Simbiose. Do grego, sýn (união), bios (vida), sis (processo). Nas ciências biológicas, a palavra designa uma relação funcional estreita, harmônica e produtiva entre dois organismos que interagem ativamente, visando o proveito mútuo. No dia a dia, também é sinônimo de vida em comum, camaradagem e intimidade – definições que caem muito bem para a fértil relação entre o Professor Henrique Moisés Canter (1938-2021) e o Instituto Butantan, um vínculo iniciado em 1970 e que se fortaleceu ao longo de cinco décadas de muito trabalho e conquistas.
Formado em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP), o gaúcho nasceu em 15 de junho de 1938 e chegou ao Butantan para assumir a direção de seu único museu na época, o Biológico, revolucionando a área cultural do Instituto e unificando com maestria ciência, cultura e arte. “Ele entendia as exposições como um local de aprendizado e utilizou sua experiência como professor para decodificar o conhecimento científico e divulgá-lo da melhor maneira”, conta o atual diretor do Centro de Desenvolvimento Cultural do Butantan, Giuseppe Puorto.
Ao longo das cinco décadas dedicadas ao Instituto, Canter foi diretor da Divisão de Extensão Cultural, fez parte da Diretoria Executiva, foi membro de conselhos consultivos, diretor da Casa Afrânio do Amaral e responsável por uma extensa lista de contribuições. Trabalhou com afinco para criar e organizar cursos, elaborar e expandir a produção de material didático para divulgação científica em larga escala, promover exposições itinerantes e resguardar a memória da instituição. Não à toa, atuou na recuperação de diversas edificações históricas e foi um dos principais idealizadores do Museu Histórico – Espaço Terra Firme, concebido em comemoração aos 80 anos do Butantan.
Conhecido carinhosamente como Professor Canter, o colaborador trabalhou por cinco décadas no Butantan: "Uma vida"
Uma vida de trabalho e bons amigos
Sério, exigente, correto e colaborativo. Era dessa forma que o Professor trabalhava. Diante de um novo desafio, não hesitava em recrutar aqueles de sua confiança para dividir ideias, ouvir opiniões e discutir melhorias. Para aqueles que tiveram a honra de conviver com ele, esses empolgantes bate-papos se mostraram tão marcantes quanto as conquistas realizadas a serviço do Butantan.
“De vez em quando, tenho a sensação de que ele vai chegar aqui para a gente conversar. Que as meninas da recepção vão me ligar dizendo que tem um senhor de cabelos brancos procurando por mim”, brinca a coordenadora cultural do Museu de Microbiologia, Glaucia Colli Inglez. Afinal de contas, foi compartilhando conhecimento que Canter construiu o seu legado no Instituto Butantan – seja de maneira formal, por meio dos inúmeros materiais elaborados por ele, ou informal, com boas conversas embaladas pelo som de música clássica e um bom café. “A cabeça dele não parava. Quando terminava um projeto, já começava a pensar em algo novo”, conta a pesquisadora científica do Laboratório de Imunogenética, Milene Tino, que trabalhou durante oito anos como diretora do Museu de Microbiologia.
Glaucia Colli, Canter e Milene Tino com outros colegas do Butantan, durante celebração de 80 anos do professor Isaias Raw
Inspirado pelas brincadeiras com os netos, Canter criou diversos jogos interativos, levando a divulgação científica ao público infantojuvenil de forma divertida e eficiente. A coleção de folhetos Série Didática, feita inicialmente em mimeógrafos e cuja publicação começou na década de 1980, foi outro dos trabalhos marcantes idealizados pelo Professor. Por conta da ótima aceitação dos materiais, em 2006 todos os informativos foram compilados, reunindo em uma única publicação os temas relacionados às atividades do Instituto. Atualmente, o material está disponível para consulta online no repositório Sapientia.
Outro destaque é o livro Serpentes, Arte e Ciência. Lançada em 2012, a obra resgata desenhos de antigos ilustradores do Instituto Butantan e foi totalmente produzida por Canter em uma minuciosa pesquisa que se estendeu por mais de dois anos. “É um trabalho que significa muito para o Instituto por reunir essas ilustrações representativas dos animais, feitas no passado pelos pesquisadores. Considero esse livro como um mapa escrito do Butantan”, diz Glaucia.
Orgulhoso: Canter apresenta o selo comemorativo, elaborado em razão dos 120 anos do Instituto Butantan
História viva do Butantan
Em março de 2020, com a chegada da pandemia de Covid-19, o Professor precisou se afastar do Butantan pela primeira vez. Com as preparações dos 120 anos do Instituto se aproximando, mais do que nunca a vontade dele era estar presente. “A gente se falava frequentemente e o Professor sempre me perguntava: ‘Onde você está?’. Eu respondia: ‘Na minha sala’. Depois, ele falava meio decepcionado: ‘E eu estou em casa’”, conta Giuseppe.
