Reportagem: Beatriz Milanez
Fotos: José Felipe Batista e arquivo pessoal
É inevitável: conversar com a assistente administrativa Fran pelos corredores do Butantan é sinônimo de ter a conversa pausada incontáveis vezes – todos que passam a cumprimentam. O jeito sociável e sorridente lhe rendeu o apelido de “vereadora” e o cargo na Recepção, posição que ocupou por seis anos.
Francisca Edinalva da Silva de Paula, ou Fran, nasceu em 30 de agosto de 1979, em Santa Cruz do Piauí, cidadezinha no interior do estado nordestino. Quando tinha 8 meses de vida, época em que os bebês começam a tentar dar os primeiros passos, sua mãe percebeu que ela não conseguia se equilibrar. Além disso, o pezinho esquerdo entortava gradativamente, enquanto a perninha do mesmo lado já mostrava sinais de estar afinando. Junto do desequilíbrio cada vez mais frequente, vieram uma febre muito alta e vômitos. A família ainda não sabia e não teria a confirmação do diagnóstico por alguns anos, mas Fran havia pegado poliomielite.
O pai, numa tentativa de buscar ajuda para a filha, se mudou para São Paulo primeiro – a ideia era conseguir recursos financeiros para buscar o restante da família no Nordeste. Até os 4 anos, quando enfim conseguiu seguir para a capital paulista junto da mãe e dos irmãos, Francisca não conseguiu se sustentar em pé: seus dedinhos eram todos atrofiados.
Quando a família finalmente teve condições de ir em busca de tratamento médico, já morando em São Caetano do Sul, a notícia caiu como uma bomba: a paralisia do lado esquerdo era sequela da infecção adquirida ainda bebê pelo poliovírus. Filha mais velha de sete irmãos, em um local com escasso acesso à saúde, ela foi a única a não ser vacinada contra a poliomielite. Se hoje a doença é considerada erradicada no Brasil graças à vacina, na época era comum encontrar pessoas com sequelas. Tanto que, nas primeiras consultas, a pequena Fran se deparou com um médico que também havia sido vítima da paralisia infantil.
“Eu me lembro que ele tinha uma deformidade grave. Ele disse que ia fazer de tudo pra que eu não me limitasse”, recorda.
Francisca começou o tratamento aos 7 anos. Foram diversas cirurgias para correção do pé e dos dedos esquerdos – a última, quando tinha 13 anos. Ela chegou a passar pela Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) e utilizar a botinha ortopédica. Há quase 40 anos, o calçado era bem mais pesado do que as versões atuais e um estigma para quem o usava. Além disso, as constantes idas ao médico, intervenções e dias de repouso impactaram a educação da pequena, que precisava faltar aulas com frequência.
“Cresci vendo a minha mãe fazer campanha para as pessoas se vacinarem. Ela contava que no Piauí só tinha como ir para outra cidade se fosse de carroça, por isso eles não conseguiram me vacinar. Como eu e meus irmãos temos uma diferença de três, quatro anos, eles conseguiram mais recursos do que eu.”
Era a mãe, dona Joana, quem carregava a menina no colo até a escola todos os dias – afinal, nenhum dos sete filhos poderia ficar sem estudar. E foi na escola que as primeiras questões com a paralisia começaram a aparecer: num espaço com muitos andares e degraus, sem acessibilidade e sem apoio, Fran não saía da sala para o recreio e frequentava a turma de “alunos especiais”. Para fazer passar mais rápido o tempo sozinha, ela colocava no papel o que sentia – foram muitos cadernos de poesias e histórias.
Ainda assim, ela dava um jeitinho de se incluir: toda sexta-feira, entrava escondida na fila para cantar o hino nacional, participava das aulas de vôlei numa posição estratégica, fazia natação escondido do pai, dançava e participava dos desfiles de 7 de setembro. Daquela época, Fran carrega até hoje alguns bons amigos – o grupo de São Caetano se reúne uma vez por ano para dividir histórias.
Não demorou para que a jovem tivesse que lidar, também, com as transformações da adolescência. Aos 12, Francisca fez um pedido inédito ao pai: se ele poderia comprar um sutiã. “Ele disse que não tinha necessidade, que era só colocar o cabelo para a frente.” Sem conseguir convencê-lo, ela precisou achar recursos para fazer a compra por si mesma: respondeu a um anúncio de emprego para recepcionista numa floricultura, e começou a trabalhar no dia seguinte. Com o primeiro salário, foi até uma loja e comprou o tão sonhado sutiã.
Em muitos aspectos, Fran era uma adolescente como qualquer outra. Mas havia momentos em que as dificuldades apareciam. A maior delas era na hora de comprar sapatos: pelo atrofiamento, o calçado do pé esquerdo sempre ficava sobrando. Ainda assim, Fran era a responsável pelas entregas e recebimentos na floricultura, e fazia tudo a pé. Um prelúdio do que viria a ser um local bem conhecido no futuro: o atendimento ao público.
Após dois anos e meio dividindo o tempo entre estudos e trabalho, Francisca se mudou com a família para Sapopemba, na Zona Leste de São Paulo. E, como num roteiro clássico de filme adolescente, se apaixonou: foi o vizinho do novo bairro que conquistou Fran. Aos poucos, ela foi se sentindo confortável na presença de Edson, seu primeiro e único namorado, que viria a ser seu marido até hoje. Desde aquela época – ela, aos 16, e ele, aos 18 –, os dois cresceram juntos em todos os aspectos.
