Reportagem: Natasha Pinelli
Imagens: André Ricoy e José Felipe Batista/Comunicação Butantan
Uma pesquisa publicada na Revista Brasileira de Epidemiologia em junho deste ano, com participação do Instituto Butantan, apresentou uma análise epidemiológica detalhada dos acidentes com serpentes em São Paulo e identificou as principais áreas de risco no estado.
De acordo com a publicação, os incidentes com jararaca foram mais frequentes, concentrando-se sobretudo nas regiões sul, sudeste, norte e no litoral paulista. Já as picadas por cascavel apresentaram maior incidência na parte central, nordeste e noroeste do estado. Embora represente pouco mais de 1% dos casos, a coral-verdadeira também exige atenção, uma vez que espécies do gênero foram encontradas em todo o estado paulista.
Mais da metade dos acidentes com serpentes registrados no estado de São Paulo são ocasinados por jararacas (Foto: José Felipe Batista)
Quanto ao perfil das vítimas, os homens entre 20 e 59 anos foram os mais atingidos, seguindo a tendência do restante do país. A distribuição geográfica, porém, apresentou uma particularidade em São Paulo: embora os óbitos continuem sendo mais frequentes nas zonas rurais, onde o acesso ao atendimento costuma ser mais difícil, 55% dos acidentes foram registrados em áreas urbanas ou periurbanas.
O trabalho, que também reuniu especialistas do Ministério da Saúde, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e da Universidade de São Paulo, analisou 17.740 acidentes com serpentes peçonhentas notificados no estado entre 2010 e 2022, com base no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).
“A iniciativa tem como objetivo apoiar o planejamento de ações preventivas e a otimização de recursos de saúde, como a distribuição dos antivenenos no estado”, afirma a diretora técnica de produção de soros do Butantan e uma das autoras do estudo, Fan Hui Wen.
Os acidentes com cascavel acontecem em regiões mais secas e com áreas de vegetação aberta (Foto: José Felipe Batista)
No último ano, o estado de São Paulo registrou 2.133 casos de picadas por serpentes peçonhentas, segundo o Painel Epidemiológico do Ministério da Saúde, figurando na quarta posição do ranking nacional.
O estudo sugere que essa alta incidência pode estar relacionada a um fenômeno batizado como “urbanização dos acidentes ofídicos”. “Apesar do estado de São Paulo concentrar grandes áreas urbanas, os acidentes com serpentes configuram um problema relevante na região. A adaptação das serpentes a diferentes tipos de ambientes e o processo de urbanização desordenado, típico das grandes cidades brasileiras, acaba atraindo roedores (presas das cobras) e aumentando as chances de encontro com o animal”, observa a diretora técnica de produção de soros.
Concentrando 61% dos casos, os incidentes com jararacas (gênero Bothrops) foram os mais predominantes no estado. Os episódios ocorreram principalmente em áreas relativamente próximas de florestas tropicais densas – ecossistemas caracterizados pelo alto volume de chuvas e densidade de árvores, além do clima quente e úmido –, embora as serpentes do gênero também se adaptem a regiões mais secas. De acordo com o estudo, os municípios onde há maior risco de ocorrer um envenenamento com jararaca são Iporanga, Sete Barras, Miracatu, Juquiá e Barra do Turvo.
Corriqueiros em regiões secas, onde a vegetação é mais aberta e esparsa, os acidentes com cascavéis (gênero Crotalus) representaram 12% dos registros do estado no período. O risco é maior nas cidades de Rifaina, São Francisco, São João das Duas Pontes, Cássia dos Coqueiros e Santa Mercedes.
Responsáveis por apenas 1,2% dos registros, os acidentes elapídicos, causados pelas corais-verdadeiras (gênero Micrurus), apresentam risco considerável em regiões como Juquitiba, São Lourenço da Serra, São Francisco, São Pedro e Tabapuã. De acordo com o estudo, parte dos acidentes estão relacionados ao manuseio das serpentes por crianças, que são atraídas pela coloração vibrante e pelo comportamento aparentemente dócil do animal.
