram os filhos Ana Paula e Tomaz, respectivamente. A rotina de mãe foi uma nova camada na vida familiar, mas não separou Ana Marisa do trabalho: embora tendo a maioria dos familiares ainda no Sul, a pesquisadora sempre contou com o suporte do marido, Henrique, e conseguiu construir uma rede de apoio que a permitia levar os filhos onde precisasse ir – os pequenos eram conhecidos por todos os colegas de trabalho e frequentadores dos congressos.

“Depois da escola, meus filhos vinham para o Butantan e ficavam brincando no gramado perto do Hospital Vital Brasil. Eles sempre acompanharam tudo, valorizaram, respeitaram. Somos uma família cheia de orgulho uns dos outros”

 

Ana Marisa ao lado do marido Henrique Tavassi e os filhos Ana Paula e Tomaz

 

“O que você decidir fazer na vida, você vai fazer”

A farmacêutica diz que sua história é “uma batalha o tempo todo”. E nos momentos mais marcantes dessa trajetória, sempre houve alguém para estender a mão e ajudá-la – diversas vezes, essas pessoas foram mulheres. A mãe Amélia, as avós Ana e Valéria e a irmã Arlete, que ensinaram o valor da independência; a professora do primário, dona Alice, com quem conversa até hoje; dona Vanda Piotrowski, que a recebeu em sua casa no início da faculdade; suas chefes e mentoras Adenir Perini, Hisako Higashi e Eva Kellen; Zuleika Rothschild, que a indicou para a pós-graduação; a amiga Fernanda, sua companhia de muitos anos; as amigas Ligia e Geny, do Coral, grandes inspirações por estarem entre as poucas mulheres da engenharia da USP na década de 1980; entre tantas outras que cruzaram e cruzam seu caminho.

“A lição que aprendi é que todos nós, mulheres e homens, temos condição de construir, temos o poder de fazer. Como mulher, você tem que se destacar por você, e nunca esquecer que a sua opinião importa”

Dos pais e de sua vida em Felipe Schmidt, Ana Marisa leva na bagagem a positividade e o dinamismo. Em casa, a única discussão que acontecia era para decidir qual seria o passo seguinte – os pais estavam sempre fazendo, arrumando e reinventando planos e atividades. “Nunca tivemos um clima ‘para baixo’, sempre foi para frente. Meu pai faleceu aos 89 anos, mas ele nunca envelheceu. Ele sempre me dizia: ‘O que você realmente decidir fazer na sua vida, você vai fazer, basta trabalhar para isso’”, lembra a pesquisadora.
 

A pesquisadora recebeu o título de membro titular da Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil em cerimônia no Butantan

 

No Ensino Médio, a jovem convivia com filhos de pessoas renomadas e sonhava em também ter seu sobrenome reconhecido por um grande feito, como forma de homenagear a família. “A gente tinha acabado de vir do interior e não fazia parte daquela sociedade. Eu acreditava que, cursando uma boa universidade, teria a chance de realizar esse sonho”, comenta Ana Marisa. Quarenta anos depois, o ápice do reconhecimento veio com a incorporação à Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil, em setembro de 2024, na presença da família, amigos e antigos professores.

Hoje, ocupando posição de liderança em um dos maiores produtores de imunobiológicos da América Latina, Ana Marisa segue vivendo em constante movimento, como os pais faziam, e sempre alinhada aos valores da família. No trabalho, tem orgulho dos estudantes e da equipe que formou ao longo dos anos. Na vida off, é “viciada” em caminhar, viajar, fazer programas com a família e receber amigos em casa. Quando deseja escapar da agitação de São Paulo, visita os familiares em União da Vitória e encontra refúgio na chácara, onde adora ficar em contato com a terra, as plantas e os animais.

Uma de suas lembranças favoritas é da festa de seu casamento no Centro de Tradições Gaúchas (CTG), preparada pelos familiares, que não se preocuparam muito com os “protocolos”. O resultado foi uma mistura eclética de música clássica, orquestrada pela amiga Ligia, uma banda alemã, organizada pelo irmão Edilson, e um churrasco feito com fogo de chão – a única “preocupação” do pai para uma festa perfeita. A celebração ficou para a história e é comentada até hoje.

“A vida, para mim, sempre foi isso. Não precisa de grandes arrumações: as coisas, quando bem encaminhadas, acontecem. E o que for ruim, a gente tem que enfrentar de um jeito bom. Você vence pelo que você está construindo”

 

Ana com filho pequeno, Tomaz, na chácara da família