A jovem Francisca já era independente para se locomover, mas tinha vergonha do próprio corpo: não usava roupa curta para não mostrar as pernas e, nos pés, estava sempre de tênis ou botinha. E se Edson não quisesse ficar com ela? Ela foi testando, cada dia um pouquinho, para entender se a deficiência ia limitar a relação. O teste funcionou e o namoro aconteceu: prestes a terminar o Ensino Médio, Fran engravidou de Gustavo, hoje com 28 anos. Para ela, o filho é a maior e melhor herança do casal, “ele é muito mais maduro que os pais quando eram jovens”, se diverte.
Durante a gravidez, os resquícios da paralisia voltaram a incomodar: a barriga pesava e o quadril doía, já que a jovem só conseguia carregar todo o peso do corpo do lado direito. A falta de um calçado adaptado para os pés inchados forçou Fran a reaprender a se locomover. Quando Gustavo nasceu, ela não deixou faltar nenhuma vacina, especialmente a gotinha da poliomielite. Apesar da limitação ao andar, a maternidade trouxe a Francisca a sensação de fortaleza.
A nova mãe fez questão de colocar Gustavo a par da deficiência. “Eu sempre torcia o pé do lado esquerdo, e ele falava, já pequenininho, que ia me segurar desse lado. Ele sempre foi o meu apoio.” E foi por causa do filho, muitos anos depois, que ela viveu um momento bastante delicado: achar um sapato à altura do casamento de Gustavo. Foram meses tentando comprar o par ideal, mas nenhum era compatível nem com o pé de Fran, nem com a festa – que aconteceria em uma chácara, com estrada de terra e desnivelamento.
Sem muitas opções, Francisca enfrentou os próprios medos e comprou um sapato de salto. Por segurança, levou a sandalinha de praxe, já adaptada, para deixar embaixo da mesa e trocar após o início da cerimônia. Mas ao entrar com Gustavo na igreja, ela não reparou no trilho de ferro junto à porta e, antes de colocar o pé direito, como era costume, colocou o esquerdo. Foi por pouco: Fran chegou a torcer o pé, mas antes que pudesse cair, o filho a segurou. A primeira coisa que disse foi um palavrão, registrado pela gravação oficial de casamento. Apesar do mico na cerimônia, ela não se deixou abalar: dançou a noite toda com a sandalinha de sempre.
Fran trabalhou em supermercado, loja de roupa, de calçados, hospital. Em quase todos os locais onde passou, teve de lidar com os olhares preconceituosos e a discriminação por conta da deficiência. Ainda assim, demorou para que se considerasse uma pessoa com deficiência (PCD). A chave virou quando trabalhava como operadora de caixa. No meio de uma discussão na fila preferencial, uma cliente afastou as compras, tirou o sapato e colocou o pé em cima do balcão – era praticamente igual ao dela, atrofiado. “Aí acendeu uma luz”, relembra.
Já se identificando como PCD, Fran chegou ao Butantan em 2019. A jornada trouxe muitas mudanças: após 15 dias de treinamento na Recepção principal, ela passou a integrar a equipe de atendimento na Casa Afrânio do Amaral – onde ficou até meados de 2024.
Nesses seis anos de Instituto, as vacinas se tornaram uma constante na vida de Francisca. Como uma sobrevivente da poliomielite, ela tem o hábito de fazer campanha de vacinação nas redes sociais para amigos, familiares, vizinhos. A ideia é passar as informações para que eles adquiram orientações corretas e verdadeiras a respeito da imunização.
Hoje, aos 46 anos, Francisca atua como assistente administrativa no departamento de Engenharia de Obras e Projetos. Quem a encontra pelos corredores, vê junto ao crachá o cordão girassol. “Eu não preciso dizer que tenho deficiência. O público do Butantan acaba nos vendo de forma inclusiva e respeitosa.”
No trabalho, a popularidade ganhou outra proporção – os colegas começaram a sugerir que ela concorresse à Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio (CIPA). Um deles apostou: se ela se candidatasse e ganhasse, ele nunca mais participaria do pleito. Francisca topou o desafio: se inscreveu e entrou de férias. Quando voltou, recebeu diversas ligações de parabéns: ela havia sido a segunda mais votada nas eleições.
“A gente tem que ser o que a gente quiser. Acima de tudo, eu sou ser humano, sou mãe, sou filha, sou irmã, sou amiga. Sou, sim, deficiente e sou brigadista. Se alguém estiver precisando de mim, vou pensar que tenho deficiência ou vou pensar em salvar?”
O último caso de poliomielite no Brasil foi registrado em 1989, num município da Paraíba. Mas as consequências, para quem teve paralisia infantil, permanecem vivas. Até hoje, Fran só consegue apoiar a lateral do pé esquerdo com as pontas dos dedos. Os sapatos são sempre feitos com palmilhas de compensação, para estabilizar e adequar a altura das pernas. A diferença nos lados do corpo, que na infância era de 1 cm, hoje é de 4,25 cm. Ao longo dos anos, algumas cirurgias precisaram ser refeitas: no útero, nos rins, na lombar, na cabeça – sem contar as dores e infecções eventuais. O segredo é nunca se abalar. “Sempre achei graça de mim mesma. Eu até derrubo a peteca, mas não deixo cair.”