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Como é a Ilha das Cobras: o que é mito e o que é realidade quando o assunto é o lar da jararaca-ilhoa

Perigoso, local não está aberto para visitação do público geral; serpente endêmica da região não possui veneno mais potente que sua “prima” do continente


Publicado em: 18/06/2025

Reportagem: Natasha Pinelli
Imagens: Marília Ruberti e André Ricoy/Comunicação Butantan

 

Em um mar tempestuoso de conteúdo – formado por uma enxurrada de memes, notícias, publicidade e influenciadores –, posts relacionados à tão falada Ilha das Cobras despertam a curiosidade dos internautas e viralizam nas redes sociais. 

Basta uma busca simples na internet para se deparar com matérias, fotos e vídeos que descrevem a Queimada Grande – nome “verdadeiro” da ilha, localizada no litoral sul de São Paulo – como um dos points mais perigosos do mundo. O motivo para isso é que ela é “tomada” por uma serpente peculiar: a jararaca-ilhoa (Bothrops insularis).

Venenosa, a espécie endêmica – ou seja, que não ocorre em nenhum outro lugar do planeta – também carrega má fama, sendo frequentemente descrita como agressiva. Além disso, o animal seria portador de uma peçonha para lá de poderosa, capaz até de derreter a carne humana, deixando apenas os ossos daqueles que cruzassem o seu caminho para “contar a história”. 

Mas será que tudo isso é verdade? Para responder às diversas dúvidas que pairam sobre o local e sua temida moradora, o Portal do Butantan conversou com especialistas da casa para tirar a prova real – ou científica – e entender o que, de fato, é mito ou realidade nesse oceano de lendas e boas histórias. Confira:


O desembarque em terra firme é considerado um dos momentos mais tensos da viagem à Queimada Grande (Foto: Marília Ruberti)

 

1. A Ilha da Queimada Grande é um dos lugares mais perigosos do mundo
VERDADE.
Localizada a 35 quilômetros da costa do município de Itanhaém, a Queimada Grande possui uma população de cerca de 3.000 espécimes de B. insularis. Com uma média de 55 jararacas por hectare, a ilha é a segunda do mundo com a maior densidade populacional de serpentes, ficando apenas atrás da Ilha de Shedao, na China, que reúne 200 exemplares do réptil por hectare

“Isso significa que, ao andar pela ilha, são altas as chances de cruzar com essa serpente peçonhenta, que tem capacidade para provocar algum tipo de acidente”, afirma a bióloga e tecnologista do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEv) Karina Kasperoviczus.  

É importante esclarecer que “cruzar com a jararaca” da Queimada Grande não significa vê-la, de fato. Afinal, é preciso ter um olhar bastante treinado – como o dos pesquisadores do Butantan – para visualizar o animal. Por vezes, é difícil encontrar a serpente, que frequentemente acaba se escondendo no meio da vegetação.

Talvez você já tenha visto uma “foto” que rodou a web, com milhares de cobras rastejando pelas encostas da ilha, como se fosse impossível encontrar uma brecha para colocar o pé no chão. Esqueça essa imagem: ela não é real. E, detalhe: a maioria das serpentes mostradas ali nem são jararacas-ilhoa. 

Outro fator que adiciona ao grau de periculosidade da ilha é a própria geografia do terreno, que é bastante acidentado. Com diversas formações rochosas, o sobe e desce constante da trilha pode pregar surpresas dolorosas, como quedas e escorregões – vale lembrar que boa parte do caminho que corta o local de uma ponta a outra margeia abismos com queda livre para o mar. 

“O desembarque também é um dos principais desafios a ser superado quando visitamos a Ilha da Queimada Grande. Como lá não tem praia, é preciso ‘saltar’ do barco na hora certa e ‘aterrissar’ em uma rocha escorregadia. Quando as ondas estão um pouco mais altas, fica ainda mais complicado. É uma aventura mesmo”, brinca o pesquisador científico do LEEv Otavio Marques.

 


Vista da Queimada Grande no momento da chegada. A ilha não possui praia e é cercada por rochedos (Foto: Marília Ruberti)

 

2. A Ilha da Queimada pode ser visitada por qualquer pessoa que queira conhecê-la
MITO.
O local, que faz parte da Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) da Queimada Pequena e Queimada Grande, é uma Unidade de Conservação Federal de Uso Sustentável e encontra-se sob a gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 

Por conta disso, apenas pesquisadores portadores da chamada licença Sisbio, concedida pelo órgão, têm autorização para visitar a localidade. A permissão é essencial para realizar a coleta de material biológico e conduzir estudos científicos em áreas protegidas. “Caso alguma pessoa seja pega na ilha sem a devida autorização do ICMBio, ela pode ser presa e responder por crime ambiental”, alerta Karina Kasperoviczus.

