Reportagem: Aline Tavares
Fotos: José Felipe Batista e Andre Ricoy
Nesta quarta (20), o Instituto Butantan sediou, em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Seminário Internacional: Integração e Sustentabilidade como pilares chaves para o enfrentamento de acidentes por animais peçonhentos na América Latina e Caribe. O encontro antecedeu a 1ª edição da Reunião Regional de Programas de Acidentes por Animais Peçonhentos na América Latina e Caribe (REDPEVA), que acontece nos dias 21 e 22 de agosto no Butantan com autoridades de saúde de toda a região.
O seminário reuniu especialistas para apresentar o atual panorama dos acidentes por animais peçonhentos na América Latina e fomentar a troca de conhecimentos entre os países, trazendo subsídios que deverão pautar as discussões da reunião regional. Foram abordados os desafios da equidade de acesso aos soros, o impacto das mudanças climáticas nos acidentes e o desenvolvimento de novas tecnologias que visam aprimorar a vigilância epidemiológica e reduzir a subnotificação de casos.
Participaram do encontro representantes do Ministério da Saúde, dos Programas Nacionais de Acidentes por Animais Peçonhentos da América Latina, do Centro Pan-Americano de Febre Aftosa e Saúde Pública Veterinária (Panaftosa) da OPAS, além de pesquisadores e especialistas de diferentes países da região. Representando o Butantan, esteve presente a diretora de Produção de Soros Fan Hui Wen.
Na palestra de abertura, o pesquisador José María Gutiérrez, do Instituto Clodomiro Picado, da Costa Rica, falou sobre a necessidade de ampliar a acessibilidade dos soros, que ainda se concentram em grandes cidades, além de fortalecer a educação para prevenção de acidentes e melhorar os registros epidemiológicos. Para isso, a atuação multidisciplinar é fundamental.
“Nossa região tem uma longa tradição de produção de antivenenos, mas existem importantes diferenças de infraestrutura e capacidade nos laboratórios públicos produtores. Temos o desafio de unir produtores, ministérios, pesquisadores e profissionais de saúde para um trabalho cooperativo regional. Isso é um esforço que vem se consolidando, desde 2018, por meio da RELAPA [Rede de Laboratórios Públicos Produtores de Antivenenos da América Latina]”, afirmou José.
Atuando sob coordenação da Panaftosa, a RELAPA é composta por 13 laboratórios públicos produtores de antivenenos – entre eles o Instituto Butantan e o Instituto Clodomiro Picado – distribuídos no Brasil, Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Peru e Venezuela.
José María Gutiérrez é professor da Faculdade de Microbiologia do Instituto Clodomiro Picado, da Costa Rica
José María lembrou que a atenção global ao envenenamento por animais peçonhentos tem crescido nos últimos anos, especialmente após a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter incluído os acidentes ofídicos (com serpentes) na lista de Doenças Tropicais Negligenciadas, em 2017. Hoje, são registrados cerca de 2,7 milhões de acidentes ofídicos no mundo por ano, responsáveis por até 137 mil mortes. A meta da OMS é reduzir em 50% a mortalidade e a incapacidade causadas por picadas de serpentes até 2030.
Para o coordenador-geral de Vigilância de Zoonoses e Doenças de Transmissão Vetorial do Ministério da Saúde, Francisco Ferreira de Lima Júnior, que participou do seminário, um dos grandes obstáculos para atingir esse objetivo são as alterações ambientais e mudanças climáticas, que têm contribuído para o aumento dos envenenamentos. Anualmente, mais de 300 mil acidentes com animais peçonhentos são registrados no Brasil.
“Não podemos olhar para esse tema sem a abordagem de saúde única – humano, animal e meio ambiente. O Ministério da Saúde tem publicado novas guias de tratamento para esses acidentes, todas baseadas nas mais recentes evidências científicas e com o apoio de profissionais que atuam na ponta. Essa colaboração entre academia e profissionais de saúde é fundamental para traçarmos melhores estratégias de combate”, reforçou Francisco.
Coordenador-geral de Vigilância de Zoonoses e Doenças de Transmissão Vetorial, Francisco Ferreira, e a diretora de Produção de Soros do IB, Fan Hui Wen
Durante a mesa redonda sobre Câmbio Climático e Acidentes por Animais Peçonhentos, especialistas discutiram o cenário atual e futuro de acidentes com serpentes e escorpiões na América Latina.
O professor Carlos Yañez-Arenas, da Faculdade de Ciências da Universidade Nacional Autônoma do México, abordou o problema do sub-registro de casos de picada de serpente e da falta de dados precisos sobre onde esses acidentes acontecem. Para contribuir para uma melhor vigilância, o pesquisador tem trabalhado com sistemas de informação geográfica para entender os fatores que determinam a distribuição e a abundância das espécies de serpentes.
