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Como era a vida antes das vacinas: mil crianças paralisadas por dia e doenças com 50% de mortalidade

Infecções como difteria, varíola e polio faziam parte do dia a dia das pessoas; vacinação previne 3 a 5 milhões de mortes por ano


Publicado em: 15/09/2023

A cada dia, mil novas crianças com paralisia no mundo. Esse era o retrato da poliomielite nas décadas de 1940 a 60, antes de haver uma vacina contra essa enfermidade, de acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Outras doenças como varíola, sarampo, tuberculose, difteria, tétano e rotavírus chegavam a matar mais de 50% dos infectados, e elevaram a taxa de mortalidade infantil no Brasil para 212 a cada mil crianças na década de 1940. Esse cenário só foi modificado graças à vacinação, que se consolidou no país por meio do Programa Nacional de Imunizações (PNI), referência internacional criada há 50 anos pelo governo federal. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a imunização previne de 3 a 5 milhões de mortes por ano.

No começo do século XX, entre as 10 principais causas de morte, cinco eram doenças infecciosas – elas correspondiam a 37% das mortes no município de São Paulo, sendo 31,3% de bebês menores de um ano. Em 2000, somente a pneumonia se manteve naquela lista, e a taxa de óbitos em menores de um ano caiu para 4,8%. A proporção geral de mortes por doenças infecciosas teve uma queda expressiva de 78,8% entre 1901 e 2000.

Hoje, com o controle e a erradicação de tantas doenças, quem não viveu a era pré-vacina pode ter dificuldade de compreender os impactos que essas infecções tinham no dia a dia da população. “As pessoas morriam cedo, aos 30, 40 anos, por doenças que hoje são preveníveis”, diz o médico infectologista Érique de Miranda, gestor médico do Instituto Butantan, que testemunhou mortes por tétano na década de 1990 e chegou a atender pacientes sem adequado reforço vacinal.

“Quem vê de perto os casos de tétano, nunca mais esquece. Ele provoca espasmos terríveis, que causam asfixia e podem quebrar vértebras. Tudo isso com o paciente consciente”

Campanha de vacinação em Alagoas, 1970. Pistola de pressão possibilitava imunizar mais pessoas mais rápido (Foto: Acervo Casa Oswaldo Cruz)

O infectologista afirma que, em famílias numerosas e mais vulneráveis, era comum cerca de metade falecer ainda na infância ou adolescência. Havia uma precarização da saúde devido à ausência de vacinas, à falta de saneamento básico, de unidades de terapia intensiva, ventilação mecânica e antibióticos adequados. Outro problema era a pouca conscientização sobre as doenças. “Isso levava a crenças equivocadas, como colocar moedas e pó de café no umbigo do recém-nascido para o cuidado do coto umbilical. Em vez de prevenir doenças, a prática levava à introdução da bactéria que causa o tétano neonatal, infecção que era chamada de ‘mal de sete dias.’”

Aos 92 anos, o pesquisador Wilmar Dias da Silva, liderança científica do Butantan, conta que chegou a contrair praticamente todas as doenças que circulavam durante sua infância em Barbacena (MG). A mais marcante foi o rotavírus, um dos principais causadores de diarreia grave em crianças, que acometeu ele e seus irmãos. 

“Quando veio a febre, fiquei praticamente adormecido. Eu era levado várias vezes para uma bacia com água morna para reduzir a temperatura”, conta. Após a sua recuperação, ele lembra de ter saído na rua para brincar com os colegas e ter descoberto que a epidemia havia devastado a cidade, pois não havia vacina nem tratamento.

“Perguntei ao meu pai como estava meu irmão, e ele respondeu que estava se recuperando. Ao perguntar da minha irmã, ele disse que ela tinha ido para a casa do meu tio, mas estranhei. Depois, descobri que ela havia falecido”

 

Hospital de emergência em Tremembé (SP) durante epidemia de varíola, em outubro de 1940. (Foto: Acervo MUSPER)


A (r)evolução das vacinas

Os primeiros imunizantes a serem desenvolvidos foram contra a varíola (1796), raiva e cólera (1880) e tuberculose (1921). Antes de serem preveníveis e possuírem tratamentos adequados, essas doenças apresentavam taxas de mortalidade muito elevadas, sendo de quase 100% para raiva, 50% para tuberculose, 25% a 50% para cólera e 30% para varíola. A varíola foi a primeira doença a ser considerada erradicada no mundo pela OMS, em 1980, devido aos esforços de imunização.

