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Problemas estruturais refletem na hesitação vacinal e combatê-los é a chave para retomada das coberturas, dizem especialistas

Dados do Imuniza SUS demonstram maiores gargalos na vacinação do país e ações municipais indicam ser possível reverter baixas coberturas com tecnologia, infraestrutura e educação


Publicado em: 30/10/2023

Um recorte da cobertura vacinal do estado de São Paulo e do Brasil apontou uma série de problemas estruturais que explicam a hesitação vacinal no país. A Pesquisa Nacional sobre cobertura vacinal, seus múltiplos determinantes e as ações de imunização nos territórios municipais brasileiros, Projeto ImunizaSUS, feito pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) junto à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ao Ministério da Saúde, levantou os principais problemas na vacinação de 5.000 municípios de São Paulo, com dados de 2021.

Ao menos 68,3% dos municípios paulistas apontaram o atraso no recebimento de vacinas como um problema frequente, e 76,7% dos municípios brasileiros refletem o mesmo obstáculo. Os dados foram divulgados pelo Conasems no 5º Fórum de Políticas Públicas da Saúde na Infância, promovido pela Fundação José Luiz Egydio Setúbal, e sediado no Instituto Butantan.

Outro problema recorrente que impacta na cobertura vacinal foi a irregularidade no recebimento das vacinas, presente em 50,3% dos municípios paulistas e 60,4% dos brasileiros; assim como problemas no quantitativo de vacinas em 63,4% em São Paulo e 70,8% em todo o país. 

Problemas no armazenamento de vacinas também se mostraram recorrentes. Em 40,3% nos municípios paulistas e em 53,8% dos municípios brasileiros foram relatadas dificuldades no armazenamento de vacinas no nível central. 

 

Brigina Kemp, do Grupo de Vigilância em Saúde do Conasems, apresenta dados do ImunizaSUS

Já problemas no armazenamento de vacinas nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) foram apontados em 62,3% das cidades paulistas e 67,3% no país, assim como uma rede de frio inadequada consta em 49,4% dos municípios paulistas e em 55,7% do Brasil.

“Essa pesquisa mostrou que temos problemas de atraso para receber vacinas e no quantitativo de doses recebidas. É um desafio que tem que ser enfrentado entre os municípios onde a vacinação acontece, mas que não deve ser feito sozinho. Tem que haver um trabalho coordenado com as secretarias municipais e estaduais de saúde junto ao Ministério da Saúde”, disse Brigina Kemp, da Comissão Permanente de Assessoramento e Imunização do estado de são Paulo, e do Grupo de Vigilância em Saúde do Conasems, que apresentou os dados da pesquisa.

A perda de doses é um outro gargalo que atinge 50,2% dos municípios paulistas e 53,7% dos brasileiros, com as principais causas envolvendo o vencimento (57,9% em São Paulo e 46,1% no Brasil); problemas na rede de frio (24,5% em São Paulo e 11,1% no Brasil); não utilização completa das doses de frascos abertos (52,4% em São Paulo e 61,8% no Brasil) e falta de demanda para vacina (13,2% em São Paulo e 21,6% no Brasil).

“Quando aparece uma criança para tomar uma vacina e eu tenho um frasco, devo abrir e perder doses? Óbvio que vou vacinar a criança. Mas surge o dilema para o gestor porque o Tribunal de Contas pergunta por que há desperdício de doses? É importante dizer que o Conasems tem um diálogo muito bom com o tribunal que reconhece que é melhor que não se perca a criança. É um problema que estamos enfrentando, mas que já estamos avançados”, ressaltou Brigina. 

Problemas na aplicação e no registro de doses

A pesquisa demonstra também uma série de problemas na aplicação das vacinas. O mais recorrente refere-se à sobrecarga de trabalho da equipe de enfermagem, presente em pouco mais de 80% dos municípios paulistas e brasileiros. 

A falta de pessoal para aplicação das doses chega a 66% e 67% dos municípios em São Paulo e no Brasil, respectivamente, o que reflete nos problemas de alta rotatividade de profissionais da equipe de sala de vacina em 56% dos territórios. A estrutura inadequada para atender a população foi apontada como um problema em 45,3% dos municípios paulistas e em 51% dos brasileiros.

Foi levantado ainda uma série de problemas no registro de vacinas, sendo o mais recorrente a internet instável (63,9% dos municípios paulistas e 73,4% dos brasileiros); dificuldade de acompanhamento do controle vacinal dos usuários (63,9%% dos municípios paulistas e 72% dos brasileiros); registro feito manualmente para posterior lançamento no sistema do Programa Nacional de Imunizações (PNI) (54,5% dos municípios paulistas e 71,4% dos brasileiros); dificuldade de monitorar o alcance das metas de vacinação locais (65,3% dos municípios paulistas e 69,6% dos brasileiros). 

