Nos séculos 18 e 19, surtos de doenças como febre amarela, peste bubônica e varíola eram comuns no Brasil. Boa parte dessas enfermidades foi controlada após a criação de vacinas, mas esse processo não foi tão simples. Por questões políticas, medo e fake news (sim, elas existem desde sempre), pessoas foram às ruas protestar no que entrou para a história como a Revolta da Vacina, que aconteceu entre 10 e 16 de novembro de 1904 e resultou em 945 prisões, 110 feridos e 30 mortos.
Oswaldo Cruz
Para entendermos como tudo aconteceu, é preciso conhecer o médico sanitarista Oswaldo Cruz, um dos principais personagens desse acontecimento histórico. Após estudar microbiologia no Instituto Pasteur, na França, ele voltou ao Brasil decidido a dedicar esforços para tentar erradicar algumas das doenças que então assolavam o país. Sua jornada começou, junto aos também médicos sanitaristas Vital Brazil, Emílio Ribas e Adolpho Lutz, com o controle do surto de peste bubônica que se abatia sobre os portos de Santos e Rio de Janeiro na virada do século 19 para o 20. A principal ação foi eliminar os roedores, vetores da doença. Com isso, Oswaldo Cruz se tornou conhecido e, em 1903, assumiu o cargo de diretor geral de saúde pública do governo federal, com a missão de combater a febre amarela.
Para isso, Oswaldo viajou até Cuba, país que havia conseguido controlar a febre amarela. Lá, ele conheceu os estudos do médico e cientista cubano, Juan Carlos Finlay, que havia descoberto que a transmissão da doença acontece por meio do mosquito Aedes aegypti. De volta ao Brasil, ele determinou a limpeza de focos de pernilongos e o isolamento de pessoas doentes. A população e a imprensa da época não gostaram do método, mas o resultado apareceu: o número de casos começou a cair.
Agora faltava controlar a varíola, uma das doenças mais mortais da história.
Rio de Janeiro
Na época capital, o Rio de Janeiro era a maior cidade do Brasil, com cerca de 800 mil habitantes. Por ter apresentado um crescimento rápido e tumultuado, a questão sanitária era um problema, com rede de esgoto e água precárias e sem coleta de lixo. Doenças como varíola, cólera, tuberculose, sarampo e difteria eram comuns. Dentre elas, a varíola era uma das mais letais, pois não tinha tratamento. Ela chegou a matar cerca de 300 milhões de pessoas somente no século 20.
Em meados de 1904, um surto de varíola atingiu o Rio de Janeiro, com cerca de 1.800 pacientes internados no Hospital São Sebastião. No inverno do mesmo ano, 3.500 pessoas morreram por conta da doença. Isso levou Oswaldo Cruz, já diretor de saúde, a propor ao governo que enviasse ao Congresso um projeto para instaurar a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola em solo nacional.
Obrigatoriedade
A vacina contra varíola foi a primeira a ser desenvolvida, pelo médico britânico Edward Jenner, em 1796. No Rio de Janeiro, a vacinação contra a varíola era obrigatória para crianças desde 1837 e para adultos desde 1846, segundo o Código de Posturas do Município. No entanto, essa obrigatoriedade não era cumprida porque a produção de vacinas era baixa, tendo alcançado escala comercial apenas em 1884. Para tornar a vacinação obrigatória de fato, um novo projeto de lei foi aprovado na Câmara, sendo regulamentada em novembro do mesmo ano.
Lei
A lei nº 1.261, de 31 de outubro de 1904, dava poderes às autoridades sanitárias, como aplicar multas aos que se recusassem a tomar a vacina e exigir um atestado de vacinação para se matricular em escolas, realizar casamentos e viagens, e até para conseguir emprego.
Rejeição política
A rejeição à lei vinha principalmente dos opositores do então presidente, o paulista Francisco de Paula Rodrigues Alves. Desde 1898, o Brasil era governado por políticos de São Paulo e Minas Gerais que se alternavam no poder, em um período que ficou conhecido como República do Café com Leite.
A obrigatoriedade da vacinação foi usada pelos republicanos como pretexto contra o presidente Rodrigues Alves. Após um encontro no Centro das Classes Operárias, em 5 de novembro de 1904, liderado pelo senador republicano Lauro Sodré, foi criada a Liga Contra Vacina Obrigatória.
Argumento
Oswaldo Cruz defendia que em diversos países da Europa, a vacina havia sido aplicada e tinha salvado vidas. Os políticos, porém, se mostravam contrários e as pessoas acreditavam, por falta de informação, que a invasão às suas casas se tornaria algo corriqueiro – para vacinar as pessoas, os agentes de saúde tinham autorização para entrar nas casas. Além disso, a população não entendia a ciência por trás da vacina: por ser feita a partir do vírus causador da varíola bovina, circulavam boatos de que quem tomasse o imunizante passaria a se parecer com um boi.
Revolta
Em 10 de novembro a revolta começou, liderada pela Liga Contra Vacina Obrigatória. “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculos fechadas, bondes assaltados e bondes queimados, lampiões quebrados à pedrada, árvores derrubadas, edifícios públicos e particulares deteriorados”, noticiava a edição de 14 de novembro do jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro.
Os embates com a polícia começaram com uma reunião entre pessoas contrárias à lei, principalmente estudantes. Durante dias, mais de duas mil pessoas protestaram e combateram as forças do governo. As lojas fecharam, o transporte público estava um caos.
Além das 945 prisões, 110 pessoas feridas e 30 mortos, cerca de 461 presos foram deportados para o norte e condenados a trabalhos forçados.
Como a revolta foi controlada
Com a escalada dos confrontos, em 16 de novembro foi decretado estado de sítio (determinação que suspende temporariamente os direitos dos cidadãos). O governo conseguiu controlar a situação. O movimento foi perdendo força e se desarticulando.
No mesmo dia 16, o presidente Rodrigues Alves revogou a lei, mas manteve Oswaldo Cruz, principal alvo das manifestações, como diretor geral de saúde pública.
Vacinação voluntária após a revolta
Em 1906, dois anos após a Revolta da Vacina, o número de mortes causadas pela varíola despencou para nove casos. Mas em 1908, uma intensa epidemia da doença elevou esse número para 6.500 pessoas. Com medo da varíola, a população começou a procurar voluntariamente os postos de saúde para se vacinar, tomando como exemplo o baixo número de casos dos anos anteriores.
Atualmente, a varíola é uma doença que ficou no passado. Desde 1980 ela é considerada erradicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Fonte de imagens: Acervo Casa de Oswaldo Cruz