Pesquisadores do Instituto Butantan voltam a colaborar com cientistas de Myanmar para produzir soros antiofídicos de qualidade no país asiático, onde a incidência de picadas de cobras é maior do que no Brasil. A iniciativa faz parte do projeto “Melhoramento de metodologias e técnicas de produção de soro antiofídico em Myanmar – fase II: qualidade do antiveneno”, realizado em cooperação entre os ministérios da Saúde e da Indústria de Myanmar e o Ministério das Relações Exteriores brasileiro.
Esta é a segunda vez que o Butantan participa do projeto, após novo acordo firmado via Agência Brasileira de Cooperação (ABC), em outubro de 2022, que deve durar dois anos. Entre 2014 e 2016, o governo brasileiro solicitou ao Butantan auxiliar o governo de Myanmar na ampliação da produção do soro antiofídico no país, e na melhoria da qualidade e eficácia do produto. Para isso, pesquisadores do Butantan foram à Myanmar para capacitar técnicos locais e alguns cientistas mianmarenses vieram ao Instituto para se aprimorarem.
Pesquisadores do Butantan são recebidos pelo embaixador brasileiro em Myanmar Alcides Gastão Rostand Prates e por autoridades do Ministério da Saúde e do Ministério da Indústria do país em 2015 (foto de Rafael Marques-Porto/Butantan)
Na segunda fase do projeto, a ser iniciada em 2023, a cooperação deve focar em melhorias específicas na fábrica de produção de soros do país, levando em conta todo o know-how adquirido nas etapas anteriores, que envolveram capacitação técnica e de pesquisadores de Myanmar por cientistas do Butantan.
“Diferente da primeira fase, que foi muito importante para entender todo o contexto, agora vamos tentar aprofundar o conhecimento sobreo antígeno que eles inoculam nos animais, para, consequentemente, melhorar a qualidade do soro produzido, a partir da troca de conhecimento entre os profissionais dos dois países”, explica a diretora técnica de produção do Centro Bioindustrial do Butantan, Fan Hui Wen, que visitou o país asiático nas missões de 2015 e 2016, para averiguar os processos de produção do soro antiofídico de Myanmar.
Ofidismo x capacidade técnica
Nomeado oficialmente República da União de Myanmar, o país sofre com o alto número de acidentes com as serpentes Naja kaouthia e víbora Daboia siamensis, e vive com a escassez de recursos científicos e tecnológicos, por ser um país pobre e com 70% do território agrícola.
Com 2,7 vezes o tamanho do Estado de São Paulo, a nação asiática registra mais de 10 mil acidentes ofídicos por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que representa uma incidência de 19 acidentes a cada 100 mil habitantes. No Brasil, onde o território é muito maior, em 2021 foram registrados 31 mil acidentes com picadas de serpentes, o que corresponde a 14 casos a cada 100 mil habitantes, segundo o Ministério da Saúde.
Acidentes com a serpente Naja kaouthia são comuns em Myanmar (foto de Rafael Marques-Porto/Butantan)
Apesar deste contexto, Myanmar possui apenas uma única fábrica de produção de soros, com capacidade insuficiente de atender a demanda, e com produto considerado pouco eficaz. A fábrica de soros de Yangon (Burma Pharmaceutical Industry - BPI, na sigla em inglês), criada em 1945, quando o país ainda era chamado Birmânia, se fechou para o ocidente após o golpe militar de 1962 e se tornou obsoleta.
Se tornando Myanmar em 1988, o país passou anos mantendo a mesma tecnologia na fábrica, mas, após 2010, começou a fazer acordos com a comunidade internacional na tentativa de melhorar os gargalos na pesquisa e na produção de seus soros antiofídicos.
“Percebemos ao visitar o hospital de Myanmar, onde os pacientes tomam os soros, que o efeito de neutralização do produto não era tão bom quanto a gente esperava. Então nos perguntamos: estavam inoculando o cavalo com veneno correto, o soro foi preparado da forma adequada? Precisávamos investigar”, lembra Fan, que também visitou a unidade de saúde local.
