Portal do Butantan

“Guardiã da sala das jararacas”: bióloga do Butantan há 5 anos, ela nunca se imaginou trabalhando com serpentes

A trajetória árdua de Fabíola Rodrigues a impulsionou a se especializar no manejo de animais silvestres; hoje, é responsável pela sala das jararacas do Laboratório de Herpetologia


Publicado em: 19/11/2024

Reportagem: Guilherme Castro
Imagens: José Felipe Batista/Comunicação Butantan (fotos 1 e 3) e arquivo pessoal (fotos 2, 4, 5 e 6)


Desde a infância, Fabíola Rodrigues sabia que queria trabalhar com animais silvestres – só não imaginava que a vida a levaria a se apaixonar por serpentes. Foi em um dos muitos cursos extracurriculares que fez durante a graduação em Biologia, na Universidade São Judas Tadeu, que ela conheceu o estudo e manejo de ofídios, durante uma palestra do médico veterinário Daniel Stuginski, do Laboratório de Herpetologia do Instituto Butantan. Pensando que havia ali uma chance imperdível, Fabíola engoliu a vergonha e entrou em contato com o cientista, que lhe garantiu que a chamaria assim que surgisse a primeira oportunidade de estágio. Hoje, ela trabalha lado a lado com Daniel no laboratório, e é responsável pelo manejo e supervisão de jararacas e jararacuçus. É das serpentes que Fabíola cuida que sai a matéria-prima do soro antibotrópico, um dos mais antigos do Butantan e o tratamento antiofídico mais utilizado do Brasil.

O acaso e a cara de pau deram certo, mas a trajetória que levou a paulistana de 32 anos até esse momento não foi nada fácil. Fabíola nasceu no bairro Liberdade, centro de São Paulo, filha de ambulantes. Desde os seis anos de idade, ela vivia com a família em regiões centrais da cidade, como Luz e Santa Cecília, onde os pais, Rosalina e Francisco, trabalhavam sem o aval da prefeitura, que só veio no início dos anos 2000 – eles costumavam ficar na rua José Paulino, antiga Rua dos Imigrantes, no Bom Retiro. Nessas idas e vindas, a educação dos filhos era prioridade: os dois estavam sempre em busca de formas de alocar as crianças em escolas com boa reputação. O primeiro fruto dessa preocupação foi a graduação em Logística do primogênito, Paulo.
 

Fabíola é responsável pela supervisão e manejo de jararacas e jararacuçus

 

Fabíola, a próxima da fila, seguiu pelo mesmo caminho. Antes de se formar a jovem já estagiava: começou no Zoológico de São Paulo e, no fim da faculdade, se tornou estagiária voluntária no Laboratório de Herpetologia. Em 2015, quando se formou, aproveitou para se inscrever no Programa de Aprimoramento Profissional (PAP) do Instituto, para aprender práticas de bioterismo. Mais uma vitória: Fabíola foi aprovada e pôde conhecer processos multidisciplinares de manejo animal, nos biotérios de Herpetologia, Artrópodes e Camundongos. “O engraçado foi que na época em que fiquei no Laboratório de Artrópodes, descobri que sou extremamente alérgica ao veneno das aranhas Loxosceles. Que bom que notei cedo”, brinca. 

 

Formar sempre foi questão de orgulho para Fabíola: queria mostrar aos pais que é possível vencer, mesmo com as adversidades

 

Foram dois anos de mergulho no dia a dia dos profissionais que sustentam a primeira base da produção de soros antiveneno do Butantan. A paixão por serpentes, que havia despertado com o curso de Daniel Stuginski, só se intensificou. Mas quando o programa acabou, Fabíola teve que sair do Butantan porque não havia vagas. Desanimada, ela achou que não conseguiria se reinserir na área: afinal, trabalhar diretamente com animais silvestres é um ramo muito exclusivo e restrito das ciências biológicas. 

Por quatro meses, a tecnologista buscou vagas em instituições de ensino e zoológicos, mas recebeu poucas devolutivas. Até que surgiu uma oportunidade para trabalhar com microbiologia em uma empresa privada, posição que ela prontamente aceitou. A afinidade com a área era pouca, mas a necessidade de se manter e ajudar a família era bem maior.


Fabíola está sempre de olho nos animais da sala das jararacas; caso precisem de algum atendimento veterinário, ela é a primeira a saber

 

Guinada positiva: de volta ao Butantan

Ainda que odeie falar em público e estar à frente dos holofotes, Fabíola não deixou a vergonha intimidá-la durante a estadia no Butantan. Participou de diversos projetos e fez muitos amigos, entre eles a pesquisadora científica e na época diretora do laboratório, Kathleen Fernandes Grego, que sempre a estimulou e inspirou. O resultado é que a presença daquela jovem tímida e esforçada não passou batido.

Depois de alguns meses na empresa de microbiologia, Fabíola recebeu uma ligação. Era Kathleen, perguntando se a jovem não tinha interesse em voltar ao Instituto, pois haviam surgido algumas vagas efetivas na Herpetologia. “Lembro que eu estava no trabalho e comecei a chorar. Não podia falar para ninguém, então me perguntavam se estava tudo bem e eu não sabia o que responder. Concorri com 15 pessoas, algumas que já haviam trabalhado no Laboratório, em um processo seletivo bem rígido. Mas Graças a Deus deu tudo certo e em 2019 voltei como funcionária”, relata.

Hoje, Fabíola é tecnologista do biotério do laboratório e atua na área de produção – ela cuida de uma sala que contém cerca de 70 jararacas e jararacuçus, que fazem parte do plantel que fornece veneno para a fabricação dos soros do Butantan. Sua função é manejar as serpentes, que até chama de “filhas": alimentá-las, facilitar sua reprodução e supervisionar a manutenção da sala. Uma vez por mês, Fabíola se dedica a uma tarefa extremamente delicada: é ela quem extrai o veneno dos animais para encaminhá-lo à produção. 

