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Biólogo do Butantan e homem trans: “Meu primeiro documento com nome social foi meu crachá”

Eli Campos de Oliveira, tecnologista do Instituto Butantan, conta o que significa ter seu gênero e talento reconhecidos


Publicado em: 14/04/2022

Meu primeiro documento com o nome social foi o crachá do Butantan. Isso é uma libertação, é uma felicidade, porque por 33 anos eu performei como uma pessoa que eu não era.

É assim que o tecnologista do Laboratório de Coleções Zoológicas do Instituto Butantan Eli Campos de Oliveira descreve o que significa a mudança de seu nome na credencial do trabalho.

O biólogo de 33 anos, criado no Jardim Santo Antônio, em Osasco (SP), trabalha no Butantan desde 2018, onde chegou com os cabelos compridos, seu nome de nascimento e sua homossexualidade assumida. Mas depois de assistir a uma palestra sobre Orgulho LGBTQIA+ promovida pelo próprio instituto, se sentiu encorajado a dizer à doutora em Ciências e curadora do LCZ, Flávia Virginio: “eu sou um homem trans”.

 

A declaração foi recebida com respeito pelos colegas, o que lhe impulsionou a pedir a troca por seu nome social, procedimento feito primeiro no crachá e depois em toda sua documentação e no e-mail.

“Quando eu peguei o crachá com meu nome, minha foto, naquele momento me reconheci como pessoa. Eu chorei muito. Foi o primeiro documento que eu me identifiquei. É um troféu, sabe? Tem muito significado”.

 

 

A inclusão do nome social passou a ser um direito no Brasil com a criação do decreto presidencial 8.727, de 2016, que determina que órgãos e entidades da administração pública federal, autarquias e fundações adotem o nome social de funcionários transexuais e travestis em documentos dos funcionários que requeiram.

O nome social é a designação pela qual pessoas transexuais, que se identificam com o sexo oposto ao do nascimento, ou travestis, que nascem do sexo masculino, mas têm uma identidade de gênero oposta ao sexo biológico, se identificam e buscam ser socialmente reconhecidos.

 

Sonho de ser biólogo

Eli conta que assumir a identidade masculina foi mais um passo na construção pessoal como homem trans, decisão amparada por anos de buscas por informação, orientação médica e psicológica. Isso porque na infância Eli já se enxergava como um menino. Mas o medo de ser julgado e incompreendido pela família e no trabalho o imobilizou até a idade adulta.

O antídoto para evitar a intolerância foi se debruçar nos estudos e na paixão pela biologia, descoberta ainda criança, quando trocava qualquer boneca por insetos que encontrava no quintal da avó, onde morava com os pais e a irmã mais nova.

“Eu sempre gostei de bichos, fazia casinha para eles, colocava tatu e insetos em potinhos... Uma vez toquei em uma lagarta e queimei a mão, e, por incrível que pareça, fiquei fascinado porque descobri que ela queimava mesmo.”

 

 

E foi durante uma visita ao Butantan, na adolescência, que a vontade de estudar os animais aflorou ainda mais. Eli precisava entrevistar um biólogo para um trabalho escolar e foi parar justamente no prédio de coleções, onde conheceu o pesquisador Francisco Luis Franco, o Kiko, uma referência em taxonomia de répteis. “Naquele momento eu pensei: quero ser como ele, quero trabalhar aqui um dia.”

 

Ser quem eu quero, sendo eu mesmo

Mesmo formado em Biologia e atuando em um laboratório hospitalar, o foco em trabalhar no instituto se manteve, assim como a entrega mensal de currículos até ser chamado para participar de um processo seletivo no Butantan.

“Quando eu recebi essa ligação foi o melhor dia da minha vida, eu lembro até onde eu estava. Consegui a vaga para trabalhar no controle de qualidade de produção e depois fui convidado para trabalhar no Laboratório de Coleções Entomológicas pelo diretor Antônio Brescovit, onde tudo começou. Passa um filme na cabeça.”

O reconhecimento da orientação de gênero e de sua capacidade profissional fazem diferença no dia a dia do Eli, ainda mais no Brasil, o país que mais mata transexuais e travestis no mundo, segundo dados da Transgender Europe (TGEU), rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero. De acordo com o levantamento, entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes de travestis e transexuais no Brasil.

Em 2021, houve ao menos 140 assassinatos de transexuais no Brasil, sendo 135 travestis e mulheres trans, e cinco casos de homens trans e pessoas transmasculinas, segundo dossiê publicado em janeiro pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra)

 

 

Por essa realidade muito difícil para a grande maioria dos transexuais, chamá-los pelo pronome masculino ou feminino, de acordo com o seu nome social, e reconhecê-los pelas suas qualidades, atos e aspirações é uma forma real de respeito. Entender suas mudanças físicas, pelo uso ou não de hormônios ou de roupas que julgarem mais apropriadas para si, também é uma maneira de mostrar empatia e evitar julgamentos.

Hoje eu sou um homem trans respeitado pelo que eu sou, na empresa que eu sempre sonhei trabalhar. Eu ouço meus pais me chamarem de filho. Isso faz uma completa diferença na minha vida, tem um significado muito grande porque não é fácil ser transparente e ser aceito pela sua capacidade profissional. Aqui no Butantan eles me veem como biólogo, não só como um homem trans, mas também como eu sou.”