A próxima vacina a se disseminar pelo mundo foi a DTP (contra difteria, tétano e coqueluche), desenvolvida nos anos 1940. Uma das principais causas de mortalidade em menores de cinco anos na época, a difteria é uma doença bacteriana caracterizada pelo aparecimento de placas na região do nariz e garganta, febre, cansaço e palidez. A bactéria também produz uma toxina que pode danificar o coração, os rins e o sistema nervoso.

O tétano é causado por uma toxina da bactéria Clostridium tetani, que entra no corpo por meio de uma ferida profunda, e provoca espasmos musculares intensos e dolorosos, irritação, dor de cabeça, rigidez no pescoço, braços ou pernas, e até insuficiência respiratória. A toxina tetânica é uma das mais letais conhecidas e é impossível tornar-se imune por meio da infecção natural. A dose de reforço a cada 10 anos é fundamental, já que a doença pode acontecer sempre que houver exposição. 

Já a coqueluche, também chamada de tosse comprida, pode gerar complicações respiratórias graves e fatais. É altamente contagiosa e transmitida em 80% dos contatos próximos.

Outro marco da imunização mundial foi a vacina tríplice viral, nos anos 1960, que protege do sarampo, caxumba e rubéola, doenças potencialmente fatais. O sarampo provoca manchas vermelhas na pele, febre e tosse, e pode causar dano cerebral e pneumonia. A caxumba causa inchaço das glândulas salivares e dor, além de poder afetar os testículos, o cérebro e o pâncreas, sendo mais grave em adultos. Já a rubéola é caracterizada por corrimento nasal, linfonodos inchados e vermelhidão da pele. Em gestantes, pode ocorrer aborto natural, ou o bebê pode ter deficiências congênitas graves.

Com a vacinação, os casos dessas doenças despencaram, conforme ilustrado no gráfico abaixo:


Número de casos de coqueluche, difteria, sarampo e rubéola no Brasil, 1980 a 2004.
Fonte: Secretaria de Vigilância em Saúde (PONTES et al., capítulo 6)

 

Paralisia infantil: o pulmão de aço e o poder da gotinha

O imunizante da poliomielite, doença que causa paralisia infantil, veio no começo dos anos 1960. Essa foi a primeira vacina de administração oral, que no Brasil inspirou a criação do famoso personagem Zé Gotinha em 1986 para compor a campanha nacional de imunização contra a pólio. Era uma forma de incentivar a vacinação das crianças, que dessa vez não precisariam tomar injeção, apenas engolir uma gotinha indolor.

Os benefícios da vacina são claros: o mundo passou de 350 mil casos de paralisia infantil em 1988 para apenas 6 casos reportados em 2021. No Brasil, até 1980, ocorriam entre 1.100 e 3.600 casos anuais de poliomielite. Com a vacinação, a transmissão interna do vírus foi eliminada do país em 1989. 

Campanha de vacinação com Zé Gotinha em Espírito Santo do Pinhal (SP), 1992 (Foto: Acervo MUSPER)

 

A doença afeta principalmente os menores de cinco anos e tem como maior impacto a paralisia, em geral dos membros inferiores. Esse problema acontece em uma a cada 200 infecções, e 5% a 10% dos afetados morrem por paralisia dos músculos respiratórios. Crianças e adultos podem contrair o vírus por meio do contato direto com fezes ou secreções eliminadas pela boca de pessoas infectadas.

O pesquisador do Butantan Osvaldo Augusto Brazil Esteves Sant'Anna, de 72 anos, lembra bem de seu amigo de escola Orestes. Ele tinha paralisia devido à poliomielite e precisava usar muletas e um aparelho ortopédico de ferro nas pernas para conseguir andar – o que deixava as outras crianças “impressionadas”.

