Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Eletra de Souza; Fabiana Morezzi; Jade Lima-Santos; e Marília Ruberti/Comunicação Butantan
Um estudo coordenado pelo Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEV) em parceria com o Museu Biológico do Instituto Butantan e a Universidade de São Paulo (USP) realizou um levantamento pregresso e atual da herpetofauna que habita a área verde do Instituto. De acordo com a pesquisa, publicada na revista científica Biota Neotropica, 32 espécies foram registradas entre os anos de 1901 e 2020 – seis anfíbios e 26 répteis –, e 20 delas ainda podem ser encontradas nas matas do Butantan. O objetivo do levantamento foi compreender melhor parte da fauna silvestre da região, além de contribuir para a manutenção dos micro-hábitats existentes ali.
Localizado na zona oeste da cidade de São Paulo, o complexo do Butantan está inserido em uma área verde de 725.000 metros quadrados com enclaves de Cerrado, ambientes úmidos temporários e manchas florestais mais complexas. “Nossa intenção foi entender quais bichos foram extintos e quais estão conseguindo sobreviver nesta ilha de vegetação, que está dentro de uma zona já bastante antropizada e repleta de adversidades”, explica o pesquisador científico do LEEV e coordenador da pesquisa Otávio Augusto Marques. A identificação dos animais mais “sensíveis” pode direcionar esforços de conservação no próprio habitat das espécies.
Exemplar de Boana faber, encontrando durante os trabalhos de campo conduzidos durante a pesquisa
Herpetofauna do Butantan
A fim de sistematizar o processo, os cientistas estipularam três intervalos de tempo: de 1901 a 1950; de 1951 a 1990; e de 1991 até hoje. “Para entender a atual situação do complexo foi imprescindível voltar ao passado. Junto com a USP formamos a segunda maior área verde da cidade de São Paulo, um fragmento florestal extremamente importante para a conservação”, pontua a pesquisadora científica e diretora do Museu Biológico, Erika Hingst-Zaher, também autora do estudo.
Uma triagem inicial foi feita com base nos acervos do Laboratório de Coleções Zoológicas do Butantan e do Museu de Zoologia da USP. Depois, se deu um importante trabalho de campo para realizar o “censo atualizado” das espécies. O esforço envolveu a instalação de armadilhas de queda (pitfall traps) – grandes baldes enterrados no solo e margeados estrategicamente por uma cerca de lona que induz o animal a cair na armadilha – em quatro pontos estratégicos do Parque da Ciência, além de busca ativa na parte da manhã e à noite, sete dias por mês, ao longo de um ano inteiro.
De acordo com o estudo, os répteis e anfíbios encontrados na área verde da organização não foram frutos de um processo de colonização – ou seja, eles não vieram de outras partes do município, mas já existiam no espaço desde o momento em que o território começou a ser alterado. “Fragmentos verdes urbanos, como o nosso parque, acabam isolados de outras áreas naturais e, por consequência, de possíveis fontes de colonização. É um processo normal e esperado”, avalia Erika.
A presença de anfisbenas no território do Butantan surpreendeu os pesquisadores
Dentre as principais surpresas encontradas, destacam-se duas espécies de cobra-de-vidro (Ophiodes fragilis e Ophiodes striatus) e três de anfisbenas (Amphisbaena alba, Amphisbaena dubia e Amphisbaena mertensii). “Nem imaginava que pudéssemos ter Ophiodes no parque, mas como elas basicamente comem insetos, de fato há um ótimo cardápio aqui. Já as anfisbenas nem chegamos a considerar. Elas vivem enterradas e encontrá-las é algo bastante raro”, avalia a bióloga e primeira autora do estudo, Eletra de Souza. A investigação aconteceu durante seu projeto de aperfeiçoamento profissional no Butantan – atualmente ela é doutoranda do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), e desenvolve sua pesquisa em parceria com o LEEV.
Uma das espécies de anfisbena, a A. mertensii, e o chamado calango-liso (Notomabuya frenata) ajudaram a enriquecer os registros da fauna silvestre da cidade de São Paulo, uma vez que não haviam sido identificados no último levantamento realizado pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente do município. Também foram apontadas como inesperadas as presenças da perereca-de-inverno (Scinax hiemalis) e da perereca-leiteira (Trachycephalus mesophaeus), que geralmente vivem em fragmentos de mata robustos e bem conservados. “Além disso, ficamos bastante felizes ao identificar espécimes de sapo-cururu, sapo-martelo e rã-cachorrinho”, completa a aluna.
Alguns dos exemplares capturados durante a pesquisa de campo foram depositados nos arquivos do Laboratório de Coleções Zoológicas do Butantan para registro histórico. “Enriquecer nossos repositórios é algo importantíssimo para garantir uma melhor compreensão do passado e do presente, recriar os trajetos que nos trouxeram até aqui e o que devemos fazer para não enveredar por caminhos errados”, afirma Erika.
Para os pesquisadores, a presença da perereca-de-inverno também foi uma grata surpresa
Por mais que o estudo não tenha apontado queda expressiva em nenhum dos tipos ecológicos pesquisados, não foram registrados exemplares atuais de Anisolepis grilli e Enyalius perditus, dois tipos de lagartos previamente identificados e vistos atualmente apenas nas áreas das serras da Cantareira e do Mar. Outra ausência relevante foi a da Micrurus corallinus, a cobra-coral. “É algo bastante interessante, pois com exceção da coral-verdadeira, não perdemos nenhuma outra espécie de hábito fossorial.” De acordo com Eletra, isso pode indicar que o grupo de animais conhecido por se esconder embaixo da terra seja mais resistente às alterações provocadas pelo ser humano.
Também chamou atenção dos cientistas o fato de nenhuma espécie arborícola ter sido avistada durante o levantamento. Uma das explicações pode ser a falta de complexidade da mata e a perda de espécies de plantas epífitas (que vivem em cima de árvores e de outras plantas). No passado, o Butantan era uma fazenda com muitas áreas abertas de pasto. Hoje, mesmo os fragmentos verdes que à primeira vista parecem mais densos não possuem esses “diferentes níveis”, formados pela presença de cipós, abundância de bromélias e orquídeas, e árvores com diferentes alturas – itens essenciais para a locomoção e a captura de presas por serpentes arborícolas, por exemplo.
A doutoranda Eletra de Souza é uma das autoras do estudo
Fragmentos verdes em áreas urbanas
Com temperaturas mais elevadas quando comparadas aos domínios naturais, as cidades são laboratórios vivos para testar os impactos das mudanças climáticas na população silvestre. Identificar aquelas espécies que conseguem sobreviver ou não em ambientes mais extremos gera informações valiosas para toda a comunidade científica sobre a evolução e adaptação dos seres vivos. Segundo Eletra, essa é uma vertente ainda pouco explorada.
Espaços verdes como o do Butantan também são essenciais para melhorar os próprios efeitos da urbanização, contribuindo para a redução de poluentes, diminuindo os efeitos das chamadas ilhas de calor e funcionando como “áreas de descanso” para as espécies de aves migratórias, que utilizam os fragmentos para repousar e se alimentar antes de seguir viagem.
“Não podemos esquecer a oportunidade de lazer e reconexão com a natureza que esses ambientes proporcionam. Quando os visitantes do parque do Instituto Butantan avistam um teiú, por exemplo, eles podem se interessar mais pela natureza e pela sobrevivência dessa e de outras espécies que despertam seu encanto ou curiosidade. É algo simples, mas que aumenta a probabilidade de conservação”, finaliza a diretora do Museu Biológico.