 


É comum se deparar com espécimes de B. insularis em galhos e na copa das árvores da ilha (Foto: Marília Ruberti)
 

3. As jararacas da Queimada Grande são “máquinas assassinas” que atacam as pessoas
NÃO É BEM ASSIM.
“A B. insularis usa bastante a vegetação e a copa das árvores. Como as pessoas têm o costume de andar olhando para o chão, elas acabam sendo surpreendidas e se deparam com a serpente em locais que não esperavam. Talvez venha daí esse mito”, pondera Otavio Marques. 

O fato de terem hábitos mais arborícolas não significa que as ilhoas vão pular em cima de alguém ou atacar aqueles que, porventura, cruzarem o seu caminho. “Quando uma pessoa chega muito perto e a serpente se sente ameaçada, ela pode adotar dois comportamentos: fugir ou se defender dando o bote”, reforça Karina Kasperoviczus.

Se o animal picar alguém na ilha, a distância da unidade de atendimento hospitalar mais próxima com disponibilidade de soro antiofídico também se torna um agravante – só o percurso de barco leva cerca de duas horas, quando o mar está em boas condições. Vale lembrar que, passadas três horas do envenenamento, o risco de agravamento do quadro aumenta consideravelmente.

 

Um dos principais mitos da jararaca da Queimada Grande envolve a potência da sua peçonha (Foto: Marília Ruberti)

 

4. O veneno da jararaca-ilhoa é muito mais potente que o da jararaca do continente
MITO.
Até hoje a B. insularis é conhecida e temida pela potência de seu veneno. Na internet, é comum encontrar informações bastante exageradas, que descrevem sua peçonha como capaz de “derreter” a carne humana – o que está bem longe de ser verdade. 

“Dadas as devidas proporções, essa questão do veneno foi baseada em um conhecimento científico que se perpetuou, mas há tempos já foi atualizado”, explica a pesquisadora científica do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan Selma Almeida-Santos.

A informação começou a ganhar o mundo ainda na década de 1920, quando o então herpetólogo da extinta Seção de Ofiologia do Butantan Afrânio do Amaral (1894-1982), responsável por encabeçar as primeiras expedições à Ilha da Queimada Grande, conduziu experimentos com o veneno da jararaca-ilhoa.

Os testes consistiram em injetar diretamente a peçonha na circulação sanguínea de pombos. Diante dos efeitos, ele concluiu que a espécie era uma das mais venenosas do Brasil, e que seu veneno seria cinco vezes mais potente do que o da jararaca do continente (Bothrops jararaca). 

Porém, um novo estudo conduzido nos anos 2000 colocou os dados por terra ao concluir que o veneno da jararaca-ilhoa não é mais potente, mas apenas mais efetivo para predar as aves – no entanto, trata-se de uma característica compartilhada com a jararaca continental. 

 


O soro antibotrópico produzido pelo Instituto Butantan é indicado para o tratamento do envenenamento por serpentes do gênero Bothrops (Foto: André Ricoy)

 

5. O veneno da jararaca-ilhoa é essencial para a produção do soro antiofídico produzido pelo Instituto Butantan
MITO.
A peçonha da B. insularis não é utilizada na produção do soro hiperimune. Atualmente, a substância é coletada apenas para pesquisa – é preciso ter uma licença especial concedida pelo ICMBio a fim de realizar tal procedimento. 

Em caso de acidentes com a espécie, o tratamento é realizado com o soro antibotrópico, fabricado com o veneno de diferentes tipos de jararacas do gênero Bothrops. O número de ampolas aplicadas varia de acordo com a gravidade de cada quadro.  

 


Espécime de jararaca-ilhoa se movimenta em meio à vegetação rasteira da Queimada Grande (Foto: Marília Ruberti)

 

6. As Bothrops insularis são serpentes enormes, podendo atingir mais de 1,5 metro
MITO.
A jararaca-ilhoa é considerada uma espécie pequena: as fêmeas são maiores e atingem, em média, 70 centímetros, ao passo que os machos não ultrapassam os 60 – para efeito comparativo, a jararaca do continente pode alcançar cerca de 1,5 metro.

Os especialistas acreditam que o porte reduzido da serpente tenha relação com sua maior restrição alimentar; já que, para comer, a jararaca-ilhoa depende da migração de duas aves:  a guaracava-de-crista-branca (Elaenia chilensis) e o sabiá-una (Turdus flavipes) – como esta última é uma espécie maior, apenas as serpentes fêmeas parecem ser capazes de predá-la. Além disso, aparentemente os machos não saem em busca de recursos alimentares na época de migração do sabiá-una.