Foi no bairro Ponte Grande, em Guarulhos (SP), que Lucas Simões Lima cresceu assistindo a Jurassic Park, Alien, Tubarão, Rei Leão e outros sucessos da década de 1990. Os filmes alimentaram sua paixão pelos animais – e influenciaram sua atual coleção de 550 DVDs. Fora da telinha e do cinema, gostava de brincar com os dinossauros que ganhava da mãe. O destino não poderia ser outro: Lucas se tornou biólogo e especialista em bem-estar animal, área em que atua há 10 anos. Hoje, aos 28, é tecnologista em manejo animal no Museu Biológico do Parque da Ciência Butantan, do Instituto Butantan.
Dedicado à saúde dos pequenos – e grandes – residentes do museu, ele é responsável por atividades bastante especiais, como montar “piscinas de bolinhas” e paredes escaláveis para cobras, estruturas que promovem o chamado enriquecimento ambiental. A técnica, com eficácia comprovada na literatura, consiste em simular situações da natureza dentro dos recintos e estimular as capacidades sociais, sensoriais, cognitivas e físicas dos animais. Vassouras, garrafas pet e argolas são alguns dos itens reaproveitados pelo biólogo.
Mas se engana quem pensa que o trabalho é simples. Assim que ingressou no Butantan, em junho de 2021, Lucas se deparou com um de seus maiores desafios: tornou-se responsável por uma sucuri gigante de 77kg e 4 metros de comprimento. Moradora do museu há 22 anos, a serpente era temida por muitos devido à sua agressividade, o que dificultava a realização de exames de rotina no animal (e rendia até pesadelos para alguns funcionários).
“Falei para meu colega: ‘eu vou deixar esse animal manso’, e ele respondeu: ‘vai nada’. Eu já tinha treinado tubarão, foca, lobo-marinho... E decidi reproduzir o que já tinha feito. Mas não havia registro de condicionamento com sucuri”
Após meses de treinamento, a sucuri do Museu Biológico e Lucas se tornaram "melhores amigos"
O biólogo começou acostumando a serpente com sua presença. Por vários dias, ele entrava no recinto e ficava sentado a uma distância que não a incomodava. “Um dia, enquanto estava usando a mangueira no modo ‘chuveiro’ para lavar o local, percebi que ela levantava a cabeça e dardejava [colocava a língua para fora], buscando o contato com a água. Foi naquele momento que eu vi uma oportunidade”, conta.
Assim teve início a dessensibilização: Lucas aproveitou o uso da “chuva” para se aproximar aos poucos da sucuri e começou a tocá-la enquanto jogava água. Depois disso, o animal nunca mais reagiu a ele de forma agressiva. Hoje, contrariando todas as expectativas, ele consegue tocar na cobra sem a água e até mesmo segurar sua cabeça tranquilamente.
Ele faz treinamentos frequentes com as veterinárias e a equipe tem obtido sucesso na realização dos exames. Para pesar a sucuri, Lucas posiciona em cima da balança uma caixa cheia de folhas secas – que ela adora – e a espera entrar. “Não gera estresse, não é preciso segurá-la em cinco pessoas... ela simplesmente vai no tempo dela”, diz. O sucesso do trabalho rendeu uma apresentação na Reunião Científica Anual do Butantan, em 2023, e o biólogo ainda planeja submeter o trabalho para outros congressos.
“Toda semana a sucuri me emociona de um jeito diferente. Ela me ensina todos os dias como ser melhor para ela, o que fazer de melhor para ela”
Quando trabalhou no Aquário de São Paulo, Lucas ensinou pinguins a fazer fila para se alimentar
Animais que surpreendem
Lucas se formou em biologia na Universidade de Guarulhos e fez especialização em bem-estar animal na Centro Universitário União das Américas (UniAmérica), mas, até hoje, considera o trabalho sua maior escola. Antes de entrar no Museu Biológico, acumulou uma vasta experiência em lugares como o Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (CeMaCAS), Aquário de São Paulo, Zoológico de São Paulo e Sabina – Escola Parque do Conhecimento.
Cuidou de pinguim, peixe-boi, foca, lobo-marinho e até de tubarão. Além de enriquecimento ambiental, seu trabalho era focado no condicionamento operante: modelar o comportamento dos animais usando reforços positivos, como alimento, para realizar procedimentos veterinários. Foi essa vivência que serviu de base para o trabalho com a sucuri.
