Osteoartrite, artrite reumatoide e doenças degenerativas, como Alzheimer, são exemplos de doenças de base inflamatória cujo tratamento ainda é um desafio para a medicina. Com a falta de terapias específicas, milhões de pessoas são tratadas de forma paliativa, apenas para alívio dos sintomas. Foi a necessidade de investigar alternativas para melhorar a qualidade de vida desses pacientes que motivou a criação do Centro de Excelência para Descoberta de Novos Alvos Moleculares (CENTD, na sigla em inglês) do Instituto Butantan.
Desde 2017, a plataforma avançada vem contribuindo para a descoberta de alvos moleculares que podem levar ao desenvolvimento de fármacos para doenças inflamatórias, utilizando a biodiversidade como principal ferramenta. O projeto faz parte de uma parceria público-privada entre o Butantan, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a farmacêutica britânica GlaxoSmithKline (GSK).
Aproveitando a expertise centenária do Butantan em venenos, o CENTD atua sob uma ótica inovadora: em vez de estudar o envenenamento, os cientistas analisam os potenciais benefícios das toxinas – como atividade anti-inflamatória e regenerativa – em diferentes modelos celulares. A intenção não é transformar estas proteínas em medicamentos, e sim identificar e validar em quais moléculas do organismo humano elas agem para concretizar seu efeito benéfico. Ou seja: identificar os alvos moleculares envolvidos em sua atividade. A partir disso, a pesquisa do laboratório pode ser convertida em produtos para a saúde pública no futuro.
“Por exemplo, se o componente do veneno modifica a expressão de um gene X ou inibe um receptor Y da célula humana inflamada, esse conhecimento pode ser usado para desenvolver um tratamento específico para aquele alvo”, explica a coordenadora do CENTD e diretora do Centro de Desenvolvimento e Inovação (CDI) do Butantan, Ana Marisa Chudzinski-Tavassi. O objetivo da GSK, que financia o projeto junto à FAPESP, é desenvolver novas terapias contra doenças inflamatórias crônicas, principalmente artríticas, a partir dos alvos descobertos e validados.
Butantan identifica proteínas com potencial de combater doenças degenerativas em veneno de taturana
Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, coordenadora do CENTD
A primeira fase do projeto, entre 2015 e 2020, visou identificar novos marcadores terapêuticos de interesse. Para isso, foi necessário montar uma plataforma de triagem de alta performance, com equipamentos de última geração e pessoal altamente treinado, capaz de analisar, rastrear e fazer interligações entre milhões de dados. Ao longo dos cinco anos, os pesquisadores trabalharam sob um cronograma de metas com reuniões mensais para apresentar resultados.
Os esforços do CENTD resultaram em patentes depositadas no Brasil e no exterior; em diferentes ações de difusão científica, com a promoção de eventos e cursos de empreendedorismo e inovação em saúde; e na descoberta de alvos terapêuticos importantes, além da publicação de artigos em revistas internacionais – conquistas que culminaram na renovação do projeto por mais cinco anos. O sucesso do trabalho prova o valor da pesquisa básica como um instrumento de inovação e reforça a importância de parcerias entre instituições públicas e privadas no desenvolvimento de novos produtos.
O foco da segunda fase, que teve início em 2021 e vai até 2026, é a validação dos alvos moleculares já identificados e de novos alvos que forem selecionados nas próximas etapas do estudo. “Uma vez identificados os alvos, é preciso fazer uma série de testes para validar se aquele alvo realmente responde da forma como esperamos, isto é, se avalia uma resposta fenotípica. Se o alvo é um gene que tem sua expressão alterada pelo componente do veneno, por exemplo, nós podemos nocautear [deletar] o gene da célula para verificar se há, de fato, modificação da resposta, de acordo com o esperado”, aponta a cientista.
