Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Matheus de Moraes, Davi Pasqualetti e Vinicius Correa
Um dos voos comerciais mais longos que existem atualmente no mundo percorre cerca de 15 mil quilômetros. Sem realizar nenhuma parada, a aeronave sai de Singapura, na Ásia, sobrevoa parte do Japão, cruza o oceano Pacífico Norte, o Alasca e o Canadá, até, enfim, pousar em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Agora imagine percorrer um trajeto quase tão distante quanto esse apenas batendo suas próprias asas e de forma ininterrupta? Pois foi exatamente o que um fuselo (Limosa lapponica) fez em 2022.
A ave, que mede pouco mais de 25 centímetros de comprimento e pesa até 150 gramas, saiu do Alasca e voou sem realizar pausas para comer, beber água ou descansar por quase 14 mil quilômetros até chegar à Tasmânia, na Austrália. A longa viagem durou 11 dias – para efeito comparativo, o avião concluiu o seu trajeto em 18 horas e trinta minutos. Segundo o Guinness Book, essa foi a migração mais longa já registrada por um pássaro na história.
“A migração é o movimento cíclico e sazonal feito por diversas espécies de animais, de insetos a mamíferos, quando uma parte ou toda uma população deixa uma área com poucos recursos para outra mais farta. No caso das aves, é o deslocamento entre os locais de reprodução e de não-reprodução”, explica o biólogo e educador do Museu Biológico do Butantan Matheus de Moraes dos Santos. Em geral, os bichos que migram partem em busca de condições climáticas mais favoráveis ou com maior disponibilidade de alimentos, retornando tempos depois ao local de origem para iniciar novamente o processo reprodutivo.
Justamente o que foi feito pelo fuselo registrado no Guinness Book: depois de aproveitar as prolongadas horas de luz do dia do verão ártico para se reproduzir e alimentar a si e suas crias, ele e os demais indivíduos da espécie iniciaram uma epopeia rumo a pontos mais quentes do hemisfério Sul para fugir do rigoroso inverno da região polar.
O bem-te-vi-rajado é uma das espécies que voa para o Norte durante o inverno do Sul, em busca de temperaturas mais quentes (Foto: Matheus de Moraes)
Movimento migratório no território brasileiro
O Brasil é o país mais biodiverso do mundo. Só de aves, são quase 2.000 espécies registradas, sendo cerca de 10% migratórias, segundo o Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos. Além de ser uma área reprodutiva para diversos pássaros que realizam o deslocamento sazonal, o território brasileiro reúne pontos estratégicos que servem para descanso e alimentação – sem esses pit stops, muitos não conseguiriam atingir seu destino final e morreriam pelo caminho.
Boa parte das aves migratórias que não se reproduzem no Brasil fazem seus ninhos – ou seja, nidifica, como diz o termo usado na biologia – em áreas bastante remotas do globo, como na região polar da América do Norte e da Groenlândia, ou no extremo sul da América do Sul e da Antártida. Por conta disso, os turistas de asas que visitam regularmente o Brasil dividem-se entre visitantes de verão e de inverno.
Durante os meses de calor, o país recebe diversos representantes do grupo dos limícolas – como os maçaricos –, que chegam por aqui depois da temporada de reprodução na tundra ártica, bioma considerado o mais frio e seco do planeta. “São bichos que gostam de ficar no lodo, na lama das praias, rios e brejos, alimentando-se de pequenos moluscos. Mas quando o inverno polar chega e tudo congela, os recursos se tornam escassos e os indivíduos do grupo começam a se espalhar por diferentes partes do globo, sendo que muitos vêm parar aqui no nosso litoral”, afirma Matheus de Moraes.
O maçarico-de-papo-vermelho (Calidris canutus rufa), por exemplo, deixa o extremo norte do planeta e se lança em uma jornada de mais de 30 mil quilômetros rumo ao arquipélago da Terra do Fogo, localizado entre a Argentina e o Chile, realizando paradas estratégicas ao longo dos Estados Unidos e de todo o litoral brasileiro a fim de recuperar a energia necessária para seguir viagem até o destino final.
O pinguim-de-magalhães se reproduz na região patagônica e depois migra para o Uruguai e para as regiões Sul e Sudeste do Brasil (Foto: Davi Pasqualetti)
Com a chegada das estações mais frias ao hemisfério Sul, as aves do Norte iniciam sua jornada de volta, dando espaço para as espécies austrais aterrissarem por aqui. Uma delas é o famoso – e simpático – pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus), que após concluir o seu período reprodutivo na região patagônica, migra para o Uruguai e para as regiões Sul e Sudeste do Brasil em busca de alimento. “Por mais que aqui também seja inverno e as temperaturas estejam mais amenas, a disponibilidade de recursos ainda é bem melhor quando comparada à região extrema na qual a espécie forma seus ninhos”, observa o biólogo.
Também é nessa temporada mais geladinha que algumas aves migratórias voam do sul para o norte do continente, onde é mais quente. “É o famoso expresso Sul-Amazônia”, brinca o especialista do Butantan. Dentre os viajantes que embarcam nessa estão o suiriri (Tyrannus melancholicus), o bem-te-vi-rajado (Myodynastes maculatus), a peitica (Empidonomus varius) e a tesourinha (Tyrannus savana) – todos podem ser facilmente avistados em áreas urbanas, onde se alimentam de pequenos frutos e insetos, e descansam nas antenas, postes e telhados das casas.
