*Este texto é uma colaboração do pesquisador Carlos Jared para o portal do Instituto Butantan
Apesar de também serem conhecidas como cobras-cegas, as cecílias não são cobras. Elas nem mesmo fazem parte da mesma classe das serpentes: cecílias são anfíbios, e não répteis. Embora sejam muito distantes evolutivamente, há diversos pontos em comum entre as duas espécies: ambas são desprovidas de patas e é a cabeça que desenvolve praticamente todas as atividades vitais (interação com o ambiente, defesa, alimentação). Sem contar que as cecílias, além de possuírem glândulas venenosas na superfície da pele, contam também com um tipo de aparato que se assemelha aos dentes de injeção de peçonha das serpentes.
Com base nesses e em muitos outros dados, os pesquisadores do Laboratório de Biologia Estrutural do Instituto Butantan, liderados pelo professor Carlos Jared, levantaram a hipótese de que as glândulas de peçonha das serpentes, que começaram a surgir há cerca de 100 milhões de anos, no período Cretáceo, já haviam sido "inventadas" pelas cecílias 150 milhões de anos antes. Eles também concluíram que é bem possível que a peçonha das serpentes e as secreções peçonhentas das cecílias desenvolveram-se seguindo objetivos similares. E que as cecílias podem ser consideradas, ao mesmo tempo, animais peçonhentos e venenosos: secretam peçonha através de glândulas dentais e veneno através das glândulas da pele.
Essa pesquisa é uma das maiores descobertas dos últimos anos sobre os anfíbios e foi divulgada ao mundo em um artigo publicado na revista científica iScience com grande repercussão na mídia internacional – The New York Times, The Guardian, Washington Post, National Geographic, entre outros veículos da imprensa, noticiaram a descoberta. No universo científico, o trabalho, a despeito de ser bem recente, já conta com 1.077 leituras e 114 recomendações somente no portal Research Gate, além de ter sido destacado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) como um dos dez trabalhos mais acessados de 2020.
Por que as serpentes são peçonhentas? Para que serve a peçonha?
O médico sanitarista Vital Brazil, primeiro diretor do Butantan e grande pesquisador dos soros antiofídicos, disse em uma conferência na Escola Politécnica de São Paulo em 1902 que a peçonha é o "ganha pão" das serpentes.
Nas cascavéis ou jararacas (que compõem a família Viperidae), os dentes que inoculam a peçonha são constituídos por estruturas muito semelhantes a agulhas de injeção. Quando a serpente introduz seus dentes pontiagudos na vítima, as glândulas de peçonha, envoltas por músculos e localizadas na parte posterior da cabeça, são imediatamente comprimidas. As toxinas que compõem a peçonha são injetadas por pressão através do canal localizado no interior das "agulhas de injeção". A morte de pequenos mamíferos é quase instantânea e a serpente não necessita despender energia para procurá-los.
A peçonha tem um fim primordialmente nutricional e serve para matar o animal a ser comido, mas pode, secundariamente, ser usada também como defesa. Ao contrário da crença popular que vincula a esses animais conceitos de malignidade e traição, com seus botes, as serpentes somente se defendem ao que "entendem" como uma agressão – logicamente, o conceito de agressão entre os ofídios difere daquele dos humanos.
Para as serpentes, entretanto, não há vantagens em gastar o "ganha-pão" dessa forma. A peçonha que resta nas glândulas depois da picada defensiva não é capaz de paralisar uma presa. A situação só vai se regularizar em tempo, quando as glândulas estiverem novamente abastecidas, e até lá a serpente não vai ter como se alimentar.
As cascavéis, que avisam o possível agressor com sinais sonoros, e as cobras-corais, que o fazem com o colorido de seu corpo, comprovam a afirmação de Vital Brazil. Na sua linguagem, a serpente emite um recado claro: "vá embora que não quero desperdiçar a minha peçonha – você pode morrer e eu vou passar fome!"
Qual a diferença entre peçonha e veneno e por que é importante fazer essa distinção?
Ainda que em menor número, também existem os animais que se defendem passivamente, ou seja, quando atacados são praticamente inofensivos e não revidam. Dentre eles, a classe dos anfíbios é a mais representativa, com mais de oito mil espécies de sapos, rãs, pererecas, salamandras e cecílias.