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Nascente da inovação
O CENTD é o primeiro projeto de pesquisa do Butantan que recebe aporte de uma empresa multinacional e representa mais um passo importante rumo à internacionalização da instituição. Considerado um Centro de Engenharia e Pesquisa Aplicada da FAPESP, ele foi contemplado em um edital feito em parceria com a GSK em 2015, que previa a investigação de alvos terapêuticos com base em moléculas naturais. A multinacional investiu mais de R$ 12 milhões na primeira fase do projeto, mesmo valor investido pela FAPESP. Para a segunda etapa, estão sendo investidos mais R$ 7,5 milhões por cada instituição. Já o Butantan, como contrapartida, fica encarregado de toda a infraestrutura e recursos humanos.
“Houve uma concorrência importante para este edital e o projeto do Butantan foi selecionado. O Butantan é referência mundial em estudo de venenos, além de ter um histórico de parceria com farmacêuticas nacionais e internacionais. Nós já trabalhávamos com Boas Práticas de Laboratório e estávamos preparados para atuar em projetos de inovação”, destaca Ana Marisa.
Segundo a coordenadora, o divisor de águas para o Butantan em termos de parcerias com empresas privadas em projetos de pesquisa foi a criação do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT/CEPID) em 2000, também vinculado à FAPESP, que mais tarde embasou a criação do Centro de Toxinas, Resposta-imune e Sinalização Celular (CeTICS) e do próprio CENTD. “No CAT, foi a primeira vez que os nossos projetos tiveram interação com a indústria nacional, o que abriu muitos caminhos nos anos seguintes.”
Guiado pela inovação, o CENTD utilizou o conhecimento em venenos de animais para descobrir e validar alvos moleculares envolvidos em doenças inflamatórias. Hoje, com a evolução da plataforma tecnológica, os cientistas também atuam no desenho de novas moléculas capazes de se ligar aos alvos validados, possibilitando o real desenvolvimento de novos medicamentos. O trabalho é resultado do esforço de mais de 30 colaboradores. Entre as pesquisadoras principais, estão Denise Tambourgi, Olga Ibañez e Vanessa Zambelli.
Multipropósito
Com plataformas de bioinformática e imagem, análises ômicas e validação de alvos moleculares, o CENTD tem capacidade de concentrar uma grande diversidade de projetos. Durante a pandemia de Covid-19, por exemplo, a equipe contribuiu com pesquisas de caracterização do SARS-CoV-2 e de respostas celulares, além de ter conduzido uma análise proteômica em diferentes células infectadas pelo vírus, o que ajudou a detectar marcadores associados à infecção e à gravidade da doença.
Outro pilar do projeto é a divulgação científica para o público geral, com a organização de exposições e atividades dentro e fora do Butantan e publicação de conteúdo científico nas mídias sociais. A ação Microscópio na Rua, por exemplo, promovida em julho de 2018 na estação Morumbi do metrô, permitiu que as pessoas observassem amostras em microscópios e conhecessem o trabalho desenvolvido pelo centro. Já nas férias de janeiro e julho, famílias que visitam o Parque da Ciência Butantan podem “brincar de cientistas” por um dia, com a atividade Desvendando a Ciência.
“Recentemente, também recebemos estudantes do Ensino Médio por meio do programa Cientista Mirim. Os jovens tiveram a oportunidade de vivenciar o desenvolvimento de um projeto científico na área da saúde”, conta Ana Marisa.
A estrutura diversificada do CENTD permite que pesquisadores e estudantes trabalhem de forma dinâmica e colaborativa, promovendo avanços não só na pesquisa, mas também no ensino e na propagação da ciência. “O CENTD é como um hub de inovação: uma plataforma especializada que pode integrar pesquisas sobre temas diversos, como doenças, vírus, toxinas, vacinas. Nós temos a tecnologia para montar qualquer modelo celular, para analisar diferentes doenças. É um projeto que agrega. Isso é inovação”, resume Ana Marisa.
Reportagem: Aline Tavares
Fotos: José Felipe Batista e André Ricoy/Comunicação Butantan