Reportagem: Natasha Pinelli
Imagens: Shutterstock (foto 1); Wikimedia Commons (foto 2 e 6); José Henrique Deloste/Museu de Saúde Pública Emílio Ribas/Instituto Butantan (fotos 3 e 5); NYC Municipal Archives (foto 4); Public Health Image Library Centers for Disease Control and Prevetion (foto 7)
Vivenciar a infância durante a primeira metade do século XX foi crescer sob a ameaça da poliomielite. Naquela época, a doença que ataca o sistema nervoso e pode provocar paralisia espinhal e respiratória matava ou paralisava mais de 500 mil pessoas anualmente no mundo – sem falar nas tantas outras que ficaram com sequelas que dificultavam a movimentação. No Brasil, diversos municípios eram assolados pelo problema. Durante uma das piores epidemias da doença já registradas no país, na cidade do Rio de Janeiro em 1953, foram identificados 20 casos de poliomielite a cada 100 mil habitantes. Sem cura e com surtos cada vez mais constantes, a necessidade de uma vacina se tornou urgente.
O cenário para o combate da doença havia se tornado mais promissor no final da década de 1940, com o sucesso do cultivo do poliovírus, vírus causador da paralisia infantil, em tecidos humanos – a descoberta foi feita pelos cientistas norte-americanos John Enders (1897-1985), Thomas Weller (1915-2008) e Frederick Robbins (1916-2003), e rendeu ao trio o Prêmio Nobel de Medicina em 1954. Apoiando-se nesse importante avanço, outros dois pesquisadores despontaram na corrida pelo desenvolvimento de uma vacina contra a doença: Jonas Salk (1914-1995) e Albert Sabin (1906-1993).
Oral e injentável: ambas versões do imunizante têm sido essencial para o controle da poliomielite no planeta
Duas opções de vacina e os maiores ensaios clínicos da história
Com apostas em métodos científicos distintos, as descobertas de Salk e Sabin revolucionaram a saúde pública e foram essenciais para o controle da pólio em todo o mundo.
Iniciando seus estudos ainda no final da década de 1940, o físico Jonas Salk, da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, optou por um imunizante feito com vírus inativado (VIP). Nessa estratégia de produção, o patógeno que se deseja combater é “morto” pelo uso de agentes químicos ou físicos. Sem capacidade de reprodução, o microrganismo não é capaz de provocar a doença, mas “engana” o sistema imunológico, fazendo-o gerar os anticorpos necessários para que a pessoa não adoeça caso venha a ter contato com o vírus “real”.
Jonas Salk foi o resposável pelo desenvolvimento da primeira vacina contra a poliomielite
Já o físico e microbiologista Albert Sabin, da Universidade de Cincinnati, também nos Estados Unidos, desenvolveu sua versão do imunizante ao longo dos anos 1950 e investiu na estratégia do vírus atenuado (VOP): quando o patógeno utilizado na composição de um imunobiológico está vivo, mas devidamente “enfraquecido”. Por manter sua capacidade de replicação, o microrganismo atenuado gera uma doença branda, porém suficiente para estimular uma resposta imunológica semelhante à que o organismo teria frente ao vírus que provoca a doença.
Salk saiu na frente e iniciou os testes de sua vacina contra a pólio pouco tempo depois, em 1953. O ensaio clínico de larga escala envolveu quase 2 milhões de crianças de 44 estados dos Estados Unidos e de outros países, como Canadá e Finlândia, que receberam o imunizante ou um placebo. A introdução do chamado grupo controle, que é composto por pessoas que não recebem o imunobiológico, mas uma substância inativa que “parece” a vacina, é importante para avaliar a eficácia real do produto – esse foi o primeiro passo em direção ao desenvolvimento dos ensaios clínicos randomizados, adotados atualmente.
Albert Sabin com o ex-Secretário Estadual de Saúde de São Paulo, Nelson Rodrigues
Em abril de 1955, os resultados da pesquisa de Salk foram anunciados e o imunizante foi considerado eficaz e seguro na prevenção da poliomielite. Quando questionado sobre quem possuía a patente, Salk respondeu: “Bem, eu diria que são as pessoas. Não há patente. Você poderia patentear o Sol?”. A convicção do cientista era de que a ciência deveria servir às pessoas e não ao lucro. Com isso, a vacina pode ser licenciada por diversas farmacêuticas em um curto espaço de tempo.
A fim de reforçar a confiança que tinha no produto, Salk aplicou a vacina inativada nele mesmo e em toda a sua família, além de contar com o engajamento de diversos ícones da época. O cantor Elvis Presley, Rei do Rock e ídolo da juventude na década de 1950, teve sua injeção televisionada em 1956, para estimular os mais jovens a também receberem suas doses do imunizante. Em apenas dois anos de uso da VIP, os casos anuais de poliomielite caíram de 58.000 para 5.600 nos Estados Unidos.