O corpo desses animais é totalmente coberto por pequenas glândulas de veneno e de muco, capazes de secretar uma grande diversidade de tipos de toxinas – como peptídeos, proteínas, aminas biogênicas, esteroides e alcaloides. Se são mordidos, o veneno das glândulas da pele penetra na boca do agressor através da mucosa.
A despeito de ser passivo, esse tipo de defesa dos anfíbios é bem eficiente, podendo, inclusive, levar a óbito. Vale lembrar que o vertebrado mais letal do mundo é um pequeno e bem colorido anfíbio da floresta amazônica, com o sugestivo nome científico de Phyllobates terribilis. No meio semiurbano, os cães são os que mais padecem quando tentam brincar com sapos.
As cecílias, por viverem no ambiente subterrâneo, são pouco acessíveis e consideradas os vertebrados menos conhecidos do ponto de vista biológico. Em outro artigo recente, os pesquisadores do Butantan mostraram que as microscópicas glândulas que se localizam em sua pele são distribuídas diferentemente. As mucosas ficam localizadas na cabeça, o que facilita o deslocamento do animal, diminuindo o atrito no interior da terra. Em direção à cauda, as glândulas vão escasseando, dando lugar às de veneno. Afinal, nos túneis, a cauda é o local mais visado e mais susceptível de ser mordido.
O que as cobras-cegas têm a nos dizer sobre as cobras em geral – e vice-versa
O Laboratório de Biologia Estrutural do Instituto Butantan vem se dedicando ao estudo, tanto no campo como em cativeiro, dos métodos de defesa de animais, tanto ativos quanto passivos.
O pesquisador Pedro Luiz Mailho-Fontana, pós-doutorando da FAPESP, tem dado continuidade a essa pesquisa. Ao analisar a cabeça da cobra-cega Siphonops annulatus, habitante da mata atlântica, ele percebeu que, além das glândulas da superfície da pele, elas possuem também um tipo glandular junto aos dentes, até então desconhecido. Rastreando o método de expulsão do conteúdo dessas glândulas por cortes histológicos, Pedro viu que a sua secreção é direcionada a canais que circundam os dentes. Com estudo embrionário, ele constatou que essas glândulas dentais das cecílias se desenvolvem a partir do mesmo tecido que origina as glândulas de peçonha das serpentes.
Outra descoberta foi feita em uma prospecção preliminar da secreção extraída das glândulas das cecílias. O pesquisador detectou a enzima fosfolipase A2, bastante comum na peçonha de animais, desde abelhas a serpentes. As observações em confinamento mostraram que as cobras-cegas utilizam os dentes para introduzirem toxinas nas presas através dos machucados causados pela mordida. Neste momento, elas comprimem as áreas gengivais, onde ficam as pequenas glândulas, fazendo com que o seu conteúdo penetre nos ferimentos. A observação mostrou que, no abocanhamento da presa, a substância secretada é bem abundante – inclusive, ela extravasa e torna possível observá-la ao longo dos lábios do animal.
A partir desses dados foi possível levantar a hipótese, descrita no início deste texto, de que as glândulas de peçonha das serpentes, que começaram a surgir há cerca de 100 milhões de anos, no período Cretáceo, já haviam sido "inventadas" pelas cecílias uns 150 milhões de anos antes. As cecílias desenvolveram-se possivelmente durante o período Jurássico, em torno de 250 milhões de anos atrás, e é bem provável que suas glândulas dentais tenham surgido independentemente. As serpentes possuem uma glândula única e volumosa de cada lado da cabeça, com canal que se comunica com os dentes de injeção. Em contraste, as pequenas glândulas das cecílias não se reuniram em estruturas únicas, confirmando a sua característica evolutiva basal (ou pouco desenvolvida). Possivelmente, a evolução das glândulas das serpentes pode ter se iniciado através de pequenas unidades como essas.
Saiba mais sobre o trabalho de Carlos Jared, Pedro Luiz Mailho-Fontana e os demais pesquisadores do Laboratório de Biologia Estrutural do Instituto Butantan
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