Hospital de Myanmar onde feridos recebem soro antiofídico (foto de Giselle Pidde/Butantan)
Análise e troca de conhecimento
Em 2014, na primeira fase do projeto de cooperação, o Butantan recebeu cientistas e técnicos do Ministério da Saúde de Myanmar nos seus laboratórios de Bioquímica e Imunoquímica em São Paulo (SP). O objetivo era que os profissionais pudessem aperfeiçoar a forma de estudar a composição e caracterização de toxinas, com os venenos (antígenos) trazidos diretamente do país.
“Existe todo um estudo de ação do veneno, de como ele funciona, qual seu mecanismo de atividade, as formas que podem interferir na imunização, isto é, se ele debilita ou se pode matar o cavalo, se pode reduzir a resposta imune por outras vias. Todo esse estudo científico antes da produção do soro e após a imunização dos animais são essenciais para obtenção de um produto de qualidade e eficaz, e é o que fazemos aqui há muitos anos”, conta Giselle Pidde, especialista do Laboratório de Imunoquímica, que participou da missão em Myanmar em 2015.
A pesquisadora Thet Thet Mar (com pipeta) e seus colegas pesquisadores de Myanmar recebem orientações da equipe do Instituto Butantan (foto de Giselle Pidde/Butantan)
Junto de Giselle e Fan, o especialista do Centro de Desenvolvimento e Inovação do Butantan Rafael Marques-Porto também foi a Myanmar, onde ministrou cursos teóricos e práticos para mais de 40 técnicos sobre composição dos venenos e como eles agem no processo de envenenamento.
Segundo o biólogo, que à época era membro do Laboratório de Bioquímica, foram observados problemas estruturais e falta de equipamentos importantes nos laboratórios do Departamento de Produção de Soros Antiofídicos do governo mianmarense, fato sabido pelos pesquisadores locais.
“O gargalo, no ponto de vista da pesquisa científica, era a falta de acesso a treinamentos práticos e teóricos e também a falta de equipamentos básicos neste tipo de pesquisa. Geralmente, no estudo dos venenos trabalhamos com sistemas de cromatografia muito sofisticados, com espectrometria de massa, que podem custar de US$ 150 mil a US$ 1 milhão cada, dependendo do tipo. Equipamentos não disponíveis por lá, o que frustrava muito os cientistas”, lembra Rafael.
A falta de acesso a técnicas mais modernas se apresentava também de outras formas. Durante a missão, os pesquisadores do Butantan observaram que os venenos eram armazenados de forma dessecada (em cristais) e não liofilizados (em pó), a maneira considerada ideal. Outro problema dos mais graves era a alta mortalidade dos cavalos envolvidos na produção de soro do país, de 40% a 60%.
“Demos consultoria, conhecemos a área industrial, a manutenção das serpentes, assim como a extração do veneno, o preparo de antígeno e a produção do soro em si para entendermos por que a mortalidade dos cavalos era alta”, explica Giselle.
Apesar das dificuldades, os pesquisadores locais absorviam o conhecimento com entusiasmo durante as mentorias, relembra Giselle. “Me lembro de como o olhar daqueles cientistas brilhava, de como desejavam profundamente obter resultados significativos na ciência para ajudar as pessoas a terem mais qualidade de vida, para evitar que morressem ou que perdessem algum membro, em decorrência do envenenamento”, ressalta.
A pesquisadora do Butantan Giselle Pidde acredita que o projeto mostrou ser capaz de mudar realidade em Myanmar (foto de Fan Hui Wen/Butantan)
Diagnóstico
Ao ser apresentado à realidade de Myanmar, o Butantan desenhou um plano de ação, apresentado ao governo brasileiro, que se dividiu em duas frentes: capacitação na pesquisa sobre venenos e melhorias na produção dos soros.
“Foi de entendimento dos governos que seria importante ampliar processos de controle e produção dos venenos e antígenos, padronizar protocolo de armazenamento, teste de caracterização dos venenos e técnicas de preparo de antígeno, além da capacitação técnico- científica, aproveitando a capacidade multidisciplinar do Butantan”, explica Fan.
