Reportagem: Aline Tavares
Fotos: CDC, Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Andre Ricoy/Comunicação Butantan
A doença febril aguda causada pelo vírus da chikungunya teve seu primeiro surto documentado oficialmente em 1952, no sudeste da Tanzânia, na África – daí o nome da enfermidade, que significa “aqueles que se dobram” na língua local Makonde. Acredita-se, no entanto, que a chikungunya já circulava muito antes pelo continente africano, e que foi se espalhando pela Ásia e pelas Américas nos séculos XIX e XX. O vírus foi identificado no Brasil somente em 2014, mas já soma 1,4 milhão de casos prováveis e 1.224 óbitos em dez anos. Agora, com uma vacina recém-aprovada, desenvolvida pelo Instituto Butantan e pela farmacêutica franco-austríaca Valneva, o país tem uma nova perspectiva de combate à doença.
A primeira descrição já feita sobre a chikungunya, em estudo publicado em 1956 pelo Instituto de Pesquisa de Vírus de Uganda, compreendia uma doença com "início muito acentuado de dores articulares incapacitantes, febre intensa e, eventualmente, erupção cutânea". Os sintomas eram muito semelhantes ao da infecção pelo vírus da dengue – que havia sido isolado na década anterior, em 1943, no Japão. Além disso, ambas arboviroses (doenças transmitidas por artrópodes) compartilhavam o mesmo vetor, o mosquito Aedes aegypti. Por isso, o patógeno foi considerado uma nova cepa do vírus da dengue. Foi só em 1988 que os cientistas descobriram tratar-se de um vírus novo.
Desde então, surtos de chikungunya têm sido registrados em diferentes regiões do mundo – hoje, o vírus circula em mais de 110 países. Nas Américas, o primeiro caso autóctone (quando há transmissão local) ocorreu em 2013 no Caribe. A doença já se disseminou para 50 países do continente, gerando um acúmulo de 3,7 milhões de casos na última década.
A enfermidade chegou ao Brasil em 2014. Os primeiros casos foram identificados no município do Oiapoque, no Amapá, totalizando 1.444 infectados; no mesmo ano, outra epidemia se deu em Feira de Santana, na Bahia, com 1.473 casos. Com circulação local desde então, o Brasil logo se tornou o epicentro da enfermidade nas Américas, devido à alta densidade populacional e ao clima favorável para a proliferação do vetor. Em 2016, o vírus já estava presente em todas as regiões do país, atingindo a marca de 277 mil casos prováveis.
Adulto e pupas do mosquito Aedes aegypti suspensos em água parada (Foto: Lauren Bishop/CDC)
Entre 2023 e 2024, o número de casos de chikungunya no país aumentou em 68%, indo de 158 mil para 265 mil, de acordo com o Painel de Monitoramento de Arboviroses do Ministério da Saúde. A mesma tendência foi observada para a dengue, doença mais prevalente e com quatro sorotipos, que subiu de 1,6 milhão para 6,6 milhões de casos no mesmo período.
A incidência elevada de arboviroses no Brasil se deve a uma série de fatores. Entre eles estão as mudanças climáticas e o aumento das temperaturas, que facilitam a disseminação do Aedes aegypti, e as próprias adaptações genéticas do mosquito, com mutações que o tornam mais resistente e dificultam o funcionamento de inseticidas e larvicidas.
O diagnóstico da chikungunya também é um desafio: sua semelhança com dengue e Zika e a falta de testes específicos aumentam a chance de subnotificação. As três infecções que circulam no Brasil provocam quadro clínico parecido, como febre, dor de cabeça, dor nas articulações e manchas vermelhas no corpo, mas possuem desfechos e consequências distintas.
Agentes de saúde em atividade de orientação, identificação e eliminação de criadouros do mosquito Aedes aegypti. Porto Alegre, 2024
(Foto: Cristine Rochol/PMPA)
A carga da chikungunya
O maior impacto da chikungunya ocorre quando ela evolui para a fase crônica, que pode atingir até metade dos pacientes. Nesses casos, a dor nas articulações pode perdurar por meses ou anos, prejudicando a qualidade de vida e impedindo atividades laborais. Um estudo recente da Universidade George Washington, dos Estados Unidos, avaliou 500 pacientes e mostrou que uma em cada oito pessoas diagnosticadas com a arbovirose apresentou dor articular persistente por três anos após a infecção. Uma das hipóteses que explica o sintoma crônico é o acúmulo de partículas virais no tecido sinovial (que reveste e protege a parte interna das articulações).
Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte compararam um grupo de pacientes com chikungunya crônica e um grupo de pessoas saudáveis, e observaram diferenças significativas na saúde física e mental. Os indivíduos afetados pela forma crônica da doença tiveram um risco 13 vezes maior de desenvolver depressão, além de 76 vezes mais chance de ter problemas de locomoção.
Junto com os impactos na qualidade de vida, a chikungunya traz importantes consequências econômicas, segundo uma revisão publicada por cientistas da Universidade Federal do Ceará. Durante uma epidemia em 2006 no sul da Ásia, foram perdidos 7,4 milhões de dias de trabalho na Índia, considerando apenas os episódios agudos da doença. Já nas Ilhas da Reunião, território francês situado no Oceano Índico, a queda de produtividade gerou uma perda de 17,4 milhões de euros.
Na Colômbia, em 2015, a doença crônica causou 96% dos 290 mil DALYs – “anos de vida ajustados por incapacidade”, indicador da Organização Mundial da Saúde (OMS) que avalia a carga das doenças ao somar os anos de vida perdidos devido à mortalidade prematura e os anos vividos com incapacidade. No mesmo período, no Brasil, a chikungunya também foi a principal responsável pelos DALYs. A idade avançada e a presença de comorbidades foram os principais fatores de risco para gravidade, hospitalização e morte nos pacientes.
Vacina da chikungunya do Butantan em processo de liofilização, que transforma o líquido em pó para melhor conservação
(Foto: André Ricoy/Comunicação Butantan)
Vacina para uma doença negligenciada
A chikungunya, assim como a dengue, é considerada pela OMS uma Doença Tropical Negligenciada (DTN) – grupo que engloba enfermidades predominantes em regiões de baixa e média renda e que, historicamente, receberam menos atenção de políticas públicas de saúde e menos investimentos em pesquisa. Por não ser tão prevalente quanto a dengue, a chikungunya acaba atraindo ainda menos recursos: entre 2004 e 2020, a doença ficou em 9º lugar entre as DTNs pesquisadas no Brasil, enquanto dengue, leishmaniose e tuberculose receberam os maiores investimentos em estudos.
Sem um antiviral específico disponível, o tratamento da chikungunya é feito com antitérmicos e analgésicos para aliviar os sintomas, além de repouso e hidratação. Já a prevenção envolve medidas de controle do Aedes aegypti, como eliminação dos pontos de água parada para evitar a proliferação dos mosquitos, que depositam seus ovos nesses locais.
No entanto, a prevenção e o combate à chikungunya devem entrar em uma nova fase com a aprovação, concedida em abril pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica franco-austríaca Valneva. O imunizante de dose única é o primeiro contra a enfermidade a ser registrado no mundo e também foi aprovado para uso nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa.
Batizada de IXCHIQ, a vacina mostrou resultados positivos nos ensaios clínicos. Em adultos, 98,9% dos imunizados produziram anticorpos neutralizantes, com níveis que se mantiveram robustos por ao menos seis meses. Já em adolescentes, houve produção de anticorpos em 100% dos voluntários com infecção prévia e em 98,8% daqueles sem contato anterior com o vírus.
A inclusão da vacina no Programa Nacional de Imunizações (PNI) está sendo analisada pelo Ministério da Saúde, e a expectativa é que o imunizante seja um importante aliado no controle da doença. Essa esperança é reforçada por investigações como a de um estudo publicado na revista Nature Medicine em maio, conduzido por pesquisadores da Universidade Nacional de Assunção e do Laboratório Central de Saúde Pública, do Paraguai, e da Universidade de Cambridge, da Inglaterra, entre outras instituições. Na pesquisa, uma modelagem estimou o impacto que uma campanha de vacinação teria tido durante uma epidemia de chikungunya no Paraguai entre 2022 e 2023. Os cientistas concluíram que a aplicação de uma vacina poderia ter evitado 88% das mortes pela doença.