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Ilhas da evolução: o que Galápagos e Queimada Grande têm em comum?

Ambientes insulares, como o arquipélago visitado por Charles Darwin e a casa da jararaca-ilhoa, ajudam a compreender o caminho evolutivo das espécies


Publicado em: 13/02/2023

“Costumo dizer aos meus alunos que por muito pouco a nossa jararaca-ilhoa não foi descoberta por Darwin”, brinca o pesquisador científico do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan, Otávio Marques. Endêmica – ou seja, exclusiva – da Ilha da Queimada Grande, no litoral paulista, a serpente descrita em 1921 pelo então pesquisador e futuro diretor do instituto Afrânio do Amaral poderia muito bem ter contribuído com as observações do naturalista inglês e que resultaram na criação da teoria da evolução por seleção natural, destrinchada no clássico A Origem das Espécies, de 1859. 

A bordo do veleiro HMS Beagle, Charles Darwin passou “raspando” na hoje apelidada Ilha das Cobras, ao deixar a região do Rio de Janeiro e navegar rumo ao Uruguai, em 1832. Três anos depois, a expedição atracaria no Arquipélago de Galápagos, no Equador. Entre as principais descobertas realizadas por ele na região estão as mais de dez espécies de pássaros tentilhões, que se diferenciavam principalmente por mudanças nos bicos, capazes de favorecer determinados hábitos alimentares. 

 

Vista da Ilha da Queimada Grande, localizado a cerca de 35 km do município paulista de Itanhaém

 

A jararaca-ilhoa (Bothrops insularis), endêmica da Ilha da Queimada Grande (SP), foi a primeira serpente insular a ser descrita no Brasil, em 1921. Possui hábito arborícola, alimentando-se de aves

 

Tempos depois, Darwin inferiu que todas aquelas aves partilhavam um ancestral comum que, no passado, povoou as diferentes ilhas do arquipélago. Diante das particularidades de cada ambiente, principalmente as relacionadas à oferta de alimentos, provavelmente os pássaros sofreram algum tipo de mutação vantajosa – como um bico mais adequado para se alimentar de sementes, cactos ou insetos – e acabaram naturalmente selecionadas, dando assim origem às novas espécies. Um padrão que se repete com as famosas serpentes insulares brasileiras.  

Atualmente, o país possui cinco espécies de jararacas exclusivas de ilhas: a Bothrops insularis, conhecida como jararaca-ilhoa, da Ilha da Queimada Grande (SP); a Bothrops alcatraz ou jararaca-de-alcatrazes, na Ilha dos Alcatrazes (SP); a Bothrops otavioi ou jararaca-de-vitória, na Ilha Vitória (SP); a Bothrops sazimai ou jararaca-dos-franceses, na Ilha dos Franceses (ES); e a Bothrops germanoi ou jararaca-da-moela, na Ilha da Moela (SP).

“A principal hipótese é que essas serpentes únicas tenham surgido quando exemplares da jararaca-comum (Bothrops jararaca) acabaram isoladas em ilhas da costa, por conta do fim da era glacial”, explica Otávio Marques. Na época, cerca de 11 mil anos atrás, grandes massas de gelo derreteram e cobriram de água partes de terra que, até então, se ligavam ao continente. “Como nas ilhas as condições são bem distintas, com o tempo a serpente ‘original’ passou a acumular mutações que foram benéficas ou neutras para sua sobrevivência naquele novo ambiente, resultando em novas espécies”, completa. 

 

Vista do Arquipélago de Alcatrazes, localizado a cerca de 30 km de São Sebastião (SP) (Crédito de imagem: Fausto Pires de Campos)

 

A jararaca-de-alcatrazes (Bothrops alcatraz) possui pequeno porte, não ultrapassando os 50 cm, e coloração escura

 

Por que ilhas geram novas espécies?

De acordo com informações publicadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apesar de representarem apenas 5% da massa terrestre do planeta, as ilhas abrigam cerca de 17% das espécies de aves e de plantas de todo o mundo. Por estarem isoladas geograficamente e possuírem ambientes muitos particulares, as ilhas também costumam registrar altos índices de espécies endêmicas. 

Elaborada na década de 1960 pelos ecólogos Robert MacArthur e Edward O. Wilson, a chamada teoria da biogeografia insular propõe que a diversidade de uma ilha é proporcional ao seu tamanho e grau de isolamento. “Quanto menor e mais distante do continente, menor será a população absoluta de fauna e flora do ambiente, uma vez que há menos recursos e o fluxo de espécies se torna comprometido. Por outro lado, é possível observar uma quantidade maior de endemismo”, observa Otávio. 

Um ponto em comum entre as cinco serpentes insulares brasileiras, por exemplo, é que em nenhuma das ilhas onde essas espécies foram encontradas há disponibilidade de roedores – principal presa das cobras do continente. Diante da falta, algumas serpentes acumularam mutações e passaram a se alimentar de aves, enquanto outras, de anfíbios. Na Ilha da Queimada Grande, por exemplo, predominaram aquelas com corpo mais delgado e cabeça maior, o que deve facilitar a deglutição de pássaros e até favorecer sua capacidade de movimentação entre os troncos das árvores. Além da ilhoa, também é endêmica da região a pequeníssima perereca Scinax peixotoi, encontrada no interior de algumas bromélias.

 

Vista da Ilha Vitória, localizada a cerca de 23 km da costa de São Paulo, no arquipélago de Ilha Bela (Crédito de imagem: Fausto Barbo)

 

A jararaca-de-vitória (Bothrops otavioi) possui hábito noturno e dieta baseada em anfíbios

 

A predominância de espécies animais e vegetais com características tão exclusivas acontece por meio de dois mecanismos principais: a deriva genética e a seleção natural. A primeira está relacionada à ascendência de características consideradas neutras, que não conferem vantagem nem desvantagem à sobrevivência de uma espécie. Porém, em populações restritas – como as observadas em ilhas – com o tempo podem se tornar maioria. Possivelmente é o caso da coloração amarelada da jararaca-ilhoa. Já a seleção natural refere-se a uma característica vantajosa, capaz de aumentar a possibilidade de sobrevivência de uma espécie. A conta é simples: se um indivíduo com certa particularidade tem menos chance de ser predado, logo, deixará mais descendentes e, com o tempo – sim, alguns milhares de anos –, acabará se tornando maioria.

“Esses exemplos das ilhas são muito didáticos para entendermos teorias tão importantes para o conhecimento da nossa evolução e a importância da manutenção da biodiversidade. Infelizmente, Darwin estaria extremamente desapontado ao constatar a quantidade de espécies endêmicas que se encontram ameaçadas de extinção”, aponta Otavio Marques. Atualmente, todas as cinco serpentes insulares brasileiras são classificadas como vulneráveis, em perigo ou criticamente ameaçadas. 

 

Vista da Ilha dos Franceses, situada a 4 km da costa do Espírito Santo (Crédito de imagem: João L. Gasparini)

 

Descrita em 2016, a jararaca-dos-franceses (Bothrops Sazimai) possui cauda mais longa, cabeça menor e olhos grandes quando comparada à jararaca do continente