De modo geral, a incidência de picadas por serpentes peçonhentas aumentou durante o verão, com a chegada das altas temperaturas e do período de chuvas intensas, que coincide com a época de nascimento dos filhotes. Além disso, durante os dias de calor, os animais tendem a se movimentar mais, favorecidos pela maior disponibilidade de presas e recursos no ambiente.
Já no inverno, entre os meses de junho e agosto, o estado registrou menos acidentes ofídicos com jararacas e corais-verdadeiras. Contudo, os incidentes com as cascavéis permaneceram estáveis ao longo do ano.
A coloração da coral-verdadeira costuma chamar atenção das crianças (Foto: José Felipe Batista)
O estudo também revelou que uma parcela significativa dos acidentes ofídicos ocorreu fora do município de residência das vítimas – são os chamados acidentes não autóctones. Esse tipo de ocorrência correspondeu a 13% dos casos com jararacas, 15% com cascavéis e 13% com corais-verdadeiras.
A Grande São Paulo se destacou como uma das regiões que mais concentrou moradores picados em outros pontos do estado, provavelmente durante deslocamentos para trabalho ou lazer. Tal característica foi particularmente evidente nos casos de picadas por jararaca registradas nas cidades de Registro, Baixada Santista, Sorocaba, Campinas, Araraquara e Marília.
Em média, os acidentados estavam a cerca de 50 quilômetros de casa quando foram picados, mas houve situações extremas em que o incidente ocorreu a quase 800 quilômetros de distância do município de origem.
O dado reforça a importância de garantir que unidades de saúde localizadas em áreas de maior risco ou ao longo das rotas de deslocamento estejam preparadas para receber pacientes vítimas de envenenamentos por serpente peçonhenta. Isso inclui a disponibilidade adequada dos antivenenos específicos e o treinamento das equipes médicas, já que o tempo entre a picada e o atendimento é decisivo para o sucesso do tratamento.
A fim de facilitar o deslocamento dos acidentados, o Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde do Estado de São Paulo (CIEVS) disponibiliza um mapa online atualizado, com a localização dos hospitais de referência em todo o estado – salve este link e mantenha-o fácil de acessar em seu celular, principalmente quando viajar para municípios onde as picadas por serpente são mais frequentes.
Produzido pelo Instituto Butantan, o soro antibotrópico é utilizado em casos de evenvenenamento por picada de serpentes do gênero Bothrops (Foto: André Ricoy)
Comemorado em 19 de setembro, o Dia Internacional de Atenção aos Acidentes Ofídicos busca ampliar a visibilidade para os riscos e impactos das picadas de serpentes em diferentes populações do mundo.
Desde 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o problema como uma doença tropical negligenciada e estabeleceu a meta de reduzir em 50% as mortes e incapacidades provocadas por envenenamentos de serpentes até 2030.
No Brasil, o Butantan desempenha papel estratégico no enfrentamento do problema, sendo o principal produtor nacional de soros hiperimunes. Apenas em 2024, o Instituto entregou ao Ministério da Saúde mais de 420 mil frascos de antivenenos, fundamentais para o tratamento de pacientes com quadros de envenenamento por serpentes.
“O Instituto sempre esteve presente no combate ao ofidismo e buscou realizar parcerias, tanto com as áreas técnicas do agravo, como a que tivemos neste estudo, a fim de contribuir com a distribuição e entrega efetiva dos antivenenos”, conclui Fan Hui Wen.
Atualmente, a instituição fabrica cinco tipos de antivenenos contra picadas por serpentes:
- Soro antibotrópico (pentavalente): para acidentes com serpentes do gênero Bothrops (jararaca, jararacuçu, urutu, surucucu, comboia)
- Soro antibotrópico (pentavalente) e antilaquético: indicado para picadas de Bothrops (jararaca) ou Lachesis (surucucu-pico-de-jaca)
- Soro anticrotálico: utilizado em casos de envenenamento por Crotalus (cascavel)
- Soro antibotrópico (bivalente) e anticrotálico: eficaz contra picadas de Bothrops (jararaca) e Crotalus (cascavel)
- Soro antielapídico (bivalente): destinado ao tratamento de acidentes causados por Micrurus (coral-verdadeira)