No diagnóstico realizado pela equipe do Instituto Butantan, chegou-se à conclusão que a quantidade de veneno (antígeno) injetado, bem como o esquema de imunização dos cavalos, deveriam ser alterados a fim de evitar a mortandade, levando-se em consideração a maneira como os animais estavam confinados em Yangon, bem como seu pequeno porte.
Uma veterinária de Myanmar veio ao Brasil passar uma temporada junto com os técnicos da Obtenção de Plasmas Hiperimunes, na Fazenda São Joaquim, onde vivem os cavalos crioulos do Butantan, de onde levou importantes ensinamentos que puderam ser replicados na nação asiática.
“Ela viu como são os procedimentos para os cuidados com os cavalos, os intervalos entre as coletas de plasma e os ciclos de imunização, além de como preparar as doses do veneno, e como liofilizá-lo, processo que evita contaminações e faz com que o veneno não perca suas propriedades imunogênicas”, explica Fan.
A ciência salva vidas
Em 2016, último ano da primeira fase do projeto, a diretora técnica de produção do Butantan voltou a Myanmar e ficou surpresa com ao ver algumas mudanças implementadas na fábrica e nos laboratórios, a partir do diagnóstico realizado.
“Vimos mudanças significativas nos cuidados com os cavalos. A segregação mais adequada dos animais, a melhoria nos esquemas de imunização e de armazenamento do plasma, a adequação de procedimentos em uma nova planta industrial para produção do soro e a criação de um biotério para serpentes – antes, os animais ficavam em uma espécie de serpentário ao ar livre”, disse Fan.
O diretor-geral da BPI, Aung Zaw, (de branco) mostra as instalações da fábrica de soros de Myanmar para a diretora Fan Hui Wen (de vermelho) e para o pesquisador Rafael Porto (ao fundo) (foto de Giselle Pidde/Butantan)
Apesar de ainda haver muito a fazer, é consenso entre os cientistas do Butantan que a instituição, além de ensinar, aprendeu muito com o projeto.
“O Butantan ganha uma experiência muito rica no sentido técnico, de conhecer realidades de um outro país, que em condições normais não estaríamos lidando. Nos foi dada a oportunidade de conhecer e fazer estudos comparativos, o que no ponto de vista de troca de conhecimento é bastante interessante. Conhecer outros laboratórios que produzem soros em condições mais adversas também nos permite perceber nossa evolução tecnológica, sem perder a perspectiva do que ainda devemos melhorar e do que temos a contribuir com a formação técnico-científica dos menos favorecidos”, afirma Fan.
Para a diretora técnica de produção do Butantan, tamanha pluralidade foi um dos pontos-chave da missão.
“Lidar com a dimensão da diversidade política, linguística e sociocultural também foi um grande desafio, mas que ampliou sobremaneira a visão do mundo em que vivemos e de como nos posicionarmos diante de realidades díspares. Apesar das enormes diferenças, todos os participantes do projeto tinham claro e uníssono o sentido do trabalho: salvar vidas e fazer parte de um grande esforço mundial para diminuir a morbimortalidade do ofidismo, sobretudo nas populações vulneráveis”, descreve Fan.
Para Giselle, a participação no projeto mostrou mais uma vez que a ciência pode mudar realidades. “Foi uma experiência pessoal grandiosa como cientista e como pessoa, por saber que fizemos diferença para outros profissionais que também têm esse interesse acadêmico científico, em aprender e se autodesenvolver pensando nessa transposição para a sociedade.”
Para Rafael, a experiência o remeteu à sua maior aspiração na carreira científica, desde os tempos de faculdade: melhorar a qualidade de vida das pessoas. “Às vezes tenho a impressão que estou fazendo algo tão técnico, que me questiono se estou ajudando. E essa foi realmente uma oportunidade de a gente ver que a ciência ajuda, que o conhecimento gera bem-estar, que vai gerar algo prático na vida das pessoas. Dá orgulho estar em uma instituição que produz e dissemina o conhecimento dessa forma.”
Rafael Marques-Porto ministra curso para técnicos do Ministério da Saúde de Myanmar (foto de Giselle Pidde/Butantan)
Reportagem: Camila Neumam
Fotos: Acervo pessoal Giselle Pidde/ Fan Hui Wen e Rafael Marques-Porto