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Fungo de The Last of Us não é perigoso na vida real e alguns do mesmo gênero são remédios

Fungo Cordyceps pode tornar hospedeiro um zumbi e causar sua morte, mas não exatamente como na série; gênero contém espécies com propriedades medicinais


Publicado em: 13/03/2023

Embora fictícia, a estória da série “The Last of Us” (HBO Max) não é totalmente deslocada da realidade: o fungo do gênero Cordyceps, que no enredo quase dizima a humanidade, realmente existe. A diferença é que na vida real este fungo consegue infectar formigas, lagartas e outros insetos, não seres humanos. Isto, por si só, exclui o perigo – pelo menos por ora – de a humanidade sofrer uma pandemia letal por este fungo.

“Não se tem conhecimento de espécies de fungos do gênero Cordyceps capazes de sobreviver no corpo humano e causar a morte daquela maneira vista na série. Os fungos podem sofrer mutações, mas não sabemos se uma pandemia por uma infeção fúngica pode ser causada algum dia, mas parece-me uma possibilidade bastante remota”, explica a pesquisadora do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação do Instituto Butantan Ana Olívia de Souza, pós-doutora em bioquímica pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, que estuda a aplicação farmacológica de substâncias produzidas por diferentes espécies de fungos.

A pesquisadora do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação do Instituto Butantan Ana Olívia de Souza

Na realidade distópica da série, o fungo Cordyceps sofre uma mutação e passa a infectar humanos, que se transformam em zumbis capazes de infectar uns aos outros a cada mordida. Na natureza, existem mais de 400 espécies de fungos somente do gênero Cordyceps; destes, o Ophiocordyceps unilateralis é o que age de forma mais parecida com o da série – só que em insetos. 

“Este fungo realmente transforma a formiga em um zumbi porque secreta neurotoxinas dentro do animal, que então comprometem o funcionamento dos músculos do inseto, alterando o seu comportamento no formigueiro. Após ser infectada, a formiga fica desnorteada e começa a procurar por locais mais iluminados, e acaba saindo do formigueiro. Nesse processo, ela espalha os esporos do fungo que já tomam o seu corpo”, explica a biotecnologista Tainah Colombo Gomes, da equipe de Ana Olívia.

A infecção pelo fungo – com duração de 2 a 5 dias – torna o corpo da formiga todo esbranquiçado, com aspecto semelhante ao mofo. Cheios de esporos microscópicos por dentro e por fora, os membros da formiga começam a ser paralisados por ação das neurotoxinas. Incapaz de se mover, a formiga morre e os resíduos de seu corpo inerte continuam sendo úteis como alimento para o fungo. Este processo de reprodução do Ophiocordyceps unilateralis tem garantido a sua sobrevivência, conta o técnico sênior do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação (LDI) Rafael Conrado.

“Este fungo faz com que a formiga tenha um comportamento muito específico:  ao sair do formigueiro, ela se agarra a uma planta próxima e, já fixada, cresce em sua cabeça o corpo frutífero, que é o órgão reprodutor do fungo. É por onde o Cordyceps libera seus esporos, que podem infectar outras formigas ali mesmo, serem depositados no solo, ou serem levados pelo vento ou insetos para outros locais”, descreve Rafael. 

 

 

Como na ficção, uma reviravolta pode acontecer e mudar o triste destino dos membros deste formigueiro. Ao perceber um animal infectado, a colônia tenta dar um jeito de impedir uma infecção em massa.

“No formigueiro, as operárias percebem o comportamento estranho das formigas que agem como zumbis e então as retiram do formigueiro para que elas não tenham contato com as outras. Elas não são racionais como nós, mas dão um jeito de eliminar as infectadoas para proteger as demais”, conta a pesquisadora do LDI.

O fungo zumbi

O Ophiocordyceps unilateralis, também conhecido como “fungo zumbi”, foi descoberto pelo naturalista britânico Alfred Russel Wallace em 1859, e atualmente é encontrado predominantemente em florestas tropicais, como na Amazônia. Ele infecta formigas-carpinteiras (Camponotus cruentatus) que se alimentam de fungos e vivem em locais quentes e úmidos, ambientes que facilitam sua proliferação.

Esta relação entre o fungo O.  unilateralis e a formiga é fruto de um longo processo de evolução, e indica que o inseto carrega as condições necessárias para o fungo sobreviver.

“Ao longo dos anos, o fungo se adaptou ao organismo da formiga, cuja temperatura corporal é diferente da dos humanos, e o sistema nervoso bem menos complexo. Lá no começo do contato entre eles, talvez existisse uma relação benéfica, tanto para formiga quanto para o fungo, o que teria ajudado neste processo. Para se desenvolver em um corpo humano, o fungo teria de passar por muitas adaptações e ainda encontrar um corpo com sistema imune muito debilitado”, explica o aluno de doutorado do LDI Luiz Gustavo Ribeiro. 

Diferentes espécies de fungos no Laboratório de Desenvolvimento e Inovação do Butantan

Medicina chinesa

Outras espécies de fungos Cordyceps têm qualidades benéficas, inclusive para a saúde humana – como o Cordyceps cicadae, o Cordyceps sinensis e o Cordyceps militaris, amplamente usados pela medicina tradicional chinesa.

“As três espécies são descritas como produtoras de compostos com diferentes propriedades farmacológicas: anti-inflamatórias, antitumorais, imunomoduladoras, nefroprotetoras e hepatoprotetoras. Os fungos do gênero Cordyceps que são benéficos têm sido considerados uma commodity rara na China”, diz Ana Olívia.

Não é novidade para a ciência usar o lado benéfico dos microrganismos como fonte de medicamentos e outros produtos. Um grande exemplo é a penicilina, descoberta de um fungo, que se tornou um excelente antibiótico usado há décadas. “Aqui no laboratório, nossa pesquisa tem como finalidade encontrar alguma molécula que tenha aplicação farmacêutica”, explica a pesquisadora. 

Uma das linhas de pesquisa do LDI inclui um estudo que aborda a ação cicatrizante e antimicrobiana de moléculas produzidas por fungos. O objetivo é usá-las em diferentes produtos, entre os quais uma pomada para cicatrização de feridas e/ou um produto com ação antibiótica.

“Em nossa pesquisa, os fungos são também utilizados para desenvolvimento de nanomateriais que podem ter aplicação farmacêutica e para combater fungos prejudiciais à produção de grãos na agricultura”, conclui Ana Olívia.