O suiriri é comumente avistado em áreas urbanas (Foto: Matheus de Moraes)
Preparativos para a jornada
O trânsito de aves até o Brasil acontece por caminhos que são verdadeiras “rodovias aéreas”, organizadas em relação aos trajetos mais seguros e às correntes de vento, que ajudam a otimizar o voo. “As duas principais são as rotas do Atlântico, quando os pássaros vêm margeando a costa até chegar ao litoral brasileiro, e a Central, com o voo acontecendo sobre a região continental”, explica Matheus de Moraes.
Além desses, são conhecidos outros quatro percursos de entrada no país: rota do Nordeste, que se inicia no Maranhão, seguindo pelo interior até a costa da Bahia; rota do Brasil Central, começando na altura do arquipélago de Marajó (PA), de onde segue pelo centro do país até alcançar São Paulo; rota da Amazônia Central/Pantanal, com as principais chegadas pelos rios Negro, Branco e Trombetas, passando por Manaus e Santarém até o Pantanal; e Rota Amazônia Ocidental, que adentra o Brasil pelos Andes. A mesma espécie ou indivíduo pode chegar por um caminho, e ir embora por outro completamente diferente.
A decisão de migrar não é aleatória: a necessidade de mudança costuma ser despertada por diferentes gatilhos, sendo que muitos deles se relacionam às condições do ambiente, como temperatura, umidade e até disponibilidade de luz ao longo do dia – que altera os padrões de sono. Esses elementos desencadeiam modificações hormonais no organismo do animal, indicando que é chegada a hora de mudar de ares. Algumas espécies desenvolvem adaptações impressionantes para enfrentar as jornadas aéreas: os maçaricos, por exemplo, conseguem variar o tamanho de determinados órgãos para economizar energia e aumentar a capacidade de armazenamento de alimentos; já algumas aves de grande porte, como a águia-pescadora (Pandion haliaetus), se utilizam das correntes térmicas para voar de forma mais eficiente, reduzindo assim seu gasto energético.
Maçarico-de-papo-vermelho (Foto: Matheus de Moraes)
Para se orientar durante os longos trajetos, os pássaros usam vários tipos de “bússolas”, como o sol, as estrelas, o relevo e o próprio campo magnético da Terra. Muitas espécies até conseguem superar os 3.000 metros de altitude, como o falcão-peregrino (Falco peregrinus), uma ave de rapina de médio porte que vem da América do Norte para a América do Sul. Considerado um dos animais mais rápidos do mundo, ele é capaz de voar a mais de 300 km/h – um indivíduo da espécie bateu o recorde de caça mais alta já registrada ao capturar um batuiruçu-de-axila-preta (Pluvialis squatarola) a incríveis 2.881 metros de altitude.
Além da predação natural, a migração envolve uma série de riscos, inclusive aqueles provocados pela ação humana, como a caça ilegal e a colisão com prédios espelhados e hélices de parques eólicos. O aumento acelerado da temperatura do planeta, causado principalmente pelas mudanças climáticas, também representa uma forte ameaça, pois impacta os padrões de migração. “Dados já mostram que algumas espécies estão deixando de migrar e os tempos de deslocamento podem se alterar, comprometendo a disponibilidade de recursos. Isso significa que o bicho pode chegar cedo ou tarde demais para usufruir do alimento pelo qual procura”, alerta Matheus.
Flamingo-chileno foi flagrado próximo ao Rio Tietê (Foto: Vinicius Correa)
Outro fenômeno que pode ser observado são os chamados “indivíduos vagantes” ou “errantes”: aves que saem de sua rota original e pousam em locais inesperados. Um exemplo recente foi o aparecimento inédito de dois espécimes de flamingo-chileno (Phoenicopterus chilensis) às margens do Rio Tietê, no município de Suzano (SP). A hipótese é que os animais tenham se perdido do bando durante o deslocamento sazonal que faz pela América do Sul. No Brasil, a espécie tende a se restringir às porções mais ao sul do país.
Para Matheus de Moraes, os movimentos migratórios revelam a complexidade e a resiliência das aves. “São verdadeiras jornadas de sobrevivência, em que cada pássaro precisa superar desafios imensos para garantir sua existência”, conclui o biólogo.
Vem passarinhar!
Quem mora na cidade de São Paulo tem a chance de observar de pertinho algumas das aves migratórias do Brasil. Todo segundo sábado do mês, a equipe do Museu Biológico promove uma atividade de observação de pássaros ao longo de um agradável passeio pelas florestas do Parque da Ciência. Durante duas horas de caminhada, os participantes têm a oportunidade de avistar algumas das mais de 170 espécies de aves que o Instituto Butantan abriga – incluindo as migratórias bem-te-vi-rajado, suiriri e andorinhão-do-temporal (Chaetura meridionalis).
A caminhada começa bem cedinho, por volta das 7h da manhã, período em que as aves estão mais ativas. Depois do avistamento, os educadores promovem uma discussão entre os participantes, a fim de listar as espécies encontradas, esclarecer dúvidas e compartilhar curiosidades sobre os pássaros da região. Não é preciso ter nenhum tipo de experiência ou conhecimento prévio para participar da atividade.