“Um dos meus animais favoritos era o pinguim: cada um tem um jeitinho e você consegue diferenciá-los. Eu os treinei para fazer fila para comer, porque eles são muito acelerados e acabavam se machucando. E aí durante a alimentação eu pesava eles”
Outro animal que o surpreendeu foi um tubarão-lixa de 2,5 m que era muito agressivo e tinha aversão ao toque humano. Lucas treinou o animal por um ano para acostumá-lo com a presença de pessoas e deixá-lo tranquilo para a realização de exames. O mesmo aconteceu com um tubarão-bambu, que até se alimentava na mão dele, algo que impressionou os colegas. “Foi um longo processo de dessensibilização, de mergulhar no tanque com cilindro de oxigênio e ficar um tempão esperando o animal vir comer”, afirma.
O encantador de animais relata que nunca sentiu medo – e olha que já passou por diversas situações, como ser encurralado por um leão-marinho, que “não deixava” os tratadores saírem do recinto, e até levar duas mordidas de tubarão (felizmente, nenhum acidente grave). Segundo ele, o essencial é respeitar o tempo dos animais, conduzindo o trabalho de forma gradativa, sem tentar pular etapas.
“Se eu souber que melhorei a vida de um animal que está sob cuidados humanos, já me sinto completo. Trabalhar com bicho é isso: às vezes, eles te completam”
Bambi, a tubarão-bambu de 1,20 m cuidada por Lucas, passou a aceitar o toque humano
Um sonho (não tão) distante
A oportunidade de trabalhar no Butantan, lugar que visitava quando criança, surgiu de modo inesperado. No início de 2021, Lucas chegou a participar de uma entrevista para trabalhar no Museu Biológico, mas não foi selecionado. Alguns meses depois, no entanto, enquanto vasculhava a caixa de spam para encontrar o e-mail de confirmação de um banco, se deparou com um convite para uma nova entrevista, que havia sido enviado há duas horas. Dessa vez, deu tudo certo.
“Muita gente na faculdade se imaginava trabalhando no Butantan, mas parecia um sonho distante. Estar aqui tem sido uma experiência enriquecedora e desafiadora”
O objetivo de Lucas é que todos os animais do museu estejam inseridos em um programa de bem-estar e enriquecimento, e que seu trabalho também sirva de exemplo para outras instituições que cuidam de bichos. “Os répteis, diferente dos mamíferos, não costumam ser vistos como animais que interagem e que precisam de enriquecimento. Mas isso não é verdade”, explica.
Segundo o especialista, essa diferenciação existe porque, com os mamíferos, a resposta ao enriquecimento é muito rápida, enquanto cobras podem demorar horas para interagir com o objeto inserido no recinto. “Pode ser frustrante você ofertar enriquecimento e o animal não se importar na hora, mas quando a resposta vem, é emocionante. Muitas vezes, vem de formas que você nem espera.”
“Esses são os momentos que eu chamo de felicidade”
Caçula da família, Lucas tem duas irmãs, um irmão e três sobrinhos, e gosta de jogar RPG, viajar para a praia e aproveitar seu lado cinéfilo. No dia a dia dentro do museu, o cuidado e o amor pelo que faz refletem os ensinamentos de seu antigo supervisor no CeMaCAS, Francisco Conde. A experiência com o então mentor foi um divisor de águas em sua vida.
“Eu me tornei realmente biólogo quando o conheci. Ele me fez ser uma pessoa e um profissional melhor. Se eu tenho essa ternura e esse respeito pelos animais, é graças a ele”
Uma das principais lições que o jovem aprendeu, e que busca repassar aos futuros biólogos, é ter humildade e respeito, especialmente com os tratadores dos animais – que são as pessoas que mais conhecem o bicho individualmente –, e entender que somos pequenos perto de tudo que existe no mundo.
Lucas explica que trabalhar com bem-estar animal não é fácil e, muitas vezes, a carreira não é valorizada como deveria. O caminho é árduo e requer persistência. Não é apenas estar com o animal: é limpar o recinto, preparar alimento, fazer manutenção. Mas todo o esforço vale a pena.
“Quando aconteceu o primeiro ultrassom da sucuri, quando um bicho reage ao enriquecimento... Esses são os momentos que chamo de felicidade. A diferença entre uma segunda-feira normal e uma segunda-feira de sucesso”
No vídeo abaixo, Lucas detalha como é feito o enriquecimento ambiental no Museu Biológico:
Reportagem: Aline Tavares
Fotos: José Felipe Batista/Comunicação Butantan