Mesmo de longe e com a saúde debilitada, Canter se debruçou sobre seus dois últimos trabalhos, passando de testemunha ocular a um dos principais personagens da história do Butantan. O primeiro foi a instalação do painel de mosaico com representações de microrganismos na fachada do Museu de Microbiologia. Em um papel sulfite, escrito à mão, o Professor detalhou todos os passos da ação, além de desenhar o correto posicionamento da obra – a intenção era deixar o painel perfeitamente enquadrado para quando os visitantes tirassem fotos ao lado do totem com o nome do museu. Ao final, escreveu: “Mãos à obra que dá tempo para os 120 anos.”
Canter recebe o carinho de Giuseppe durante inauguração do anexo do Museu Biológico, batizado em homenagem ao Professor
Por fim, idealizou o selo comemorativo aos 120 anos do Instituto Butantan. A imagem, que traz uma composição da fachada do Edifício Vital Brazil e do Centro de Produção Multipropósito de Vacinas do Butantan (CPMV), foi proposta por ele, representando a tradição e o futuro da organização.
Em sua última entrevista, Canter revelou guardar um carinho especial pela homenagem recebida no dia das comemorações do aniversário do Instituto. Quando questionado sobre como era ter 50 anos de Butantan, disparou: “É um lugar-comum, mas é uma vida”. O registro desse depoimento marca, também, o último dia em que o Professor Henrique Moisés Canter esteve, fisicamente, nas dependências do Instituto Butantan. Para nós, fica a certeza de que sua presença seguirá inabalável, durante todos os dias de existência da instituição. Nosso eterno Professor, com P maiúsculo.
Em visita ao Butantan, as filhas do Professor Canter fizeram questão de serem fotografadas em frente ao prédio do Museu Biológico
Memórias de um ícone
A seguir, membros da família Canter e da comunidade Butantan compartilham lembranças do Professor:
O discípulo
Giuseppe Puorto ingressou no Butantan como estagiário do Laboratório de Produção de Venenos em 1971 – na mesma época em que Canter chegou ao Instituto. Quatro anos depois, Giuseppe recebeu um telefonema do Professor, solicitando que conduzisse uma aula sobre serpentes para um grupo de visitantes. Iniciava, ali, uma parceria que se estendeu por mais de 40 anos.
“Em 1977, ele também virou meu professor de Zoologia na Universidade de Mogi das Cruzes. O fato de nos conhecermos não aliviou nada para o meu lado”, brinca. Tanto que, em sua memória, ainda é recente uma nota 9 recebida sob muitos protestos, por conta de um erro de grafia em um nome científico e de uma dobra incorreta em um envelope entomológico.
Trilhando caminhos similares aos de Canter no Butantan, Giuseppe se considera um discípulo do Professor – inclusive, recebeu dele o convite para deixar o laboratório e integrar a divisão Cultural da instituição. “Me espelho nele para entender e lidar com os desafios relacionados ao nosso trabalho”, conta.
Uma das heranças que Giuseppe recebeu do Professor e guarda com muito cuidado e carinho é uma edição em francês, de 1914, do livro A Defesa Contra o Ophidismo, escrito por Vital Brazil. A publicação foi adquirida por Canter em um sebo de São Paulo, no ano de 1975. A pedido do Professor, o livro foi encadernado na antiga gráfica do Instituto Butantan com couro de serpente.
Milene Tino guarda com carinho as lembranças das conversas com o Professor Canter: "Meu mentor"
A tríade
O local que hoje abriga a lojinha e a bilheteria do Parque da Ciência Butantan já foi QG do trio Henrique Canter, Milene Tino e Glaucia Colli. Onde antes funcionava um café, os três se encontravam com frequência para discutir dilemas de trabalho e, também, pessoais. O momento era um encontro de diferentes gerações, já que Milene era cerca de 30 anos mais nova que o Professor. “Ele vivia cercado de jovens, pois tinha um olhar muito à frente. Eu sempre tive muita admiração por ele e o enxergava como um mentor”, conta.
Mesmo com as restrições sociais impostas pela pandemia de Covid-19, os encontros não cessaram. “Toda segunda-feira, no final da tarde, fazíamos chamadas de vídeo pelo celular. Conversávamos por mais de hora. Ele contava sobre os netos, a gente das nossas famílias e também discutíamos sobre as novidades aqui do Butantan”, relembra Glaucia.
Elas, que se divertiam e se surpreendiam com a quantidade de histórias do Instituto contadas por Canter, sempre estimularam a ideia de ele escrever um livro com suas memórias – um último projeto que, infelizmente, não teve tempo de ser realizado.