A bióloga também é responsável por outras salas fora da área de produção, como as quarentenas. Esses recintos são reservados para as serpentes que acabaram de sair da natureza (após serem resgatadas por órgãos ambientais, por exemplo) e precisam passar por um período de adaptação e testagem antes de serem alocadas no biotério. Esse trabalho envolve até mesmo técnicas veterinárias, como realizar ultrassonografias para descobrir se as cobras chegaram prenhes ao Butantan. 

 

Os pais de Fabíola e Paulo, Rosalina e Francisco, sempre investiram na educação dos filhos para que eles pudessem trilhar novos caminhos

 

O esforço por trás das cortinas

Quem vê a profissional estável e de sangue frio, que consegue lidar facilmente com jararacas e jararacuçus – serpentes conhecidas entre os cientistas pelo temperamento agressivo –, talvez não imagine que a trajetória acadêmica e profissional de Fabíola foi cheia de altos e baixos. Durante a graduação, a mensalidade era sempre uma questão de estresse – mesmo com bolsa de estudos, a estudante precisou da ajuda da mãe até conseguir os primeiros estágios remunerados. O dinheiro era pouco, mas suficiente para dar os primeiros passos rumo à independência. Trabalhar e estudar ao mesmo tempo é que não foi fácil, mas se formar era questão de orgulho.

Quando fala das dificuldades para conseguir concluir a graduação, Fabíola se emociona ao lembrar dos pais. “Eles não terminaram a escola, os dois fizeram o ensino fundamental, mas não completaram. Sempre foram camelôs, então a educação é uma coisa importante para eles. Me ajudaram muito e eu queria mostrar que consegui”, ela relembra. “Eles enchem a boca para falar que trabalho no Instituto Butantan.”

Assim que Fabíola conseguiu a vaga efetiva no Butantan e as coisas começaram a se encaixar, a família sofreu um baque. Rosalina, o ponto de força e acolhimento da casa, sofreu um acidente vascular cerebral que paralisou o lado direito de seu corpo. A filha, abalada, pensou que não saberia lidar com a situação. A rede de apoio de parentes e amigos, tanto do Butantan quanto de fora, a levantou. 

Demorou alguns anos para que a mãe conseguisse retomar um pouco da autonomia. “Hoje ela já come sozinha, fala, briga com a gente. E para mim isso já é suficiente”, resume Fabíola. 

A família chegou até a adotar um cachorro para trazer alegria à casa, o buldogue Théo. A princípio, ele seria o companheiro de Fabíola, que sempre quis ter um bicho de estimação. Mas, no fim das contas, se tornou defensor e apoio emocional de Rosalina. Às vezes, quando a matriarca precisa de alguma ajuda, é ele o indicador – começa a latir sem parar e todos percebem que algo está acontecendo.

Depois do susto, as coisas começaram a voltar aos eixos. Fabíola conseguiu concluir uma pós-graduação lato sensu em Manejo e Conservação da Fauna Silvestre na Universidade Santo Amaro (UNISA), e pensa em fazer um mestrado em 2026. Uma segunda graduação em veterinária também está no horizonte de possibilidades.

 

É na fé que Fabíola se reconecta com sua ancestralidade enquanto mulher negra

 

Ancestralidade e a alegria de poder ser quem se é

De família católica, Fabíola participou de todos os rituais litúrgicos que conseguiu: foi coroinha, líder de pastoral, líder de juventude e catequista. Com o tempo, parou de frequentar a igreja, mas a inclinação ao sagrado nunca lhe deixou. Há um ano e meio, sentiu que precisava se reconectar com essa parte importante de si, e foi na umbanda que encontrou alento e significado. “Eu estava muito dispersa. Encontrar esse espaço de redescoberta, aprendizado, que me fez estar em união com a minha ancestralidade, me fez muito bem”, conta. 

Ela se iniciou e hoje frequenta com regularidade o Terreiro Filhos de Fé do Caboclo Pena Branca, na Barra Funda, que encontrou por acaso circulando pelo bairro. A parte difícil dessa trajetória, segundo ela, foi contar para os pais. Por serem cristãos tradicionais, ela pensou que eles não lidariam bem. Não podia estar mais enganada: os pais não só a respeitaram, como a incentivam a professar a fé em casa. Inclusive, é Rosalina que lembra Fabíola das obrigações que tem que cumprir quando a tecnologista esquece.

 

A bióloga é apaixonada por samba e hoje toca tamborim e xequerê em blocos de carnaval

 

Fazer parte de algo que tem a história e cultura negras intrincadas foi rejuvenescedor para Fabíola. Antes, por conviver em ambientes que não valorizavam esses aspectos, ela não conseguia se entender enquanto mulher negra. Hoje é orgulhosa ao se reafirmar enquanto parte da comunidade, e está  disposta a experimentar coisas novas. A empreitada mais recente tem sido ensaiar para os blocos de carnaval Não Serve Mestre, em Pinheiros, e Qué Que Deu, nos Campos Elíseos, que sairão para foliar em 2025. Fabíola tocará pela primeira vez o xequerê e o tamborim, instrumentos de percussão que treina há dois anos.

Apaixonada por música, se pudesse a bióloga estaria todo final de semana em uma roda de samba, cantando e tocando. Afinal, não há nada que a impeça de ser feliz. “Temos que quebrar o paradigma de que não é possível. Pessoas negras podem chegar em qualquer lugar que quiserem. Vamos nos capacitar, estudar e ir atrás. Devemos estar em todos os espaços, seja em uma instituição renomada como o Butantan, seja vivendo nossas vidas com alegria”, finaliza.