Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: José Felipe Batista e Marília Ruberti/Comunicação Butantan
Assim como em uma cozinha profissional, em que cada movimento precisa ser cuidadosamente cronometrado para que um prato seja servido de maneira perfeita, a produção da vacina da gripe do Butantan exige precisão e sincronia para chegar no tempo certo ao braço dos brasileiros.
Esse ritmo se intensifica no final de setembro, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) anuncia as três cepas que deverão compor o imunizante da temporada seguinte no hemisfério Sul, após uma análise detalhada dos tipos de vírus influenza que estão em circulação na região e que apresentam maior potencial de agravo.
A vacina contra a gripe do Butantan é composta por três cepas. Todos os anos a OMS atualiza a formulação do produto (Foto: José Felipe Batista)
Caso alguma dessas cepas (uma versão do vírus modificada em laboratório para produção segura da vacina) não esteja disponível no estoque do Instituto, dezenas de profissionais passam a trabalhar de forma coordenada para garantir que, em cerca de 48 horas, o material esteja devidamente autorizado a seguir viagem, rumo à instituição.
Parte dessa engrenagem começa a girar antes mesmo do anúncio oficial da agência, com a montagem da programação das entregas dos ovos especiais, livres de patógenos, que vão servir de base para a multiplicação das cepas indicadas para compor o imunizante. Mas é no instante em que a OMS divulga suas recomendações que começa uma verdadeira corrida contra o tempo.
A seguir, conheça os momentos decisivos dessa jornada sem margem para falhas, essencial para a produção anual das mais de 80 milhões de doses de vacina da gripe que são distribuídas anualmente pelo governo federal à população brasileira. Confira:
Logo após o anúncio da nova formulação da vacina, a equipe técnica decide com quais das cepas disponíveis em estoque a produção será iniciada (Foto: Marília Ruberti)
A reunião da OMS para divulgação das novas cepas acontece de forma híbrida – presencial e remota –, com todos os produtores da vacina de influenza do hemisfério Sul.
“Nesse dia, o clima aqui no Butantan fica bem parecido com uma final de Copa do Mundo. Nós, da produção, assistimos tudo ao vivo para acompanhar as orientações e repassar, o mais rápido possível, informações cruciais às outras áreas envolvidas no processo”, afirma a gerente da Produção de Bancos de Influenza (PBI) do Butantan Priscila Comone.
Durante a reunião, a equipe técnica da produção decide com qual das cepas anunciadas, disponível em estoque, que iniciará o desenvolvimento da vacina da gripe. Além disso, é preciso identificar quais laboratórios internacionais disponibilizam a possível cepa “inédita”. Tudo é passado praticamente em tempo real para a área de Compras do Butantan, que já inicia os primeiros contatos com os responsáveis pelo envio do material biológico.
“Como não podemos depender de apenas um fornecedor, pois qualquer problema poderia colocar nossa produção em xeque, a estratégia é acionar e importar as cepas de todos os que tenham o material. Geralmente, tratamos com dois laboratórios diferentes”, explica a gerente de Compras e Licitações do Butantan, Luciane Vieira de Jesus.
Imediatamente após a finalização da reunião com a OMS, uma força-tarefa é iniciada para a abertura e aprovação do chamado Controle de Mudança (CM), um protocolo interno do Butantan que formaliza a necessidade de alteração da vacina e a importação de uma nova cepa do vírus influenza. Essa etapa é crucial para sinalizar todas as áreas que serão impactadas por essa atualização e garantir o atendimento das Boas Práticas de Fabricação.
O processo desencadeia uma série de aprovações em cascata, envolvendo cerca de dez áreas da instituição. Em situações comuns, a tramitação entre a abertura e a validação dessa mudança pode levar vários dias. Mas, por se tratar de um procedimento emergencial, as áreas impactadas são avisadas com uma semana de antecedência sobre a alteração que será registrada no sistema no dia da reunião da OMS.
A tensão é constante, pois qualquer pendência ou demora pode atrasar uma sequência de tarefas que só podem ser executadas depois que o Controle de Mudança estiver devidamente aprovado, como a solicitação de compra e importação da cepa.
Luciane é gerente de Compras e Licitações do Butantan. Sua equipe garante o contato quase que imediato com os fornecedores da cepa vacinal (Foto: José Felipe Batista)
O CM é completamente aprovado cerca de seis horas após a abertura no sistema. Em seguida, o próximo passo é gerar a identificação no sistema para a cepa atualizada. “Para não perdermos tempo, adotamos uma ação de guerra: nos fechamos em uma sala e só saímos de lá depois de ter o cadastro concluído. A cada nova etapa vencida, ligamos para o colaborador responsável em dar o próximo aval, para que o processo não fique travado em ninguém”, afirma o coordenador do PBI, Hugo Jemesom.
