Em 9 de outubro de 1899, o jovem médico Vital Brazil (1865-1950), de 34 anos, então assistente do Instituto Bacteriológico de São Paulo (atual Instituto Adolfo Lutz), embarcava para uma viagem que impactaria não apenas os rumos da sua vida como os da saúde pública brasileira. Pronto para cruzar a Serra do Mar, deixando a capital paulista com destino à cidade de Santos, no litoral, levava na bagagem microscópio, meios de cultura, pipetas e tubos esterilizados a fim de atender a uma complexa tarefa: descobrir se os inúmeros ratos que estavam aparecendo mortos na região das docas e armazéns do porto indicavam a chegada da temida peste bubônica ao Brasil.
Provocada pela bactéria Yersinia pestis, a doença era uma velha conhecida da comunidade médica e científica já naquela época. Responsável por deflagrar uma das pandemias mais letais da história da humanidade, a peste bubônica causou mais de 50 milhões de mortes em toda a Europa no século XIV, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Com uma taxa de mortalidade que varia de 30% a 60%, a peste pode provocar febre aguda, calafrios, dor de cabeça intensa, fraqueza, náuseas e vômitos; após alguns dias, há o aparecimento dos chamados “bubões”, gerados pela inflamação dos gânglios linfáticos.
Porto de Santos no início do século XX: fluxo era intenso com o embarque e desembarque de navios de carga e vapores que chegavam repleto de imigrantes oriundos da Europa
Cruzando continentes
A hipótese é que a enfermidade tenha chegado ao Brasil a bordo de navios portugueses por volta de setembro de 1899 – uma vez que o país europeu sofria com uma epidemia da doença e mantinha estreitas relações comerciais com sua antiga colônia, mesmo após a Proclamação da República. “Existia esse contexto de crescimento populacional intenso e repentino em algumas cidades brasileiras, com pessoas vindo sobretudo da Europa para trabalhar, o que facilitava a entrada e a disseminação de doenças que por vezes acompanhavam os viajantes nos vapores”, pontua a analista de documentação do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas (MUSPER) Maria Talib Assad.
Aparelhagem utilizada no processo de desinfecção, visando a contenção de doenças
Por conta disso, foi consolidado um protocolo: todas as pessoas que chegavam ao porto de Santos passavam por uma triagem e tinham os seus pertences desinfectados. Caso algo fosse diagnosticado, os viajantes eram colocados imediatamente em isolamento. Tal trabalho era executado por inspetores do Desinfectório Central, estrutura criada em 1893 e vinculada ao Serviço Sanitário do Estado de São Paulo – órgão que hoje equivale à Secretaria de Estado da Saúde –, então chefiado pelo médico e sanitarista Emílio Ribas (1862-1925). “Naquela época, acreditava-se que boa parte das doenças eram transmitidas de forma miasmática. Ou seja, por substâncias tóxicas e putrefatas presentes no ar, ou até pelo contato direto entre pessoas”, explica a bióloga e curadora da Coleção Entomológica do Butantan, Flávia Virginio.
Como o médico francês Paul Louis Simond (1858-1947) havia descoberto em 1898, a principal forma de propagação da peste bubônica acontece, na realidade, pela picada de pulgas infectadas que migraram de ratos para humanos. Foi por esse motivo que a primeira estratégia adotada pelo governo estadual para a contenção de novas doenças não foi suficiente para impedir a entrada da doença no país.
Designado para o trabalho em Santos, o jovem médico Vital Brazil levou apenas nove dias para confirmar as suspeitas sobre a chegada da peste no país
O trabalho de Vital Brazil e outros ilustres da ciência brasileira
Como assistente do Instituto Bacteriológico, Vital Brazil demonstrava curiosidade pela descoberta de novos tratamentos, dedicando atenção especial ao desenvolvimento dos chamados soros hiperimunes, usados até hoje para o tratamento da ação de toxinas, microrganismos e animais peçonhentos no organismo humano. Foi essa característica que o fez ser designado para a diligência de Santos, onde desempenhou papel crucial no diagnóstico rápido e assertivo da peste.
Lidando diretamente com os enfermos, Vital conduziu observações clínicas e realizou inúmeras coletas para conduzir análises de laboratório. Lançando mão de novíssimas técnicas de microbiologia, o médico tinha como objetivo encontrar a prova bacteriológica que confirmasse a presença do bacilo causador da doença. Os trabalhos eram realizados em um laboratório improvisado, estruturado em um dos quartos da Santa Casa de Santos, muitas vezes sob a supervisão de Adolfo Lutz (1855-1940), então diretor do Instituto Bacteriológico.
Nove dias após a chegada de Vital Brazil a Santos, em 18 de outubro de 1899, a epidemia de peste bubônica foi oficialmente declarada na cidade. “A característica epidemiológica, a observação clínica e a prova bacteriológica nos levam a concluir que a moléstia que estudamos em Santos é, sem dúvida alguma, a peste bubônica”, escreveu o médico na conclusão de seu relatório sobre a empreitada.
Sentados, da esquerda para à direita é possível identificar Victor Godinho, médico assistente do Instituto Bacteriológico de São Paulo que também atuou em Santos, Emílio Ribas e Vital Brazil, entre outros expoentes da ciência brasileira na época
Além de Vital Brazil, outros nomes de peso da ciência brasileira contribuíram para o enfrentamento do desafio. Um exemplo é o próprio Adolfo Lutz, que começou atuando da capital paulista e depois se juntou à caravana no litoral, sendo peça-chave no intercâmbio de informações com organizações do exterior. Entre outras funções, ele providenciou o envio de amostras para laboratórios de referência em países como França, Grã-Bretanha e Alemanha, que posteriormente corroboraram o correto diagnóstico do médico mineiro.
