Uma equipe de gestores de produção de soros do Instituto Butantan esteve em Caracas, na Venezuela, no final de 2023 para conhecer as instalações e os processos produtivos da BIOTECFAR, empresa pública ligada ao Centro de Biotecnologia da Faculdade de Farmácia da Universidade Central da Venezuela e responsável pela fabricação de antivenenos no país. A missão, coordenada pelo Centro Pan-Americano de Febre Aftosa e Saúde Pública Veterinária (PANAFTOSA), da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), buscou identificar oportunidades de melhoria na cadeia de produção para fortalecer a oferta do imunobiológico na América Latina.
O cenário de fabricação de soros é muito mais heterogêneo que o das vacinas. São laboratórios de diferentes tamanhos, com processos, dificuldades e fortalezas bastante particulares. “Isso acaba afetando o quantitativo disponível na região”, observa a diretora técnica de produção de soros do Instituto e integrante da missão, Fan Hui Wen. A gerente de produção do setor de Processamento de Plasmas Hiperimunes do Butantan, Aline Auada, o coordenador de Zoonoses do PANAFTOSA, Marco Antonio Vigilato, e o representante da OPAS na Venezuela, Franklin Fernandes, completaram a equipe envolvida na ação.
Tanto a organização brasileira como a venezuelana integram a Rede de Laboratórios Públicos Produtores de Soros Antivenenos da América Latina (RELAPA). Formada por 12 laboratórios públicos de nove países, a iniciativa busca fomentar atividades de cooperação entre as diferentes instituições. Na visita à Venezuela, a proposta foi ter um laboratório estruturado e com produção consistente, tendo como referência o Butantan, órgão ligado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, apoiando outra instituição que ainda possui limitações.
As representantes do Instituto Butantan (à direita) com o grupo de trabalho venezuelano, em frente ao prédio da Faculdade de Farmácia, onde fica o laboratório de produção de soros antiveneno
Pequenos ajustes, grandes impactos
Uma reunião com representantes do Ministério da Saúde da Venezuela marcou o início dos trabalhos. Depois, ao longo de cinco dias intensos, as especialistas do Instituto percorreram a cadeia produtiva da BIOTECFAR, que envolve a manutenção dos animais, a extração dos venenos, a obtenção, processamento e purificação do plasma, o controle de qualidade, a formulação e o envase do produto final. “Percebemos que, hoje, eles detêm o mesmo processo que o Butantan seguia há algumas décadas”, afirma Aline Auada.
A extração do plasma – parte líquida do sangue dos equinos que contém os anticorpos e é utilizada na fabricação de antivenenos –, por exemplo, é feita por meio do método tradicional. Primeiramente, os venezuelanos tiram um determinado volume de sangue dos cavalos. Depois, mandam as bolsas de sangue total para a sede da companhia, em Caracas, onde só então é feita a separação do plasma das hemácias (parte vermelha do sangue).
Quando o Instituto Butantan adotava o mesmo método manual de coleta, a divisão dos componentes sanguíneos já acontecia no próprio ambiente da fazenda. De acordo com a equipe brasileira, realizar esse pequeno ajuste poderia beneficiar o bem-estar do animal, já que as hemácias seriam reintroduzidas no organismo do cavalo, e tornar a separação do plasma mais eficiente.
No Butantan, a sangria foi substituída pelo método da plasmaférese automatizada em 2019. Semelhante a uma hemodiálise, a técnica separa o plasma, por meio de um sistema de centrifugação, e devolve imediatamente a parte vermelha do sangue ao equino. O resultado é um plasma mais limpo e em volume adequado à escala industrial, além de um aumento considerável na qualidade de vida do cavalo.
Outra sugestão da equipe visitante diz respeito às análises de controle da qualidade. Atualmente, a equipe venezuelana opta por fazê-las ao final do processo. Porém, realizá-las ao longo do processo produtivo, em determinadas etapas críticas, permite antecipar a detecção de possíveis desvios e realizar ajustes. “São como pequenas peças que, de tempos em tempos, precisam ser repensadas e remanejadas para garantirmos uma melhoria contínua do processo”, completa a gerente de produção do Butantan.
Ao final da missão, foi apresentado um parecer técnico da visita com sugestões de ações capazes de contribuir para um aumento de potência e rendimento do produto, sem grandes investimentos ou aquisições. Nas próximas semanas, a equipe do Butantan deverá se dedicar à elaboração de um relatório final que será entregue ao PANAFTOSA. A ideia é que o documento sirva como subsídio para eventuais tomadas de decisões.
Fan Hui Wen e Aline Auada durante o jantar de encerramento das atividades da missão
Doença tropical negligenciada
Responsável pela fabricação dos soros antibotrópico, anticrotálico e antiescorpiônico na Venezuela, anualmente a BIOTECFAR produz cerca de 50 mil ampolas de antivenenos. Entretanto, o laboratório tem sofrido com a falta de previsão das necessidades de soros para o país, uma vez que as estatísticas fornecidas pelo sistema de vigilância epidemiológica flutuam bastante. Para se ter uma ideia, as estatísticas já chegaram a saltar de 4.000 para 8.000 acidentes ofídicos em um intervalo de apenas um ano.
“Observamos um grande comprometimento dos colaboradores envolvidos na cadeia de produção. Eles sabem que se conseguirem otimizar a cadeia, mais pessoas serão beneficiadas, pois atualmente nem toda a população de risco para acidentes tem acesso aos soros”, avalia Fan Hui Wen.
O envenenamento por animais peçonhentos é considerado um grande problema de saúde pública em toda a América Latina. Estima-se que mais de 57 mil acidentes por picada de cobra ocorram todos os anos na região, segundo dados da OPAS.
Falhas no diagnóstico e atrasos no tratamento das mordeduras podem levar à morte ou desencadear uma série de morbidades, sobrecarregando os sistemas de saúde locais. Além disso, as deficiências decorrentes das picadas de serpente causam impactos sociais e econômicos, devido a possíveis perdas de condições de trabalho por parte dos afetados – em muitos casos, a única forma de salvar o paciente é com a amputação do membro ferido.
Em 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu os muitos impactos ocasionados pelos envenenamentos, principalmente entre grupos populacionais mais vulneráveis, e incluiu o ofidismo na lista de doenças tropicais negligenciadas. A meta global da entidade é reduzir em 50% os casos de acidentes por picadas de cobras até 2030.
“Se fizermos um mapa dos laboratórios produtores de soros, pelo menos na América Latina, boa parte é centenária. São instituições que foram criadas para resolver problemas de saúde pública, assim como o Butantan”, diz a diretora técnica de produção de soros. Ainda de acordo com Fan, o apoio dos governos para o fortalecimento das organizações é essencial para suprir as necessidades das diferentes populações da América Latina, garantindo assim um sistema de distribuição capilarizado e eficiente do produto.
Produção deve dobrar
Anualmente, o Butantan produz cerca de 600 mil ampolas de 12 tipos diferentes de antivenenos. E o futuro mostra-se promissor: em dezembro de 2023, o Ministério da Saúde firmou compromisso com o Butantan para um investimento de R$ 222 milhões para a finalização de uma nova planta produtiva de soros liofilizados no Instituto.
Com a estrutura civil da fábrica já pronta, a expectativa é de que, em breve, se iniciem as obras internas, assim como a aquisição de equipamentos mais atualizados para a linha produtiva. “A nova planta nos permitirá uma importante conquista, que é dobrar a produção e ofertar os soros que são essenciais para a saúde pública brasileira, de outros países e continentes. Sempre acreditamos na nossa capacidade e assumimos esta responsabilidade”, conclui Fan.