*Este texto é uma colaboração da pesquisadora Maisa Splendore Della Casa para o portal do Instituto Butantan
As principais toxinas hemorrágicas do veneno de cobras peçonhentas como jararacas são as metaloproteinases – que causam extensa hemorragia no local da picada. Essas toxinas estão presentes nos venenos que são inoculados por meio de dentes (presas) que ficam na parte da frente do aparelho bucal da serpente. Mas você sabia que algumas serpentes não-peçonhentas também possuem veneno? Ele é menos potente que o das cobras peçonhentas e é inoculado pela dentição que fica na parte de trás da boca das serpentes. Mas de forma semelhante ao que acontece com as cobras peçonhentas, esse veneno também causa hemorragia e é composto por novos tipos de metaloproteinases – “novos” porque foram descritos pela primeira vez há pouco tempo.
Isso tudo fez os cientistas do Butantan se perguntarem: como serpentes peçonhentas e não-peçonhentas – que têm uma história de evolução bem diferente entre si – são capazes de apresentar toxinas semelhantes (metaloproteinases) com a função de causar hemorragia em suas presas?
Saiba mais sobre essa descoberta da ciência brasileira, coordenada pelo grupo de pesquisa liderado pelo biólogo Inácio Junqueira de Azevedo, diretor do Laboratório de Toxinologia Aplicada do Instituto Butantan.
*Esta ilustração foi desenvolvida por Juan David Serrano
Afinal, qual a diferença entre as serpentes peçonhentas e não-peçonhentas analisadas no estudo?
Os venenos de serpentes são misturas de várias toxinas que têm uma determinada ação, mas agem de forma conjunta no quadro do envenenamento. As serpentes da família Viperidae, da qual fazem parte as jararacas, são peçonhentas e têm a dentição inoculadora do veneno situada na frente no aparelho bucal. Nelas, as principais toxinas responsáveis pelo quadro de envenenamento são as proteases. As principais proteases são as metaloproteinases, que causam extensa hemorragia no local da picada ao degradar a matriz extracelular do endotélio presente nos vasos sanguíneos, destruindo o tecido. Dessa forma, as metaloproteinases são valiosas para a predação e alimentação das serpentes.
Existem poucos estudos sobre proteases nos venenos das serpentes que apresentam dentição inoculadora do veneno atrás no aparelho bucal, consideradas não-peçonhentas. Elas compreendem diversas famílias, como a Dipsadidae, e constituem a maior parte da biodiversidade de serpentes. Como usam seu veneno na predação, às vezes podem causar acidentes em humanos. De forma similar ao veneno das cobras da família Viperidae, os venenos das serpentes da família Dipsadidae apresentam efeito hemorrágico e proteolítico, com destruição de tecido.
Recentemente, foi descrito pela primeira vez que os venenos de três tribos (grupos de gêneros próximos) das serpentes chamadas não-peçonhentas possuem um novo tipo de metaloproteinases predominante. Essas substâncias, do tipo metaloproteinase de matriz, estão sendo consideradas as “novas metaloproteinases” de venenos de serpentes.
Desta importante descoberta surgiu uma questão: como as serpentes não-peçonhentas, filogeneticamente distantes das peçonhentas (ou seja, em relação à história da sua evolução), poderiam conter tanto as metaloproteinases tradicionais como as “novas metaloproteinases”, apresentando a mesma função de destruir a matriz extracelular de tecidos?
O trabalho e as descobertas do Laboratório de Toxinologia Aplicada do Butantan
Para responder essa questão, o grupo de pesquisa liderado por Inácio Junqueira de Azevedo realizou triagens moleculares em larga escala e determinou os níveis de expressão gênica de cada uma dessas proteínas em 58 espécies de serpentes de diversos grupos. Os pesquisadores descreveram que tanto as metaloproteinases tradicionais quanto as “novas metaloproteinases” são produzidas de forma alternada entre as tribos, apresentando-se com quantidades bem diferentes nos diversos venenos do grupo das serpentes não-peçonhentas.
Além disso, uma análise detalhada das sequências de aminoácidos das “novas metaloproteinases” levou os cientistas a concluírem que esse tipo de enzima, exclusivo das serpentes não-peçonhentas, segue um padrão de evolução em direção a uma estrutura mais simples, perdendo certas partes, assim como o observado para as metaloproteinases tradicionais de serpentes peçonhentas. Essa descoberta permitiu aos pesquisadores sugerirem a ocorrência de processos evolutivos semelhantes, produzindo diferentes metaloproteinases compactas responsáveis pela destruição tecidual causada pelos venenos de serpentes.
Por que pesquisar metaloproteinases
A descoberta de “novas metaloproteinases” é de extrema importância se pensarmos na eficácia do soro antiofídico: esse soro geralmente é produzido para combater o veneno das serpentes peçonhentas, que é rico em metaloproteinases tradicionais, mas não contém as “novas metaloproteinases”. Ou seja, provavelmente falharia na neutralização do veneno em um eventual acidente com serpentes não-peçonhentas das tribos ricas em “novas metaloproteinases”.
Os achados da pesquisa representam uma grande contribuição para o entendimento da base genética e dos processos de evolução de venenos à medida que demonstram uma rara evidência de como o recrutamento de novos genes, por meio da seleção natural, pode manter uma importante função biológica (característica fenotípica).
O processo evolutivo no caso das metaloproteinases de venenos resultou na presença de toxinas com estruturas e em quantidades diferentes, em serpentes filogeneticamente distantes, peçonhentas e não-peçonhentas, mas que mantêm a mesma missão, essencial para predação, alimentação e envenenamento dos animais.
Publicações sobre os estudos
“Replacement and Parallel Simplification of Nonhomologous Proteinases Maintain Venom Phenotypes in Rear-Fanged Snakes”, Molecular Biology and Evolution (2020). AUTORES: Bayona-Serrano, Juan David; Viala, Vincent Louis; Rautsaw, Rhett M; Schramer, Tristan D; Carvalho, Gesiele Almeida Barros de; Nishiyama Junior, Milton Yutaka; Freitas-de-Sousa, Luciana Aparecida; Moura-da-Silva, Ana Maria; Parkinson, Christopher L; Grazziotin, Felipe Gobbi; Junqueira-de-Azevedo, Inácio de Loiola Meirelles.
“Snake Venom Matrix Metalloproteinases (svMMPs): alternative Proteolytic Enzymes in Rear-Fanged Snake Venoms”, capítulo do livro “Handbook of Venoms and Toxins of Reptiles”, 2ª edição, Editor Stephen P. Mackessy/ISBN 9780367149741/2021 CRC Press/680 páginas.