A família
Durante os 50 anos em que o Professor Canter passou no Instituto, uma coisa nunca mudou: todos os dias, ele almoçava em casa, acompanhado por sua esposa, Rosinha, e as três filhas. “Depois do expediente no Butantan ele ainda dava aulas na faculdade. Por isso, fazia questão de passar esse tempo conosco. Muitas das histórias que sabemos sobre o Instituto foram contadas nessas ocasiões. A tradição se manteve mesmo depois que minha mãe faleceu”, lembra Etel Canter Neustein, filha mais velha do Professor.
E haja bons momentos para recordar! Durante as férias de julho, cada dia uma das meninas acompanhava o pai ao trabalho. Na época, elas aguardavam ansiosas a oportunidade de segurar e acariciar os animais, principalmente as serpentes. “Uma vez entregaram uma cobra para ele levar ao Butantan e ela sumiu dentro do nosso carro. Detalhe: o bicho estava escondido na mola do banco do passageiro e toda a família havia viajado no automóvel no dia anterior”, diverte-se Paula Canter Jacobsberg.
São-paulino, brincalhão, mas reservado, e muito inteligente. Assim era o Professor Canter fora do Butantan. Frequentemente, ele ficava às voltas procurando seus sapatos e o controle remoto da TV, escondidos de brincadeira pelos netos. Os herdeiros também o chamavam carinhosamente de “Vovô Google” e sempre o acionavam quando tinham qualquer dúvida.
Amante da mitologia, adorava desenhar e sempre estava acompanhado de um bom livro. “Ele gostava muito de biografias e, antes de falecer, estava lendo bastante sobre as tradições e costumes do judaísmo”, conta Carla Canter Mantelmacher.
“Por meio de toda essa sabedoria e, também, do carinho que ele nos dava, nosso pai se faz presente em tudo que vemos”, completa Carla. Em visita ao Instituto, as três irmãs fizeram questão de visitar o Museu Biológico, local que tanto lembra a figura do pai.
Giuseppe Puorto ao lado da palmeira-imperial plantada pelo próprio Professor Canter, no Edifício Vital Brazil
Colaborador histórico
Dos museus aos prédios históricos, o legado do Professor Canter segue vivo no dia a dia do Instituto Butantan:
1. Museu Biológico
Responsável pela direção do espaço por 12 anos, Canter trabalhava em uma mesa localizada na parte esquerda do prédio – próximo onde, atualmente, está a saída da exposição. Como não possuía uma sala própria, ficava cercado por um simples biombo. Em 2018, o museu ganhou um anexo batizado de Henrique Moisés Canter. No prédio, são desenvolvidos trabalhos de manutenção e cuidados veterinários com os animais do acervo. Na cerimônia de abertura, o Professor recebeu uma homenagem surpresa que até hoje é recordada com muito carinho por seus familiares.
2. Edifício Vital Brazil
Após assumir a direção do Centro de Desenvolvimento Cultural do Butantan, Canter passou a despachar do prédio mais icônico da instituição – foi lá onde passou boa parte da sua vida no Instituto, costumava dizer. Hoje, quem passa pela fachada do prédio, avista uma pequena palmeira-imperial logo ao lado direito da entrada principal do edifício. Plantada por Canter, a espécie encontra-se abaixo da janela da sala que um dia pertenceu a ele, a Cesário Motta.
Glaucia Colli com o painel de mosaico do Museu de Microbiologia, idealizado em parceria com o amigo Henrique Canter
3. Museu de Microbiologia
Com o intuito de trazer mais cor ao espaço externo, Canter idealizou o painel de mosaico que, desde 2021, estampa a fachada do prédio. Desenvolvida em parceria com Glaucia Colli Inglez e executada pela artista plástica gaúcha Cláudia Sperb, a obra traz a representação de seis elementos do mundo microbiano: um Paramecium, protozoário unicelular; um bacteriófago, vírus que infecta bactérias; um Diplococcus, que são duas bactérias juntas; e, por fim, outros três protozoários: a ameba, a giárdia e o Trypanosoma cruzi.
4. Casa Afrânio do Amaral
Mesmo após sua aposentadoria, Canter continuou se dedicando ao Instituto Butantan, colaborando com diversos projetos para a manutenção da memória da instituição e o desenvolvimento da área cultural. Como diretor do espaço, idealizou diferentes exposições e eventos de divulgação científica.
Reportagem: Natasha Pinelli
Imagens: Arquivo pessoal (fotos 1 e 2), Comunicação Butantan (fotos 3 e 4), Mateus Serrer/Comunicação Butantan (fotos 5, 6 e 7) e José Felipe Batista/Comunicação Butantan (foto 8)