“As modelagens caracterizam condições ambientais que estão por trás da distribuição das espécies. Isso pode tanto ajudar a entender onde estão essas serpentes hoje e quais são as áreas de maior risco de acidente, como ajudar a prever as regiões que esses animais podem passar a ocupar futuramente, devido às mudanças climáticas”, explicou Carlos.
Já a bióloga e doutoranda em Ciências Renata de Freitas Barroso, da Universidade Estadual de Goiás, que estuda os efeitos do clima na distribuição de escorpiões, falou sobre o aumento de casos de envenenamento pelo animal no Brasil. Em 2024, dos 337 mil acidentes com animais peçonhentos registrados, quase 200 mil foram com escorpiões. Nos últimos dez anos, houve um total de 1,6 milhão de acidentes escorpiônicos e mais de mil óbitos, além de um aumento nos casos graves, que se concentram principalmente em idosos e crianças.
A bióloga Renata de Freitas Barroso investiga os efeitos do clima na distribuição de escorpiões no Brasil
Em artigo publicado na Toxicon, Renata demonstrou que as mudanças climáticas estão afetando a distribuição no Brasil de escorpiões do gênero Tityus, considerados de importância médica pelo seu potencial de provocar envenenamentos graves. Algumas espécies, como T. serrulatus (escorpião-amarelo), estão se expandindo para áreas urbanas, e a capacidade de partenogênese (quando a fêmea se reproduz sozinha) em algumas espécies impulsiona ainda mais o crescimento populacional.
“Esses dados são importantes para traçar novas estratégias de saúde pública, a fim de mitigar os riscos futuros de picadas de escorpião, e também para preparar a população para lidar com esses acidentes. Precisamos educar a sociedade sobre as medidas de prevenção e sobre a importância de procurar atendimento médico rápido em caso de acidente, para evitar sequelas como problemas renais e cardiovasculares”, apontou.
Saiba o que fazer para prevenir o aparecimento de escorpiões em casa
A diretora de Produção de Soros do Butantan, Fan Hui Wen, falou sobre o projeto de descentralização de antivenenos que vem sendo conduzido no Brasil
Na conclusão do evento, a diretora de Produção de Soros do Butantan Fan Hui Wen apresentou os esforços do Instituto, em parceria com a Fundação de Medicina Tropical de Manaus, para melhorar a distribuição de soros em áreas remotas da Amazônia. A região, que abriga 8,7% da população do Brasil, é acometida por 44% dos acidentes ofídicos registrados no país, devido à alta incidência de serpentes dos gêneros Bothrops (jararacas) e Lachesis (surucucu).
O estado do Amazonas, segundo Fan, é o que concentra as maiores distâncias entre a população e o soro, e a demora no tratamento está diretamente associada à gravidade do caso e ao risco de sequelas e morte.
Para fazer com que os antivenenos cheguem mais rápido àqueles que mais precisam, as instituições se uniram, com o apoio do Ministério da Saúde, para desenvolver o projeto SAVING – Snake Antivenom Immunoglobulins Need to be Guaranteed (“Soros antiofídicos devem ser garantidos”, em português). A iniciativa visa desenvolver requerimentos mínimos para que o soro possa ser aplicado em unidades básicas de saúde indígena, capacitar os profissionais de saúde e fornecer quantidades suficientes de soro para essas unidades.
No ano passado, os pesquisadores publicaram um checklist de tudo o que as unidades de saúde precisam ter para poder administrar o soro com segurança, em termos de equipamentos, recursos humanos e insumos. O guia foi disponibilizado aos profissionais de saúde, que também foram capacitados para aprender a identificar qual serpente foi responsável pela picada e, assim, aplicar o soro adequado.
“O projeto resultou na redução de casos graves de ofidismo. Do novembro de 2022 a julho de 2025, foram atendidos 54 casos, e a maioria recebeu o tratamento nas primeiras seis horas após a picada. Em 2024, o Ministério da Saúde assumiu a coordenação do programa para expandi-lo para outras aldeias indígenas”, destacou Fan.
Maior aldeia indígena do Brasil tem redução de casos graves de ofidismo com uso precoce de soro
Em abril de 2024, o Ministério da Saúde anunciou a modernização da distribuição de soro antiofídico para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Segundo o Ministério, distritos indígenas foram escolhidos por demonstrarem maior vulnerabilidade: a população corre quatro vezes mais risco de sofrer um acidente com animal peçonhento, com uma letalidade seis vezes maior.