O cantor Elvis Presley recebendo sua dose da vacina contra a pólio ao vivo na televisão
Em paralelo, Albert Sabin continuava trabalhando no desenvolvimento do imunizante inativado. Diferentemente da versão injetável de Salk, a Sabin era oral e poderia ser oferecida em uma simples gotinha. A análise da eficácia da vacina, porém, provou-se um desafio: uma vez que boa parte da população norte-americana já estava protegida do poliovírus, Sabin precisou buscar outros países que tivessem interesse em testar sua vacina. O pesquisador estabeleceu uma parceria com as antigas União Soviética e Tchecoslováquia, garantindo assim que mais de 10 milhões de crianças fossem imunizadas com a VOP entre os anos de 1958 e 1959.
O personagem Zé Gotinha em meio às crianças durante campanha de vacinação contra a pólio na cidade de Osasco (SP)
O sucesso da gotinha
Embora a vacina inativada desenvolvida por Salk fosse extremamente eficaz e segura, o imunizante de Sabin se provou revolucionário. Possuía menor custo de produção e distribuição, e era muito fácil de aplicar – o que o tornava ideal para ser usado em campanhas de vacinação em massa, já que os profissionais não precisavam ser altamente treinados para oferecer a gotinha. Outra vantagem é que, além do sistema nervoso central, a VOP protegia o trato digestivo, o que na época foi essencial para impedir a cadeia de transmissão e propagação do poliovírus de forma bastante eficaz.
Tais características permitiram que a vacina fosse amplamente utilizada nas décadas seguintes, principalmente nos países em desenvolvimento. No Brasil, por exemplo, a versão atenuada em gotas foi adotada oficialmente em julho de 1961, e o Instituto Butantan se tornou responsável pelo controle de qualidade e distribuição do produto. Nessa época, porém, a vacinação ainda não era uma política pública sólida: o produto era aplicado mais como uma resposta a surtos pontuais do que como uma forma de precaução.
No passado, era comum ver crianças com sequelas da poliomielite
A ideia de um planejamento nacional de combate à doença começaria a tomar forma dez anos mais tarde, quando o Ministério da Saúde estruturou um plano nacional para controlar a incidência de paralisia infantil. Ainda assim, a incidência dos casos de poliomielite só começaria a cair consideravelmente no Brasil ao longo da década de 1980, com a consolidação dos chamados Dias Nacionais de Vacinação contra a Poliomielite e o apoio da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), que colocou em prática um programa para a erradicação do poliovírus nas Américas.
A principal estratégia adotada foi a vacinação em massa: seu objetivo era imunizar o máximo de crianças menores de 5 anos, em um curto período de tempo, em todo o território nacional. Outra iniciativa relevante foi a criação do famoso Zé Gotinha. Simples em sua forma e cheio de carisma, o mascote estampou cartazes de campanhas e estrelou comerciais na televisão reforçando a importância da imunização, além de comparecer “pessoalmente” nos dias de vacinação para saudar as crianças que haviam recebido sua gotinha.
Conheça a história do Zé Gotinha: de ícone da vacinação a celebridade nacional
O comprometimento dos membros inferiores era uma das sequelas mais comuns deixadas pela doença
Com a consolidação das campanhas, os registros de poliomielite no Brasil logo despencaram: foram de 1.290 em 1980 para apenas 122 em 1981. O último diagnóstico da doença em território nacional aconteceu em 1989 e em 1994 o país recebeu da Organização Mundial da Saúde (OMS) o certificado de área livre de circulação do poliovírus selvagem.
Em novembro de 2024, seguindo as recomendações mais atuais da entidade internacional, o Brasil vai concluir a substituição da VOP pela VIP – ou seja, a gotinha tão famosa será substituída por uma injeção. O objetivo da troca é conter uma possível disseminação do vírus vacinal da poliomielite, uma vez que a versão atenuada do microrganismo pode, em casos extremamente raros, desencadear a doença.
Assim como aconteceu no Brasil, tanto a vacina inativada de Jonas Salk, como a atenuada de Albert Sabin contribuíram e seguem contribuindo para a erradicação do vírus causador da paralisia infantil em todo o mundo. Graças à vacinação, os casos de pólio reduziram 99% em todo o globo, caindo de 350 mil em 1988 para apenas 29 notificações em 2018. Atualmente, a doença permanece endêmica apenas no Afeganistão e no Paquistão.
Referências:
História Ciências Saúde Manguinhos. A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Poliomielite
Our World in Data. Polio
Polio Global Eradication Initiative. History of polio
Revista Pan-Amazônica de Saúde. O início do fim da poliomielite: 60 anos do desenvolvimento da vacina
World Health Organization (WHO). History of the polio vaccinehttps://www.who.int/news-room/spotlight/history-of-vaccination/history-of-polio-vaccination