A terapia com células CAR-T, tratamento inovador que combate cânceres de sangue e poderá ser ampliado para outros tipos de câncer, está ganhando mais espaço no Brasil graças ao trabalho de cientistas do Instituto Butantan, do Hemocentro de Ribeirão Preto e da Universidade de São Paulo (USP), que inauguraram no ano passado duas unidades de produção: Nutera-São Paulo e Nutera-Ribeirão Preto. O objetivo é ampliar o acesso ao tratamento e disponibilizá-lo no Sistema Único de Saúde (SUS).
A tecnologia usa as células de defesa do próprio paciente para combater o câncer. Nos últimos anos, a CAR-T vem sendo testada em pequena escala pelo Centro de Terapia Celular do Hemocentro (CTC-USP) em pessoas que tinham esgotado as opções de tratamento. Os pacientes tiveram boa resposta e alcançaram remissão. A construção dos novos centros amplia a capacidade de atendimento e coloca o Brasil no mapa mundial das terapias avançadas.
É nesse cenário de inovação e pesquisa de ponta que mulheres brasileiras contribuem, de forma essencial, para produzir conhecimento e para salvar vidas – e preenchem um ambiente acadêmico ainda desigual e majoritariamente ocupado por homens. Conheça oito profissionais que atuam, do início ao fim, nas diversas etapas que movimentam o projeto da terapia CAR-T.
Separação das células T
Patrícia Vianna Bonini Palma
“Uma das coisas mais importantes é saber que o paciente está feliz, está recuperado. É muito satisfatório fazer parte disso e saber que o tratamento deu certo.”
A bióloga Patrícia, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, atua como pesquisadora do Hemocentro de Ribeirão Preto há mais de 30 anos e é responsável pelo Laboratório de Citometria de Fluxo. Os citômetros são equipamentos que ajudam a separar e identificar as células de interesse (no caso, os linfócitos T, que serão transformados em CAR-T) de uma amostra que possui vários tipos celulares. Trata-se de um procedimento essencial na produção da terapia.
O Hemocentro foi uma das primeiras instituições da USP a trabalhar com separação celular e imunofenotipagem celular, tendo adquirido seu primeiro citômetro em 1995. Patrícia acompanhou esse processo desde o início e fez cursos no exterior, oferecidos pelo Hemocentro, para aprender a operar os equipamentos. “Eu cresci junto com a citometria – é a minha paixão. Na época, quase ninguém trabalhava com isso. Eu devo ser uma das pessoas mais velhas que trabalha com citometria hoje.”
A cientista acredita que as novas unidades de produção da terapia CAR-T irão contribuir para o avanço da tecnologia e para o benefício dos pacientes com câncer, além de colocar o Brasil em pé de igualdade com países desenvolvidos. “É uma grande satisfação poder participar de uma pesquisa de ponta no Brasil, com as mesmas tecnologias usadas nos Estados Unidos e na Europa.”
Produção de vetores virais
Virgínia Picanço e Castro
“Fico muito feliz de poder devolver para a população um pouquinho do que a gente aprendeu, do que temos desenvolvido durante todos esses anos. E torço para que cada vez mais pacientes consigam receber essa terapia.”
Virgínia é bióloga e pós-doutora em Ciências Aplicadas à Área Médica pela FMRP-USP. Trabalha na produção dos vetores de lentivírus utilizados para produzir as células CAR-T. É uma etapa primordial da terapia: os linfócitos T (células de defesa) do indivíduo são colocados em contato com esse vetor, que carrega a informação genética que permitirá que o linfócito reconheça e combata o câncer.
“Eu trabalho com o design de moléculas pré-CAR e com a produção dos vírus. E a produção do vírus não é tão simples: é preciso ter um vírus de qualidade e em quantidade para que possa ser utilizado em células humanas. Hoje trabalhamos com escala pequena, mas agora, com os novos centros, poderemos expandir”, afirma.
Virgínia ressalta que esse é apenas o começo e que ainda há muito a ser feito e explorado com as terapias avançadas. “A CAR-T é uma terapia que vem mostrando excelentes resultados e tem tudo para crescer nos próximos anos. Eu acredito que em breve vamos poder atender um número maior de pessoas e tipos diferentes de câncer.”
