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Médico Emílio Ribas lutou contra a disseminação do Aedes aegypti ainda no início do século 20 e ajudou a controlar a febre amarela no Brasil

MUSPER lança inventário especial para marcar os 162 anos de nascimento do sanitarista; coleção conta com documentos e publicações originais, fotos únicas e objetos pessoais


Publicado em: 11/04/2024

Mais de um século antes do Brasil bater recordes históricos e registrar um aumento considerável de infecções por dengue – segundo dados do Ministério da Saúde, quase 3 milhões de casos prováveis foram registrados nas primeiras 12 semanas de 2024 –, o médico e sanitarista Emílio Ribas já alertava para a importância do controle da reprodução e disseminação do Aedes aegypti. “Não é fora de propósito supor que amanhã seus filhos ainda tenham que combater esse terrível pernilongo”, disse em 1922, durante conferência realizada no Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina de São Paulo.

Na época, o então diretor-geral do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, cargo que assumiu em 1898 e ocupou por quase 20 anos, travava uma intensa batalha com seus pares a fim de provar que o mosquito era o principal vetor da febre amarela – a doença assolou o país entre meados do século 19 e o início do século 20. 

 

O Fundo Emílio Marcondes Ribas, dedicado à memória do sanitarista, integra o acervo do MUSPER

 

Mesmo diante das muitas evidências reunidas por Emílio Ribas na publicação O mosquito considerado como agente da propagação da febre amarela, inédita sobre o assunto no país, diversos médicos ainda sustentavam a ideia de que a infecção pelo vírus amarílico acontecia por contato com fluidos de pessoas contaminadas ou até mesmo pela água.

Frente ao negacionismo da época, o patrono da saúde pública do estado de São Paulo resolveu repetir um experimento que já havia sido realizado com sucesso em Cuba. Acompanhado por Adolpho Lutz, então diretor do Instituto Bacteriológico, e outros quatro voluntários, fechou-se em uma sala do Hospital de Isolamento (atual Instituto de Infectologia Emílio Ribas) para se deixar picar por amostras infectadas de A. aegypti, comprovando assim sua teoria.

Essa história, que mudou os rumos da medicina tropical brasileira, assim como muitas outras passagens importantes da biografia do médico natural de Pindamonhangaba (SP), está registrada nos diversos documentos arquivísticos, fotográficos e museológicos do Fundo Emílio Marcondes Ribas, que compõe parte do acervo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas (MUSPER). 

Localizado no Bairro do Bom Retiro, na capital paulista, e fundado na década de 1970, o MUSPER é um centro técnico de preservação da memória da saúde pública do estado de São Paulo e desde 2010 encontra-se sob a guarda técnica do Instituto Butantan. 

 

Inventário Emílio Ribas

Em homenagem aos 162 anos do nascimento de Emílio Ribas, celebrado no dia 11 de abril, o MUSPER realizará ao longo do mês o lançamento do inventário dedicado à coleção do sanitarista. Dividido em três grupos documentais – vida privada, vida profissional e homenagens –, o material elenca, sumariza e descreve documentos, cartas, publicações e objetos profissionais e pessoais do médico. 

 

Parte da equipe de colaboradores do MUSPER, responsável pela elaboração do inventário do Fundo Emílio Marcondes Ribas

 

Sob a coordenação da diretora técnica do MUSPER, Maísa Splendore Della Casa, e da supervisora cultural Elisandra Gasparini Silva, a organização e sistematização do acervo e a produção do inventário demandaram três meses de trabalhos intensos, encabeçados pelos analistas de documentação Maria Talib Assad e Augusto Gomes dos Santos, com o auxílio dos jovens-aprendizes Eduardo Morais, Letícia Oliveira, Maria Eduarda Pio, Samara Barros e Yngrid Fernanda Silva. Também contribuíram os educadores Leonardo La Torre e Camila Fernandes da Silva.

O objetivo do material é ser um instrumento de pesquisa que facilite a vida do consulente, conferindo autonomia e contexto para que as pessoas identifiquem e compreendam a relevância de cada uma das peças do acervo especial. “O inventário do Fundo Emílio Marcondes Ribas traduz a importância do personagem para a história da saúde pública de São Paulo. Além de médico, Ribas foi um pesquisador ativo e um grande gestor público, sendo responsável pela estruturação das primeiras instituições de saúde do estado, como o próprio Instituto Butantan”, observa a analista de documentação Maria Talib Assad.

 

Clique aqui e confira o Inventário do Fundo Emílio Marcondes Ribas

 

Réplica da carteira de identidade e óculos original do sanitarista em exposição no MUSPER

 

Destaques

Dentre as principais peças que compõem o Fundo Emílio Marcondes Ribas, a equipe do museu destaca o chamado “Dossiê Medalha de Ouro”, que relata os esforços dos funcionários do serviço sanitário de São Paulo para recuperar uma medalha que foi conferida ao sanitarista e doada após sua morte pela viúva Maria Carolina Bulcão à Campanha de Arrecadação de Fundos para o Financiamento dos Combates, que angariava recursos para apoiar a Revolução Constitucionalista de 1932. 

