Reportagem: Camila Neumam
Fotos: Comunicação Butantan e Shutterstock
Um artigo publicado em fevereiro na revista Microorganisms por pesquisadores do Laboratório de Ciclo Celular do Instituto Butantan e da Universidade de Giessen, na Alemanha, destaca, pela primeira vez, como produtos ou compostos naturais de origem animal – como venenos de serpentes, abelhas, sapos e joaninhas, entre outros –, e moléculas extraídas deles, têm potencial de combater o parasita Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose.
A esquistossomose é uma doença tropical negligenciada que afeta mais de 240 milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo o Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Atualmente, há apenas um único medicamento recomendado pela OMS para seu tratamento. Contudo, casos de resistência a ele têm sido notificados, o que indica uma necessidade urgente de novas alternativas terapêuticas.
“Neste contexto, os compostos naturais de origem animal representam fontes valiosas de substâncias com potencial esquistossomicida”, afirma o pesquisador do Laboratório de Ciclo Celular do Butantan e autor correspondente do estudo, Murilo Sena Amaral.
Murilo Sena Amaral é pesquisador do Laboratório de Ciclo Celular do Butantan e autor correspondente do estudo
O artigo de revisão híbrido elenca resultados de estudos já publicados, que exploraram a atividade antiesquistossomótica de produtos de origem animal, levando em consideração seus principais efeitos, e fornece dados de novas triagens in vitro de produtos naturais derivados de quatro táxons [grupo de organismos ou populações] diferentes de animais.
Riqueza escondida
O estudo argumenta que, embora várias pesquisas já tenham demonstrado que produtos naturais de origem animal têm grande potencial antibacteriano e antitumoral, os venenos e suas biomoléculas ainda são pouco utilizados como possíveis fontes de novos medicamentos contra parasitas. É o contrário do que acontece com produtos naturais derivados de plantas, que têm uma posição consolidada há décadas na ciência como grandes fontes de moléculas bioativas.
“Uma parte do trabalho quis chamar atenção para esses compostos de produtos naturais de origem animal pouco explorados, e a outra, para os seus potenciais efeitos. É importante olharmos mais para esses compostos e estudarmos como eles poderiam ser mais explorados no futuro, porque são encontrados em abundância no Brasil”, afirma *Murilo Sena Amaral.
A ideia de se fazer a revisão partiu de estudos já realizados dentro do Laboratório de Ciclo Celular do Butantan e em outros centros de pesquisa que investigam o uso de produtos naturais de origem animal com potencial contra o parasita causador da esquistossomose. Um desses estudos é conduzido pela aluna de Iniciação Científica Agatha Fischer-Carvalho, primeira autora do artigo, que analisa o potencial dos venenos de serpentes do gênero da jararaca sobre o Schistosoma mansoni, sob orientação de Murilo, e pela aluna de doutorado Tereza Cristina Taveira-Barbosa.
O estudo analisa o potencial dos venenos de serpentes do gênero da jararaca sobre o Schistosoma mansoni
“Temos aqui no Butantan toda essa riqueza que nunca foi explorada de forma sistemática, então resolvemos unir as duas coisas. O artigo de revisão descreve o que há na literatura relacionando produtos naturais de origem animal com potencial contra o Schistosoma mansoni, e a colaboração com pesquisadores parceiros da Alemanha foi essencial, pois os testes in vitro foram feitos no laboratório de lá”, esclarece o pesquisador.
Testes com venenos e moléculas
O artigo revisa dados de pesquisas já publicadas que avaliaram a atividade antiesquistossomótica de produtos naturais de origem animal. Foram apresentados os resultados de testes já publicados com venenos dos escorpiões Leiurus quinquestriatus, Buthus minax, Buthus occitanus e Androctonus amoreuxi; com o veneno da abelha Apis melífera e o própolis produzido por ela; com o veneno do percevejo assassino (Rhynocoris iracundus); do besouro joia (Chalcophora mariana); da jararaca (Bothrops moojeni); da víbora Cerastes cerastes; e com o veneno de sapos do gênero Phyllomedusa. As substâncias foram testadas em modelos in vitro ou in vivo e, em todos os casos, percebeu-se a redução da viabilidade do parasita ou da sua capacidade de colocar ovos.
O trabalho também abordou os resultados de pesquisas prévias realizadas com compostos extraídos dos produtos naturais, como a harmonina, um alcaloide antimicrobiano obtido da hemolinfa da joaninha arlequim (Harmonia axyridis); e até de compostos derivados de invertebrados marinhos, como o pepino-do-mar. Quando testadas, essas moléculas também demonstraram potencial na diminuição da viabilidade do parasita.
Foram apresentados resultados de testes já publicados com venenos de sapos do gênero Phyllomedusa
Entre os produtos e compostos de origem animal testados no estudo como prova de princípio do seu potencial esquistossomicida, os casais adultos de S. mansoni foram incubados com quatro substâncias de origem animal, cada uma por 72 horas. Na sequência, os pesquisadores avaliaram a motilidade dos parasitas por microscopia, após 24 ou 72 horas de incubação. Foram aplicadas dosagens de 20 µg/mL de veneno da víbora Echis carinatus; de 50 µg/mL de veneno do percevejo Rhynocoris iracundus; de 40 µM de buprestina H, um derivado de acil glicose, presente no besouro Chalcophora mariana; e de 50 µM da defensina escapularisina-6, molécula extraída do carrapato Ixodes scapularis.
Murilo destaca que se trata de um estudo exploratório para evidenciar o baixo número de estudos que exploram produtos de origem animal e salientar que este campo pode ser mais explorado. Não há intenção de se apontar, no momento, um melhor candidato.
Além dos resultados com o veneno da abelha Apis melífera e o própolis produzido por ela
“Nessa etapa da pesquisa não conseguimos ainda saber qual produto natural tem mais potencial. Precisamos fazer mais screenings para chegar a um composto que tenha uma atividade mais pronunciada contra o parasita, com baixa toxicidade, com fácil isolamento, e que tenha escalabilidade”, destaca.
De acordo com o pesquisador, as próximas etapas do estudo devem focar na busca por um candidato que tenha baixa toxicidade e um efeito pronunciado contra o parasita. “É um estudo inicial. A gente tem o potencial e temos que investir mais nisso”, concluiu.
*O texto foi validado pelo pesquisador do Laboratório de Ciclo Celular do Butantan Murilo Sena Amaral