Caminhando. Foi dessa forma que o personagem Zé Gotinha, símbolo da vacinação no Brasil, foi apresentado à população pela primeira vez. Em uma sequência de cinco imagens, o simpático personagem aparece percorrendo os anos de 1986 a 1990, representando o cronograma firmado com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) para a erradicação da poliomielite nas Américas. Naquele período, a doença, que ataca o sistema nervoso e é provocada pelo poliovírus selvagem, representava uma enorme ameaça à infância e já havia privado milhares de crianças de se movimentarem livremente.
“Quisemos transmitir a ideia de se preservar, a qualquer custo, um direito que é inato a todos os pequenos: o de andar”, lembra Darlan Rosa, criador do mascote que ajudou a salvar milhões de vidas nos últimos 37 anos. A escolha do artista plástico pelo Ministério da Saúde não foi aleatória: além de se destacar na elaboração de rótulos na antiga Central de Medicamentos, Darlan entendia muito bem o universo infantil, pois havia apresentado durante quatro anos um programa chamado Carrossel na TV local.
“Fiquei muito famoso entre as crianças, eu era o ‘Xuxo de Brasília’”, diverte-se.
Construção de um símbolo
Para ajudar no processo de criação, o artista foi enviado à Paraíba: o objetivo era entender as dinâmicas e necessidades envolvidas em uma campanha de vacinação contra a poliomielite. Ao ver pais e crianças receosos, Darlan logo compreendeu que para a ação ter sucesso seria imprescindível criar um diálogo efetivo com ambos os públicos. Também era importante bolar algo fácil de ser reproduzido, de preferência sem mãos nem pés. Afinal, boa parte dos materiais de comunicação eram feitos pelos próprios profissionais de saúde.
Série sobre locomoção do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge inspirou o desenho de Zé Gotinha
Mantendo em mente que ser criança é estar em constante movimento, o artista iniciou um estudo de referências. “Acabei me deparando com uma série sobre locomoção, desenvolvida pelo fotógrafo inglês Eadweard Muybridge [pioneiro da fotografia, que atuou em meados do século XIX]. As imagens mostravam em sequência o caminhar de uma menina e ganhavam um efeito maravilhoso de movimento.”
Uma das primeiras ideias para campanha de vacinação desenhadas por Darlan Rosa
Na primeira versão, desenhado com giz crayon, o logo apresentava o desenho de uma menina caminhando sobre os anos que levariam à erradicação da pólio, mas conforme a ideia ganhou corpo, a criança foi transformada em um boneco com formas inspiradas nas gotinhas da versão oral da vacina.
O artista então refinou a ideia do que se transformaria o símbolo da vacinação no Brasil
Apesar de ter sido validado pelo Ministério da Saúde, o personagem não foi unanimidade. Segundo Darlan Rosa, muitas pessoas não aceitavam a ideia de comunicar ciência utilizando elementos fantasiosos. Porém, o artista contou com o apoio de um importante grupo formado por epidemiologistas, educadores e comunicadores sociais que, juntos, vislumbraram naquele simpático boneco a oportunidade de estruturar um programa educativo de longo prazo, alinhado à ideia de valorização da vacinação de rotina preconizada pelo próprio Programa Nacional de Imunizações (PNI).
“Conseguimos estruturar uma ampla ação de divulgação e a cada final de semana eu ia para uma capital brasileira realizar oficinas de desenho”, recorda Darlan Rosa.
O objetivo da iniciativa era ensinar a população a reproduzir o mascote, contribuindo assim com a divulgação das campanhas de imunização. “A toda hora chegavam kombis lotadas de diferentes partes das capitais. Foi algo surpreendente”, conta o artista plástico.
Assim nascia o Zé Gotinha pelas mãos do artista Darlan Rosa
Celebridade nacional
A receptividade foi tamanha que o Ministério da Saúde decidiu investir em uma série de filmes para televisão. Em um dos primeiros, o personagem aparece chorando, triste e encolhido, porque ainda não tinha um nome – ele era chamado informalmente de “Vax”. Então, uma Fada Madrinha aparece, convocando crianças entre 3 e 12 anos a participarem do concurso Nome do Bonequinho. Milhares de respostas foram enviadas por correio, sendo Zé Gotinha uma das mais recorrentes e a eleita grande campeã.
Já no curta-metragem Zé Gotinha contra o Perna de Pau, o paladino das vacinas defende o organismo de Pedrinho, um bebê que dorme inocentemente após ter sido imunizado contra o vírus da pólio em uma das Campanhas Nacionais de Vacinação, de uma invasão orquestrada pelo monstro da paralisia infantil. Em outros vídeos, o personagem combate diferentes vilões causadores de doenças, como a difteria, a coqueluche, o tétano, o sarampo e a tuberculose, reforçando a importância das vacinas que devem ser aplicadas ainda no primeiro ano de vida da criança.