Diversas personalidades científicas da época, incluindo colaboradores do Instituto Butantan como Lemos Monteiro, Afrânio do Amaral e Raul Godinho, se uniram para juntar dinheiro e comprar de volta a medalha. Depois de reconquistada, a honraria foi doada ao atual Museu do Ipiranga da Universidade de São Paulo (USP).

As correspondências escritas por Emílio Ribas ou endereçadas a ele também geram curiosidade. “É muito interessante acompanhar o tom das conversas e as questões por trás de cada momento. A vida como diretor-geral do Serviço Sanitário não era nada fácil, tanto que ele tenta a exoneração do cargo algumas vezes e não consegue”, conta o analista de documentação Augusto Gomes dos Santos.

 

Documento mostra nomes de colaboradores do Butantan que contribuíram na recuperação de medalha recebida pelo médico paulista

 

Nessas trocas, é possível observar o quanto Emílio foi contestado ao defender a ideia da transmissibilidade da febre amarela por picada de mosquito. O famoso médico Luís Pereira Barreto, adepto da corrente positivista que defendia que apenas os conhecimentos científicos eram verdadeiros, escreveu uma carta de três folhas refutando as conclusões do sanitarista. 

Além das ligações profissionais, é possível observar relações de amizade e cordialidade, como nas correspondências trocadas com o também sanitarista Oswaldo Cruz, em que Emílio dedicava a parte final da carta para contar e questionar como estava a vida em família e a saúde do amigo. 

Abordando temas como varíola, febre amarela e hanseníase, as publicações assinadas por Ribas mostram que seus trabalhos não se restringiam aos limites do Brasil. Muitas apresentam versões em inglês, espanhol e francês, atestando que as ideias do médico exerciam influência em toda a América Latina, Estados Unidos e Europa.

 

Foto original do jovem casal Emílio Ribas e Maria Carolina Bulcão

 

Outra curiosidade é a carteira de identidade do médico, emitida em 1908, que traz revelações: aos 46 anos de idade, Emílio Ribas apresentava cabelos e barba grisalhos. Já os retratos, todos originais, mostram um pouco mais da vida privada do sanitarista. Nas imagens, é possível observá-lo na companhia da esposa, também conhecida como Dona Mariquinha, e fotos da infância dos cinco filhos do casal. “Podemos inferir que o Emílio não tinha muita vida social. A própria companheira costumava dizer que ele havia se casado com a profissão”, brinca Augusto.

Alguns desses registros únicos podem ser vistos na exposição Caminhos da Ciência: encontros de Vital Brazil e Emílio Ribas, que apresenta parte da trajetória dos cientistas e da amizade entre eles, assim como a importância de ambos para o fortalecimento da ciência e da saúde pública brasileira. A mostra, que primeiro ocupou a sala Cesário Motta da Biblioteca Científica do Butantan e agora está em cartaz no MUSPER, também exibe objetos pessoais e profissionais de Emílio Ribas, como microscópio, caneta-tinteiro e carimbo, os tradicionais óculos de grau arredondados feitos com osso de tartaruga, além de cadeira, escrivaninha e máquina de escrever que integravam seu escritório no Hospital de Isolamento.

 

Conhecer o passado impacta o presente

A documentação arquivística do MUSPER é única, original e insubstituível, e seu legado histórico permite a compreensão das diferentes transformações que ocorreram ao longo do tempo, tanto do ponto de vista da saúde pública como do contexto social.

 

A diretora técnica do MUSPER, Maísa Splendore Della Casa

 

“Visitar o nosso museu é fazer uma viagem ao passado e nossos acervos são uma oportunidade para ampliar o conhecimento. Como em um livro, cada capítulo existe para compreender o anterior e dar sentido ao próximo. São aprendizados valiosos que ajudam a embasar as decisões do presente e nortear o futuro, desenvolvendo nossa capacidade crítica”, reforça a diretora técnica do museu, Maísa Splendore.

O Museu de Saúde Pública Emílio Ribas oferece visitas educativas, previamente agendadas por meio do e-mail museuer.educadores@butantan.gov.br. Já os pedidos de consulta ao acervo devem ser encaminhados para acervoer@butantan.gov.br. Em um sábado por mês acontece o #MUSPERdePortaAbertas, quando o público pode visitar o museu e participar de atividades educativas sem a necessidade de agendamento – o prédio está passando por um processo de revitalização das estruturas físicas e museográficas e, por isso, a visitação é restrita. Fique de olho na programação e participe!

 

Reportagem: Natasha Pinelli

Fotos: José Felipe Baptista/Comunicação Butantan