Transformação da célula T em CAR-T
Maristela Delgado Orellana
“É um privilégio fazer parte desse tipo de pesquisa, porque nós vemos que os pacientes depositam muita esperança em nós e o quanto eles são gratos. É um prazer participar desse momento da vida deles.”
Com mais de 25 anos de dedicação ao Hemocentro, Maristela coordena o laboratório de produção das células CAR-T. Ela se formou em Ciências Biológicas em 1987 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, é mestre em Imunologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutora em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).
Para ela, atuar na área de terapia celular é fazer parte da evolução da ciência. “Começamos trabalhando na pesquisa básica, somente com células, depois com modelos animais. Então entramos para a área de transplante de medula óssea, que é um tipo clássico de terapia celular. E agora trabalhamos com terapia celular avançada, modificando geneticamente as células de defesa. É incrível ver o quanto a ciência evoluiu”, diz.
Ela destaca que os novos centros no estado de São Paulo abrirão oportunidades para pacientes com câncer que não tem possibilidade de fazer o tratamento no exterior – a terapia com células CAR-T ainda não está disponível em escala na América do Sul. “Hoje tratamos uma doença específica, o câncer de sangue, cujas células expressam o marcador CD-19. Mas futuramente poderemos tratar outros tipos de tumores.”
Amanda Mizukami
“Faço parte do grupo de diversas mulheres que trabalham nesse projeto e tenho certeza que a contribuição de cada uma fez com que ele prosperasse e obtivéssemos tamanho sucesso.”
Tecnologista de laboratório do Instituto Butantan, Amanda atua no Hemocentro e irá trabalhar na produção das células CAR-T no Nutera de Ribeirão Preto. Graduada em Química, ela é doutora em Oncologia Clínica e pós-doutora em Clínica Médica. Trabalha na área de terapia celular desde 2009, com expansão de células mesenquimais para uso terapêutico.
No doutorado, Amanda passou pelo Instituto de Bioengenharia e Biociências da Universidade de Lisboa, em Portugal, onde percebeu a sua paixão pela pesquisa científica. Depois, no pós-doutorado, atuou no Seattle Children Research Institute, da Universidade de Washington, Estados Unidos, onde aprendeu sobre processamento celular e realizou treinamentos nos equipamentos que posteriormente seriam adquiridos no Brasil. Todo esse conhecimento foi essencial para ela chegar onde está hoje.
“O projeto da CAR-T foi importante para que pudéssemos ‘ganhar māo’ nos processos, protocolos, ensaios. Continuamos com os projetos de inovação e parcerias que vão nos permitir ampliar o escopo de tratamento de outros tipos de câncer a médio e longo prazo”, explica Amanda.
Como cientista e como mulher, fazer parte de um estudo tão inovador é gratificante – e os desafios diários se tornam pequenos perto dos frutos de seu trabalho e da paixão pelo que faz. “Infelizmente, durante nossa carreira científica, esbarramos em algumas dificuldades com relação à dupla jornada de trabalho, à maternidade, à produtividade em pesquisa e à discriminação de gênero. Porém, com o desenvolvimento do trabalho árduo e eficiente, conseguimos demostrar nosso valor através dos resultados promissores e de relevância para a sociedade como um todo.”
Virginia Wagatsuma
“Ser mulher na ciência é encarar os desafios e não desistir nunca. É contribuir, com igualdade, na construção do conhecimento. É semear a transformação, o poder de novas conquistas e o respeito.”
Biomédica e doutora em Ciências Médicas, Virginia é tecnologista de laboratório do Butantan e atuou diretamente no estabelecimento da unidade Nutera-São Paulo. Além da parte administrativa, também estará na bancada, produzindo as células CAR-T.
Durante a realização do mestrado e doutorado, Virginia trabalhou em projetos clínicos multicêntricos, e o que sempre a encantou foi a pesquisa translacional – a aplicabilidade do que se encontra na área acadêmica ao ambiente clínico.
