Desde o início da pandemia de Covid-19, o Instituto Butantan dedicou esforços em todas as suas frentes para desenvolver estratégias de combate ao SARS-CoV-2 por meio da produção de vacinas, exames diagnósticos, sequenciamento genômico das variantes do vírus e pesquisa de novos tratamentos para a doença. Uma das principais iniciativas nesse contexto é a pesquisa do soro anti-SARS-CoV-2 – um produto que conta com a expertise de 120 anos do instituto na produção de soros hiperimunes (que contêm grande quantidade de anticorpos contra toxinas de venenos, de bactérias ou vírus), é fruto de um trabalho multidisciplinar, que envolve diversas áreas do Butantan, e em breve começará a ser testado em humanos.
Diferentemente da vacina, o soro anti-SARS-CoV-2 é uma forma de tratamento, não de prevenção. Portanto, seu objetivo é reduzir a gravidade dos casos de Covid-19 e evitar óbitos, principalmente em pacientes de grupos de risco. “A expectativa é que esse soro, uma vez administrado precocemente nos pacientes que podem desenvolver complicações, neutralize o vírus e reduza o risco de a pessoa apresentar sintomas graves”, aponta a gerente de produção do Núcleo de Produção de Soros do Butantan, Fan Hui Wen.
Mas qual foi o processo que levou ao desenvolvimento do soro anti-SARS-CoV-2?
Etapa 1: cultivo, purificação e inativação do vírus
Para pesquisar a produção do soro anti SARS-CoV-2, antes de tudo, uma amostra de um paciente infectado foi recolhida no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. O vírus, que necessita de uma célula para poder se espalhar e infectar, foi cultivado dentro de um laboratório. O trabalho contou com a contribuição de pesquisadores do Centro de Desenvolvimento e Inovação e do Centro Bioindustrial do Butantan. “A gente cultivou o vírus, utilizando técnicas que já temos estabelecidas, purificou e inativou o vírus para depois conseguir o plasma e produzir o soro”, resume o diretor de produção do Butantan, Ricardo Oliveira.
O agente patológico foi multiplicado para preservar o material genético – se fosse usado apenas um vírus em várias células, algum material genético poderia se perder e mudar a composição do SARS-CoV-2. Depois disso foi feita a purificação, que é realizada toda vez que se prepara um antígeno viral. “Conforme o vírus infecta a célula, ele a destrói, e a gente fica com restos de proteína que precisam ser eliminados para tirar o máximo possível de reação que pode acontecer devido à célula hospedeira onde o vírus cresceu”, explica a diretora técnica do Laboratório de Virologia do Butantan, Viviane Botosso. Na purificação é usada uma ultracentrífuga de alta velocidade, em que é possível isolar apenas o vírus, contendo o mínimo possível de contaminante da célula hospedeira.
O vírus foi então inativado por meio de radiação. Em experimentos, os cientistas descobriram que os anticorpos gerados pelo SARS-CoV-2 eram capazes de induzir uma resposta imunológica, combatendo o efeito da infecção. “Se eu tenho anticorpo neutralizante, é porque o vírus ficou neutralizado. Se ele foi neutralizado, não vai conseguir infectar a célula, então essa célula fica íntegra”, completa Viviane.
Etapa 2: a produção do soro anti-SARS-CoV-2
Há um agente muito importante na produção de qualquer soro hiperimune: o cavalo. É por meio da aplicação do antígeno nesse animal que é possível obter um soro rico em anticorpos e capaz de combater a doença. Como um dos maiores produtores de soros da América Latina, o Butantan conta com um espaço dedicado à manutenção de cavalos, a Fazenda São Joaquim, em Araçariguama, São Paulo. O local abriga cerca de 900 cavalos que atuam na produção de 13 tipos de soros, entre antiofídicos (contra veneno de cobra), antiescorpiônico (escorpião), antiaracnídico (aranhas e escorpião), antilonômico (lagarta), antidiftérico (difteria), antitetânico (tétano), antibotulínico (botulismo) e antirrábico (raiva), além de versões combinadas.
Quando os estudos em animais de laboratório se mostraram viáveis, um grupo de dez cavalos foi selecionado para auxiliar na pesquisa. “A partir do momento em que conseguimos uma quantidade suficiente de antígeno para que pudéssemos imunizar os cavalos, iniciamos o trabalho", conta Fan. O esquema de imunização seguiu um protocolo onde o vírus inativado (infeccioso, mas que não causa a doença) é inoculado nos cavalos, que respondem produzindo anticorpos. O plasma do animal, rico em anticorpos, é coletado por um sistema automatizado, e passa por várias etapas dentro da unidade industrial certificada com Boas Práticas de Fabricação. Por meio de processos físico químicos os anticorpos são separados, fragmentados (quando a molécula da imunoglobulina, que é o anticorpo, é quebrada) e purificados, para que resulte nos frascos-ampola dos soros a serem aplicados em pessoas infectadas.
O agente patogênico não provoca danos aos animais e, por ter sido neutralizado, não consegue se multiplicar no organismo deles. “A gente faz todos os testes de controle para termos certeza que esse vírus está inativo, então não tem nenhum risco para os animais, nem para os operadores ou para a população que venha a precisar desse soro”, diz Ricardo.