“Temos muitos problemas, mas também muitas potências e temos que utilizá-las. É fundamental um trabalho integrado para aumentar a cobertura na atenção básica. E para isso precisamos fazer um trabalho cooperado e de educação que envolva órgãos de controle, universidades, pesquisadores, sociedades científicas, laboratórios produtores de vacinas, setores de comunicação e outros segmentos da sociedade. Se não fizermos isso, não vamos conseguir recuperar as coberturas vacinais do país”, concluiu Brigina.

O coordenador de Assistência Farmacêutica da Secretaria de Saúde de Baturité, Micael Pereira Nobre, detalha plano de virada das coberturas no município

 

Políticas que deram certo

A cidade de Baturité (CE) é um case de sucesso na retomada da cobertura vacinal no Brasil. Em 2021, o município de 33 mil habitantes tinha uma média de cobertura vacinal entre crianças de até um ano de 37%, muito abaixo da meta de 90% do PNI.

“Tínhamos a pior cobertura de vacinas de rotina de todo o estado do Ceará e todos os indicadores de saúde no vermelho. A alimentação do sistema informativo estava prejudicada, e as normas e rotinas das salas de vacinas inadequadas. Não havia planejamento e monitoramento e faltava treinamento e atualização nas salas de vacina”, detalhou o coordenador de Assistência Farmacêutica da Secretaria de Saúde de Baturité, Micael Pereira Nobre.

A história da vacinação da cidade começou a mudar em 2022, quando foram implementados planejamentos e metas, além de treinamentos das coordenações de saúde. Mas o que fez toda a diferença foi o projeto piloto de Busca Ativa Vacinal (BAV), feito com plataforma do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que cadastra equipes para treinamentos com profissionais e cria ações que garantam a vacinação para quem precisa.

“Tivemos a oportunidade de fazer um trabalho intersetorial de saúde, de educação e assistência social, além de qualificação da visita domiciliar na busca dos faltosos. Nestas ações pudemos falar com a população sobre a importância da vacinação”, disse Micael.

O projeto de Baturité se destacou também pela inovação. A BAV passou a divulgar postos de vacinação na rádio local; um carro foi utilizado para imunização volante e até mesmo em salas de velório, onde se reuniam muitas pessoas, havia vacinadores a postos.

“Conquistamos uma cobertura vacinal acima de 97% em menores de um ano; 97% da população cadastrada no e-SUS, a informatização de todas as UBSs; e a certeza de que não teremos o recrudescimento de doenças imunopreviníveis e equipes satisfeitas com os resultados dos indicadores”, concluiu Micael.

A gerente do departamento de Assuntos Médicos, Estudos Clínicos e Vigilância pós-registro de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Maria de Lourdes Maia, apresenta o projeto

Outro exemplo de estratégia bem-sucedida foi o projeto “Planos municipais pela reconquista das altas coberturas vacinais a partir do acompanhamento dos dados e sistemas de informação e ações de comunicação e educação (PCRV)”, focado em educação e capacitação, e realizado nos estados do Amapá e Paraíba pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com o PNI e a Socidade Brasileira de Imunizações (SBIm). 

O projeto consistiu na criação de oito passos focados em estudos, informações, mobilizações, capacitação, formação de redes de apoio e ações estruturantes, ações de comunicação e de monitoramento, articuladas com estados e municípios ao longo dos últimos dois anos. Ele resultou na capacitação de mais de 300 multiplicadores e de 3.500 profissionais de saúde das áreas de saúde e educação.

Entre os projetos educacionais, se destacaram os Jovens atores indígenas e o Jovens repórteres da Paraíba; o primeiro um grupo de teatro indígena no Amapá e o segundo uma rede de multiplicadores da ciência entre jovens de periferias. Entre os espetáculos encenados, um deles foi “O SUS e o susto do Jacaré”, que abordava a importância da vacinação e os perigos da desinformação.

“Fizemos uma parceria com a Central Única das Favelas da Paraíba, que ajudou a formar 29 jovens repórteres. No Amapá, a iniciativa deu origem à companhia de teatro Maiuhi, com 30 jovens atores dos povos Karipuna, Galibi-Marworno, Palikur-Arukwayene e Waiãpi”, disse a gerente do departamento de Assuntos Médicos, Estudos Clínicos e Vigilância pós-registro de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Maria de Lourdes Maia.

A rede ainda trabalha no Censo Vacinal, uma ação mensal de identificação nominal de crianças menores de 2 anos com objetivo de busca de faltosos.

“O nosso objetivo é apoiar o PNI a alcançar novamente as altas coberturas, por isso escolhemos os dois estados que já tínhamos trabalhos ancorados nas universidades e pelas secretarias estaduais, todos com baixas coberturas vacinais. Precisamos reconquistar as coberturas vacinais porque somos o país que sabe vacinar”, reforçou Maria de Lourdes.

 

Reportagens: Camila Neumam

Fotos: Renato Rodrigues e José Felipe Batista