Apesar de atuar na área de terapia celular há poucos anos, Virginia afirma que fazer parte desse projeto é um misto de orgulho, realização e esperança. “Eu espero que a tecnologia CAR-T possa trazer de volta a alegria e o sorriso aos rostos de pacientes que hoje sofrem com notícias de que o tratamento convencional não surtiu o efeito esperado ou de que não há mais alternativas.”
Atendimento ao paciente
Camila Derminio Donadel
“Participei da maioria dos tratamentos de pacientes até agora. São pessoas que, sem a terapia com células CAR-T, entrariam em cuidados paliativos. E hoje eu vejo pacientes na academia, voltando a trabalhar, fazendo faculdade – é algo que não tem preço.”
Formada em Medicina, Camila acaba de completar a sua residência pela USP na área de Hematologia e Transplante de Medula Óssea e continuará no Hemocentro atuando na parte clínica e na produção da terapia celular. A médica hematologista acompanhou de perto a evolução dos pacientes que receberam o tratamento.
Ela acredita que, a longo prazo, os tratamentos convencionais poderão ser substituídos pela CAR-T, que tem menos efeitos adversos e poderá tratar até tumores mais resistentes. Isso porque é uma terapia alvo, que vai direto às células cancerígenas.
“Por muito tempo, nós tratamos os pacientes com câncer com as mesmas terapias. Essas terapias convencionais não tem alvo específico, ou seja, não atacam só o tumor, mas atacam o cabelo, intestino e outros órgãos, causando náuseas, emagrecimento, queda dos cabelos… e a terapia com células CAR-T é livre da maioria desses efeitos colaterais.”
Marcela Ganzella Sisdelli
“A equipe de enfermagem é responsável pelo cuidado integral do paciente e está sempre ali ao lado dele. E quando ele diz que tem esperança, a gente também sente isso. É muito emocionante.”
Marcela atua como gerente de enfermagem do Hemocentro de Ribeirão Preto há 13 anos, liderando uma equipe de cerca de 60 pessoas. Formada na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da USP, e mestre e doutora pela mesma instituição, ela participa diariamente do atendimento aos pacientes hematológicos.
Segundo ela, como o hemocentro engloba assistência, ensino e pesquisa, todo dia há um novo aprendizado e uma nova oportunidade de ajudar um paciente. “Eu adoro hemoterapia e hematologia: a parte transfusional, a aférese, a doação de sangue, e agora poderemos atuar também nas terapias avançadas”, conta.
Com a CAR-T, existe uma nova forma de devolver a esperança a pacientes com câncer – e é esse propósito que a move. “É uma imensa felicidade estar fazendo parte de tudo isso. Para o paciente, saber que existe uma nova chance é muito bom. Eu estive do outro lado também, quando perdi minha mãe recentemente. E a esperança é algo que acalenta.”
Gerenciamento de projetos
Elaine Teresinha Faria de Sousa
“Ser mulher é maravilhoso e agradeço por isso. É possível ser profissional e sensível. Me sinto honrada em fazer parte dos resultados agora alcançados, após longos anos de dedicação e trabalho de toda a equipe.”
Não só dentro dos laboratórios é possível contribuir para o desenvolvimento da CAR-T. Elaine é advogada e especialista em Gestão de Hemocentros e Gestão Hospitalar. Ela atua há mais de 20 anos como gestora administrativa do Hemocentro de Ribeirão Preto, sendo responsável por gerenciar os projetos do Centro de Terapia Celular, criado em 2000.
Sua trajetória no Hemocentro teve início com um convite do então diretor da instituição, Dimas Covas, para implantar a área de gestão de projetos. Ela conta que, como tinha formação em Direito, isso facilitava a compreensão e a execução dos convênios com as instituições de fomento, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
“Eu me apaixonei pela área. Atuar nos projetos desde as primeiras discussões e acompanhar os resultados e o crescimento de toda a equipe é muito gratificante. Espero que a CAR-T seja acessível para todos os brasileiros que precisam de tratamento para o câncer e possibilite uma melhor qualidade de vida para os pacientes.”