Isso é importante para que a nova cepa passe a “existir”, de fato, nos sistemas do Butantan, permitindo assim que solicitações relacionadas a ela sejam feitas – como o pedido de importação do material, que é consolidado pela área de Planejamento e Controle de Produção (PCP) do Butantan.
Ainda que a área de Compras já tenha entrado em contato paralelamente com os fornecedores para entender a disponibilidade da cepa, é preciso receber uma requisição “oficial” da área de PCP para dar sequência ao processo.
Nesta fase, os laboratórios precisam enviar dois documentos para a equipe de Compras do Butantan: o invoice, tipo de nota fiscal com o descritivo do material a ser fornecido; e o packing, com informações da embalagem na qual a cepa será despachada, como dimensão, peso e temperatura. Um detalhe: o material precisa viajar a uma temperatura média de -60 °C e, por isso, deve estar envolto em gelo seco.
“O problema dessa etapa é que nem sempre os fornecedores são ágeis e a resposta pode demorar bem mais do que gostaríamos”, reforça Luciane Vieira de Jesus. Quando isso acontece, a equipe de Compras entra em ação novamente para pressionar os fornecedores em diversas frentes, seja por e-mail, telefone ou WhatsApp.
Uma vez que esses documentos são enviados pelo fornecedor, a logística de transporte da cepa fica a cargo da área de Comércio Exterior do Butantan, que também é responsável pela obtenção da chamada Licença de Importação – documento eletrônico que autoriza a entrada de mercadorias controladas no país, garantindo o atendimento às normas de segurança e qualidade.
Com a licença em mãos, Comércio Exterior e Compras passam a realizar acompanhamentos diários junto ao fornecedor. O objetivo é entender quando o material será enviado, estimando a previsão de chegada na fábrica de vacinas do Butantan.
Karin e Kátia são da equipe de Comércio Exterior. Durante o processo de importação, o contato com o fornecedor é constante para garantir o embarque rápido e seguro do material (Foto: Marília Ruberti)
O transporte da cepa é outro momento de tensão. Antes do embarque, é realizada uma verificação completa de toda a documentação, com o objetivo de minimizar possíveis contratempos. E, apesar do volume ser pequeno – são despachadas apenas duas ampolas, contendo 1 ml do produto cada uma –, a carga precisa viajar com monitoramento constante de temperatura. Para isso, inclui-se na remessa um pequeno dispositivo chamado data logger, capaz de registrar minuto a minuto a variação de temperatura.
“São muitas decisões estratégicas. Não podemos deixar a cepa embarcar em um voo com chegada ao Brasil na sexta, por exemplo. Caso contrário, corremos o risco de não ter uma equipe disponível no aeroporto para fazer a reposição do gelo seco, comprometendo assim a integridade do material”, pontua a analista de Comércio Exterior Katia Rejane Ferreira.
Assim que chega ao Butantan, a cepa vacinal permanece devidamente acondicionada na Produção de Bancos de Influenza (Foto: Marília Ruberti)
Assim que o voo com a cepa aterrissa no Brasil, começa de imediato o processo de desembaraço e liberação da carga. O processo é conduzido com prioridade máxima e rapidez para reduzir ao mínimo o tempo de permanência no aeroporto, garantindo que o material mantenha sua integridade e qualidade até ser transportado para o destino final.
Após a autorização da Receita Federal, finalmente a cepa importada está liberada para iniciar o último trecho da viagem até o Butantan. Em terra, o transporte acontece em carro refrigerado. Apesar de uma parte da ansiedade terminar quando o material é finalmente liberado no aeroporto, a chegada da cepa às dependências do Instituto também representa um momento decisivo para a produção.
Antes de ser entregue ao PBI, onde a nova cepa será inspecionada e, por fim, acondicionada em um ultrafreezer, a cepa acaba passando por outras áreas, como os setores de Recebimento e Estoque. “Quando o carro está a caminho, já deixamos todos os envolvidos na operação em alerta. É receber, conferir e despachar. Não podemos bobear, pois estamos lidando com o coração da vacina da gripe”, observa a também analista de Comércio Exterior Karin Yuri Kawazu.
Para se ter uma ideia da agilidade desse processo, em 2024, a cepa chegou ao Instituto Butantan apenas 15 dias após o anúncio da OMS – graças às ações coordenadas e eficientes das diversas áreas envolvidas na operação. Um tempo curto e intenso, que garante meses de trabalho na fábrica da vacina da gripe do Butantan, além de reforçar a proteção da população brasileira contra a doença por mais um ano inteiro.