Para além das telas, Zé Gotinha estampou inúmeros materiais, como histórias em quadrinhos, jogos de tabuleiros, panfletos e os clássicos cartazes de divulgação dos Dias Nacionais de Imunização. Em muitos deles, o personagem aparecia ao lado de grandes estrelas da época, como a apresentadora infantil Xuxa Meneghel e a cantora Virginie, vocalista da banda Metrô.
Zé Gotinha se tornou personagem principal das campanhas de vacinação brasileiras
Também foi no final da década de 1980 que surgiu a ideia de levar o Zé Gotinha “pessoalmente” aos postos de vacinação.
“A sugestão veio de uma vacinadora do Paraná. Ele chegou de avião na véspera da vacinação e desfilou no carro de bombeiros. Foi uma comoção, a cidade parou para vê-lo”, conta Darlan.
Uma das aparições mais marcantes do personagem ocorreu em 14 de outubro de 1994, quando participou da cerimônia de celebração à erradicação do vírus da poliomielite no Brasil e recebeu com orgulho a certificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), ao lado do então presidente Itamar Franco.
Crianças se juntam para tirar uma foto com Zé Gotinha
Naquele mesmo ano, em comemoração ao Ano Internacional da Família, o público foi apresentado a outros representantes do círculo familiar do personagem, entre eles Maria Gotinha. A campanha mostrou toda a gravidez da personagem, que deu à luz Juquinha – irmão de Zé Gotinha –, reforçando a importância do pré-natal, assim como as vantagens do parto normal e do aleitamento materno.
Impactos
De um simples logo para os ofícios de uma ação específica, a símbolo brasileiro da cultura de imunização. Desde a sua criação, em 1986, Zé Gotinha assumiu papel-chave no chamamento da população brasileira para o compromisso com a vacinação.
Combinado a outras estratégias de sucesso adotadas pelo PNI, o personagem contribuiu para o aumento das coberturas vacinais, que atingiram seu ápice entre os anos de 2000 e 2015, assim como o consequente controle de diversas doenças imunopreveníveis, como o sarampo, a coqueluche, a poliomielite e a difteria.
Não à toa, os chamados Dias D de Vacinação ocupam até hoje um lugar especial na memória afetiva das crianças que cresceram entre as décadas de 1990 e 2000. Naquele tempo, ir ao posto de saúde atualizar a caderneta de vacinação era um momento festivo, que podia ser coroado com um abraço carinhoso do boneco querido após a tão aguardada picadinha.
Zé Gotinha voltou a aparecer em locais públicos
Mirando justamente nessa geração – hoje, pais e mães – o Ministério da Saúde tem apostado na reabilitação do personagem. Em campanha recente, ele aparece ao lado de Xuxa para promover o Movimento Nacional pela Vacinação. De olho nos mais jovens, em agosto deste ano o ícone também chegou às redes sociais, com perfil no TikTok e no Instagram. Como influenciador digital, Zé Gotinha segue encabeçando a batalha pela retomada das altas coberturas vacinais e impedindo o retorno da própria poliomielite, doença que ajudou a eliminar há quase três décadas.
Vacina em gotinha será aposentada
A partir de 2024, o Ministério da Saúde vai substituir a Vacina Oral Poliomielite (VOP) – ou em gotinhas, como ficou popularmente conhecida – pela versão injetável inativada (VIP). A transição acontecerá progressivamente, a fim de assegurar uma maior eficácia do esquema vacinal.
Atualmente, as crianças recebem três doses injetáveis do imunizante – aos 2, 4 e 6 meses de vida –, e duas doses de reforço da vacina oral – aos 15 meses e aos 4 anos de idade. Com a atualização, a versão injetável também será adotada aos 15 meses. Já a última dose de reforço, aplicada aos 4 anos, deixará de ser necessária, uma vez que o esquema vacinal com quatro doses da vacina inativada vai oferecer uma proteção completa contra o vírus da poliomielite.
Apesar de ter sido criado anos atrás, o personagem ainda chama atenção de crianças pelo Brasil
Referências:
CADERNOS DE SAÚDE PÚBLICA. 46 anos do Programa Nacional de Imunizações: uma história repleta de conquistas e desafios a serem superados
MINISTÉRIO DA SAÚDE. A Marca de Um Compromisso
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Articulação de Linguagens nos Modelos de Comunicação para a Saúde Pública: O Personagem Zé Gotinha e o Cinema de Animação
Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos de acervo