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Dia do Saci: conheça a história não tão doce, mas cheia de travessuras da lenda do folclore brasileiro

Entusiastas da cultura popular fizeram do 31 de outubro o dia de lembrar do carismático personagem nacional em contraposição às comemorações do Halloween


Publicado em: 31/10/2023

Ele até gosta de doce, mas são as travessuras que fazem dele um dos personagens mais carismáticos do folclore brasileiro. Tanto que ganhou um dia só para ele: o 31 de outubro é Dia do Saci

A data foi escolhida para celebrar a lenda do menino levado que, com seu gorro vermelho mágico, vem da floresta para atazanar quem não cuida bem dela.

E também para contrapor o Dia das Bruxas (Halloween), uma festividade de origem celta, comum em países anglófonos, focada no uso de fantasias macabras para espantar maus espíritos e no oferecimento de doces às crianças. 

Com a popularização da festa nórdica no Brasil, entusiastas da cultura popular brasileira se perguntaram: por que não exaltamos com a mesma intensidade o nosso Saci?

O moleque travesso que brota dos bambuzais para aterrorizar animais, que faz rugir o vento em rodamoinhos, enquanto espalha pequenas maldades na calada da noite? 

O “diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe”, como detalhou o tio Barnabé no livro “O Saci”, de Monteiro Lobato?

As reflexões deram luz à ideia de festejar o Saci, personagem por vezes assustador, mas sempre travesso, além de outros personagens do folclore brasileiro, que ganharam projeção no Sítio do Picapau Amarelo, a série de livros de Monteiro Lobato que sempre fez sucesso entre as crianças.

A ideia se consolidou na fundação da Sociedade dos Observadores de Saci (SOCACI) em 2003, no município de São Luiz do Paraitinga (SP), conhecido pelas suas tradições focadas na cultura popular.

Seus membros aventaram a possibilidade da criação do Dia do Saci em contraposição ao “raloim”, como escrevem em seus manifestos. A sugestão foi encampada por vereadores locais e se espalhou pelo país.

O estado de São Paulo oficializou o Dia do Saci ainda em 2004, por meio da lei estadual nº 11.669. Um projeto de lei nacional reivindicando o Dia do Saci, de nº 2.762, chegou ao Congresso em 2003, mas acabou sendo arquivado.

Em 2013, o projeto de lei nº 2.479/2003 se vinculou ao primeiro e finalmente oficializou a data no Brasil. 

 

 

Doces travessuras

Foi a lista de travessuras do Saci que o tornou um dos personagens mais lembrados e significativos do folclore brasileiro.

Chamado de “filho das trevas” pelos personagens do Sítio, a alcunha, embora sinistra, condiz com o fato de o Saci só fazer suas travessuras na calada da noite.

“Ele azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas”, conta o tio Barnabé.

Feitiçeiro da natureza

A lenda diz ainda que o Saci conhece como ninguém as propriedades das plantas, que usa como alimento, para se proteger dos predadores e para potencializar suas magias.

De tão astuto, ele consegue afugentar, com a ajuda delas, as criaturas mais assustadoras da floresta, como a mula sem cabeça, o lobisomem e a Cuca – outros personagens do folclore popular. 

Em “O Saci”, o menino travesso salva Narizinho das garras de Cuca ao queimar com seu cachimbo uma misteriosa folha cuja fumaça adormece a vilã. Para garantir o sucesso na empreitada, ele amarra a malvada com cipós tão emaranhados que ninguém mais conseguiria soltá-la.

Para salvar Pedrinho de ser devorado por um lobisomem, o Saci libera um forte cheiro de enxofre de sua pele, despistando o odor de carne humana.

Já para se safar da mula sem cabeça, ele se esconde em minúsculos esconderijos dentro de árvores e de folhas e usa seu assovio superagudo como um sonar que alerta outras criaturas.

De tão emblemático, o Saci foi ganhando outra roupagem ao longo dos anos, como na obra “A Turma do Pererê”, do escritor Ziraldo, da década de 1960.

Na primeira história em quadrinhos do país feita sobre um personagem do folclore, o Saci surge como um irônico defensor do meio ambiente e crítico aos filmes de caubói e do Coelhinho da Páscoa, entre outras questões.

Mas de onde vem o Saci?

No livro “O Saci”, o personagem é definido como um menino muito pequeno, negro, sem qualquer pelo no corpo e com uma perna só. Ele usa um “pito aceso na boca” e uma carapuça vermelha. 

Diz a lenda que os sacis – sim, existem vários – são gerados por sete anos dentro de gomos do taquaruçu (Guadua tagoara), um bambu nativo do Brasil, já pitando seus cachimbos.

Quando desabrocham, vivem por mais 77 anos. Quando morrem, viram cogumelos venenosos, aquele fungo que cresce no tronco das árvores, conhecidos como orelha de pau.

 

Livros do escritor Monteiro Lobato sobre o Saci: o primeiro uma compilação de 1917 e o outro a 8ª edição da obra "O Saci"

Estudiosos do folclore brasileiro afirmam ainda que a lenda surgiu entre indígenas Tupi-guarani do sul do Brasil com nome original çaa cy perereg: çaa cy significa “olho mau” e pérérég significa “saltitante”.

A lenda teria também se internalizado no país entre os africanos escravizados, o que pode ter conferido a caracterização dele como um menino negro.

O gorro vermelho, que concentra os seus poderes mágicos, pode ser um sinal do “olhar” europeu sobre o personagem, pois lembra um barrete, usado no continente no século 19.

Assim como o ato de fumar um cachimbo, já que os primeiros relatos do Saci, que ficou conhecido como Saci Pererê, remontam desse período. 

Apesar de não ter as duas pernas, o Saci andava tão rápido que ele mesmo formava rodamoinhos traduzidos em ventania.

Na história contada por Monteiro Lobato, os sitiantes acreditavam ser possível capturar sacis se embrenhando na mata durante um vento forte.

Bastava levar uma peneira, deixar algum saci cair ali e aprisioná-lo dentro de uma garrafa escura, com uma rolha em cruz. Assim, o saci perderia seus poderes e não faria mais traquinagens.

A lenda do Saci não é exclusivamente brasileira. Em alguns países latino-americanos há relatos de um ser lendário chamado yacy-yateré, de cabelos louros, que fuma cachimbo e usa uma varinha mágica de ouro para se tornar invisível.

Segundo o artigo “Saci-pererê: uma alegoria mestiça do sertão”, da pesquisadora Carla Maria Anastásia, essas características ressaltam uma mistura de influências, conferidas pelo nome indígena, e pelas características físicas e dos apetrechos mais comuns nas narrativas europeias daquele tempo.

No dicionário Aurélio, encontrá-se ainda outras palavras que podem ser usadas para fazer alusão ao Saci-Pererê: saci; maty; çaci; saci; pererê; cererê; saci-saperê; saci-trique; saci-seperê; saci-taterê.

 

Referências:

LOBATO, Monteiro, O Saci, Coleção Sítio do Pica Pau Amarelo, 1921.

Sociedade dos Observadores de Saci (SOSACI)

Câmara dos Deputados

Acervo O Estado de S.Paulo

Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

“Saci-pererê: uma alegoria mestiça do sertão”

Dicionário Aurélio 

 

Reportagem: Camila Neumam

Infográfico: Daniel das Neves