“Ele gostava muito de futebol, mas não podia jogar bola. Então eu o convidava para minha casa e nós jogávamos futebol de botão juntos”

Crianças com sequelas da poliomielite em reabilitação, usando aparelho ortopédico (Foto: Centers for Disease Control and Prevention)


As sequelas da poliomielite podem incluir, ainda, problemas e dores nas articulações, pé torto (a pessoa não consegue andar porque o calcanhar não encosta no chão), crescimento diferente das pernas, osteoporose, dificuldade de falar, atrofia muscular e hipersensibilidade ao toque.

As crianças que ficavam com insuficiência respiratória precisavam viver dentro de um equipamento popularmente conhecido como pulmão de aço, um ventilador de pressão negativa que possibilitava a respiração. Recentemente, um norte-americano entrou para o Guinness World Records por viver com auxílio de um pulmão de aço há 70 anos. Ele passou dois anos dentro da máquina, até que, com ajuda de fisioterapia, conseguiu dominar a técnica de respiração glossofaríngea (usar a glote para impulsionar o ar para os pulmões). Com isso, consegue passar o dia fora do equipamento e só precisa dele para dormir.

Vale ressaltar que, de acordo com a OMS, enquanto houver uma criança infectada, populações infantis de todos os países ainda correm o risco de contrair a poliomielite. Se a doença não for erradicada, podem ocorrer até 200 mil novos casos no mundo, a cada ano, dentro do período de uma década. Países como Nigéria, Paquistão e Afeganistão ainda têm circulação endêmica do poliovírus.


Equipamento conhecido como pulmão de aço ajudava crianças com paralisia a respirar (Foto: OMS/Paul Palmer, 1956)

 

Vacinar para continuar salvando vidas

De acordo com um estudo publicado na The Lancet, de 2000 a 2019 as vacinações em países de baixa e média renda evitaram 37 milhões de mortes e esse número deve aumentar para 69 milhões até 2030. Sem imunizantes, a mortalidade nesses países seria 45% maior.

Regiões mais pobres sofrem com a falta de acesso à vacinação: segundo a OMS, 20 milhões de crianças perderam vacinas em 2018. Quase metade dessas crianças está em apenas 16 países – Afeganistão, República Centro-Africana, Chade, República Democrática do Congo, Etiópia, Haiti, Iraque, Mali, Níger, Nigéria, Paquistão, Somália, Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iêmen.

Em realidade oposta, o Brasil é um dos países que oferece o maior número de vacinas de forma gratuita: são 17 imunizantes, que protegem contra poliomielite, tuberculose, hepatite B, rotavírus, difteria, tétano, coqueluche, pneumonia, meningite, febre amarela, sarampo, caxumba, rubéola, varicela, hepatite A, HPV e influenza.

Segundo a OMS, as vacinas evitam de 3 a 5 milhões de mortes por ano no mundo. (Foto: Comunicação Butantan)



Os gastos do PNI com a compra de imunobiológicos cresceram 44 vezes, passando de R$ 94,5 milhões em 1995 para R$ 4,7 bilhões em 2019, de acordo com estudo publicado na revista Cadernos de Saúde Pública. Desde 2014, a alocação desses recursos é garantida e obrigatória pela Lei nº 13.707, não sendo permitido o contingenciamento desses gastos.

Mas o programa ainda enfrenta um grande desafio: a erradicação da poliomielite e o controle das demais doenças estão sob ameaça devido à queda das coberturas vacinais nos últimos anos no Brasil. As taxas saíram da faixa dos 90% e estão atingindo 50% a 60%, valores insuficientes para uma proteção coletiva eficaz.

A exemplo das consequências da baixa cobertura, o médico infectologista Érique de Miranda conta que um dos casos mais graves de meningite que atendeu foi de um jovem de 19 anos que não tinha se vacinado. Ele sobreviveu, mas teve insuficiência renal, precisou fazer diálise e chegou a perder os dedos dos pés.

“A partir do momento que as doenças não são mais vistas, muitas pessoas acreditam que a vacina não é mais necessária. Mas ela é importante justamente para mantermos essas infecções controladas.”



Reportagem: Aline Tavares

Fotos: Acervo MUSPER, Organização Mundial da Saúde, CDC, Casa Oswaldo Cruz e Comunicação Butantan

Arte gráfico: Daniel das Neves/Comunicação Butantan