Enquanto viajar no tempo continua sendo cientificamente impossível – pelo menos até o presente momento –, percorrer as páginas de um livro é uma ótima maneira de reviver o passado. Com quase 4.500 títulos, o acervo da Biblioteca do Butantan traz aos amantes da ciência a oportunidade ímpar de se transportar para momentos marcantes da história, em que foram elaboradas teorias revolucionárias e descobertos produtos e fármacos que mudaram os rumos da humanidade.
De acordo com documentos encontrados por pesquisadores do setor, as primeiras doações de livros aconteceram entre o fim de 1917 e o início de 1918, sendo os principais doadores o próprio Vital Brazil, primeiro diretor e fundador do Instituto, e os pesquisadores Otávio Veiga e Miguel Alvarenga.
Patrícia Lúcio Alves, colaboradora da Biblioteca do Butantan, entre parte do acervo do espaço, composto por cerca de 4.500 obras
Naquela época, as obras recebiam apenas um carimbo do Instituto Serumtherapico, antigo nome da instituição. Mas foi com a contratação do primeiro bibliotecário do setor, Arthur Reis, em 1922, que o Butantan começou a, de fato, catalogar os títulos que deram origem ao seu acervo científico. A partir de então, as obras passaram a ser registradas em um livro de entrada e recebiam um carimbo oficial da Biblioteca.
Atualmente, algumas das obras mais preciosas do acervo podem ser vistas em uma exposição permanente organizada na chamada Sala Koch. Porém, por questões de segurança, manutenção e disponibilidade de espaço, nem todas as raridades estão disponíveis ali. Para matar a curiosidade dos “ratos de biblioteca” reunimos aqui, algumas preciosidades do acervo científico do Instituto Butantan. Confira:
Algumas das raridades do acervo estão expostas na Sala Koch, como o livro mais antigo da Biblioteca, de 1620
Obras únicas
Em 2023, o livro mais antigo da Biblioteca completa 403 anos. Escrito em latim pelo naturalista espanhol Juan Bustamante de la Cámara, o primeiro volume De Reptilibus Vere Animantibus S. Scripturae apresenta um estudo sobre os répteis mencionados na Bíblia e na Terra Santa. Além de serpentes e tarântulas, descreve animais fantásticos, como os famosos dragões.
Medindo cerca de sete centímetros de altura por quatro de comprimento, Synopsis of the British Pharmacopeia, de 1943, é o menor livro do acervo. Referências para a preparação de fármacos, as farmacopeias são documentos chancelados pelos órgãos máximos de vigilância sanitária de cada país, que estabelece os requisitos que os medicamentos devem seguir.
An Account of Indian Snakes: de 1801, obra pioneira também traz ilustrações de espécies de serpentes da Índia
Já An Account of Indian Snakes, do autor Patrick Russell, é um dos primeiros registros científicos a abordar a ofiologia (estudo das serpentes) produzida na Índia. Dividido em dois volumes, sendo o primeiro de 1796 e o segundo de 1801, os livrões são os maiores da Biblioteca, com 50 centímetros de altura.
De 1910, o livro escrito em francês aborda os principais achados de Marie Curie sobre radioatividade foi catalogado em 1917
Títulos raros
Outra preciosidade são os dois volumes do chamado Traité de Radioactivité, ou Tratado da Radioatividade, obra em que a cientista Marie Curie – primeira pessoa a ter ganho dois Prêmios Nobel em áreas científicas diferentes, Física e Química – consolida suas descobertas sobre a radioatividade, após ter identificado e isolado os elementos químicos rádio e polônio. Publicados em 1910, os livros contribuíram para o progresso da física nuclear e trouxe importantes avanços para a medicina.
Acredita-se que a imagem de Jenner estampada no livro tenha servido de referência para a pintura do cientista disposta na parede sala Cesário Motta
Ainda no quesito “raridades”, Monument à Edward Jenner – Histoire Générale de la Vaccine, aborda os principais trabalhos do pai da vacina. Financiado por D. Pedro II e outros monarcas, o livro traz a assinatura do médico Jaguaribe Filho, filho de um advogado importante da época e muito próximo do imperador. “Essa marca de proveniência indica que, talvez, o próprio D. Pedro II possa ter entrado em contato com o nosso exemplar”, conta a analista de serviços de informação da Biblioteca do Butantan Patrícia Lúcio Alves.
Achados entre as páginas dos livros
Nos últimos anos, a Biblioteca digitalizou boa parte de seu acervo para facilitar o acesso dos usuários. A consulta pode ser feita por meio do catálogo eletrônico, sendo possível acessar na íntegra as coleções digitalizadas. É possível, por exemplo, encontrar na íntegra todas as edições do periódico Memórias do Instituto Butantan, que reuniu toda a produção científica da instituição entre os anos de 1918 e 1993. Os fascículos foram encadernados com pele de serpente e integram a exposição da Sala Koch.
A receita prescrita por Vital Brazil foi feita no mesmo dia em que o fundador do Instituto Butantan completou 26 anos de idade, no ano de 1891
Com a finalização do restauro do prédio, também foi necessário reorganizar o acervo físico do espaço, composto por cerca de 4.500 livros. Os trabalhos renderam surpresas curiosas, encontradas “soltas” entre as páginas dos livros. Entre elas, está uma receita prescrita por Vital Brazil à irmã Iracema, que recomendava a combinação de lanolina, óleo de amêndoas doces, enxofre precipitado e óxido de zinco, além de um último item ainda não identificado. Ao final, pode-se ler: “para aplicar na parte doente.”
Já em uma leva de livros doados pelo herpetólogo americano Ronald A. Nussbaum foram encontradas diversas peles de serpentes, além de fotos de autoria do próprio pesquisador, realizadas no final da década de 1980, como a de um crocodilo tomando sol às margens de um rio e de uma grande cascavel.
Gel de eletroforese: técnica é amplamente utilizada para descobrir o tamanho de uma molécula de proteína
“Um dos achados mais interessantes que tivemos foi a de um experimento de eletroforese”, lembra a colaboradora da Biblioteca. Amplamente utilizada no meio científico, a técnica é feita em um tipo de gel para separar moléculas orgânicas. “Quem sabe agora não descobrimos o autor do experimento? Se você está lendo essa matéria e se lembrou de ter deixado um gel de eletroforese entre as páginas de um livro do acervo da Biblioteca do Instituto Butantan, vem contar essa história para a gente!”, brinca Patrícia.
Espaço renovado
Inaugurada oficialmente em 1922, a Biblioteca do Butantan passou por um recente processo de ampliação e modernização. Após alguns anos fechada, foi reaberta ao público no início de maio, agora abraçando não apenas a comunidade científica, mas também todos os visitantes que passam pelo Parque da Ciência. Ocupando agora todo o piso térreo e parte do pavimento inferior do Edifício Vital Brazil, o espaço ganhou ambientes separados por funcionalidade e níveis de ruído. São mais de dez salas para estudo, pesquisa, consulta ao acervo, discussão de projetos e desenvolvimento de oficinas e treinamentos.
Serviço Biblioteca do Butantan
Local: Edifício Vital Brazil
Horário para visitação: de terça a sexta, das 10h30 às 11h30 e das 14h30 às 15h30
Horário de funcionamento para público externo: de terça a sexta, das 8h às 18h
E-mail para contato: biblioteca.atendimento@butantan.gov.br
Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Marília Ruberti/Comunicação Butantan