Alguns dias depois da oficialização da epidemia, em 23 de outubro de 1899, Oswaldo Cruz (1872-1917) – que havia retornado da França após dois anos estudando microbiologia, soroterapia e imunologia no Instituto Pasteur – desembarcou em Santos. Além de contribuir com os estudos da peste, ele foi essencial no tratamento do próprio Vital Brazil, que já se encontrava acamado com sintomas da doença quando o colega chegou do Rio de Janeiro. Diz a história – e os documentos oficiais – que Oswaldo Cruz comemorou a infecção do amigo, dizendo em alto e bom som: “Parabéns, Vital! Você está com a peste”. Afinal, o diagnóstico representava uma oportunidade única de investigação da moléstia.
Como diretor-geral do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, Emílio Ribas desempenhou papel diplomático na busca pelo chamado Soro de Yersin, que até então era a única possibilidade de tratamento da enfermidade. Diante dos estoques zerados no mundo e da falta de perspectiva de reposição, o médico sanitarista foi pessoalmente negociar a doação de ampolas do medicamento com o comandante de um vapor francês que havia aportado em Santos durante o período de crise e guardava um pequeno estoque do produto. O soro doado serviu para o tratamento dos primeiros doentes – inclusive do próprio Vital –, deixando uma boa impressão entre os especialistas.
Caça aos roedores: governo do estado pagava recompensa em dinheiro à população pela entrega de ratos no Desinfectório Central
Medidas de combate e contenção
Além da identificação precoce da doença, a rápida implementação de medidas de controle foi fundamental para conter a propagação da peste bubônica no território nacional. Entre as ações, foi imposta uma quarentena à cidade de Santos, o isolamento compulsório de doentes, a desinfecção de casas e a criação de postos de desinfecção, seguindo os protocolos da época – algumas das medidas foram bastante impopulares e houve resistência por parte da população, principalmente dos comerciantes.
A fim de combater a desinformação, o estado desenvolveu campanhas de comunicação, com a distribuição de folhetos e cartilhas educativas que eram entregues não apenas aos cidadãos brasileiros, como aos imigrantes recém-chegados. “Muitos desses materiais eram produzidos em inglês, francês, italiano e espanhol, além do português, e traziam orientações de higiene, sobre como agir em caso de suspeita da doença e até como montar ratoeiras”, relata Maria Talib Assad.
Inspetores do Desinfectório Central eram responsáveis pelas ações de desinfecção, designadas em diferentes partes do estado
Uma ação bastante particular foi o estímulo à captura de ratos entre a população. “O curioso é que a medida teve quase uma ação reversa, uma vez que o estado pagava 400 réis como recompensa pela captura dos ratos, mas teve que estabelecer uma multa muito maior para quem passasse a criar os roedores”, completa a analista de documentação do MUSPER.
No fim das contas, bastaram apenas três meses para que a epidemia de peste bubônica fosse, enfim, controlada na cidade de Santos. Entre outubro de 1899 e janeiro de 1900, cerca de 40 casos foram contabilizados, dos quais 26 tiveram um desfecho positivo e outros 15 acabaram evoluindo para óbito. No dia 27 de janeiro de 1900, o porto de Santos foi oficialmente declarado como “limpo”.
“Pouquíssimos casos da doença surgiram em outras cidades litorâneas do Brasil ao longo daquela década. A combinação de estratégias adotadas se mostrou bastante eficiente considerando o contexto da época. Como resultado, a peste nunca conseguiu adentrar o interior do país”, reforça Flávia Virginio.
Na imagem, equinos são imunizados contra a peste para produção do soro antipestoso
Criação do Instituto Butantan e os legados da peste
A agilidade empregada na contenção da doença também se repetiu na consolidação de uma produção local de soro antipestoso. Preocupado com a dificuldade de importação do medicamento e com a sombra da peste que ainda pairava no litoral paulista, Emílio Ribas convenceu o governo de São Paulo a criar um instituto para ficar a cargo da fabricação do produto – a mesma ação foi realizada nacionalmente, com a criação do Instituto Soroterápico Federal, atual Bio-Manguinhos/FioCruz.
Por indicação de Adolfo Lutz, o estado adquiriu a Fazenda Butantan para atender tal finalidade. O local foi escolhido por ser afastado do centro da cidade, do outro lado do Rio Pinheiros, minimizando possíveis riscos de contaminação, e por possuir uma estrutura básica que podia ser adaptada para as atividades de laboratório. Vinculada ao Instituto Bacteriológico em um primeiro momento, a nova estrutura pública de saúde teve Vital Brazil como diretor, muito por conta da experiência adquirida durante o período da peste bubônica em Santos e por seu interesse prévio no desenvolvimento de soros hiperimunes.
Em 11 de junho de 1901 – mesmo ano em que o laboratório ganharia o nome de Instituto Serumtherápico, precursor do atual Instituto Butantan – foi entregue o primeiro lote do soro antipestoso. O produto foi distribuído na capital, em Santos e Sorocaba. Paralelamente a essa produção, Vital Brazil apostou no desenvolvimento da vacina antipestosa, também disponibilizada à população paulista naquele mesmo período. Com a queda no número de casos de peste bubônica, a fabricação de ambos produtos foi descontinuada no final da década de 1940.
Nas décadas seguintes, o Butantan se transformaria em um grande produtor de imunobiológicos, contribuindo para o controle e erradicação de inúmeras doenças – entre elas, tuberculose, febre tifoide, febre amarela, varíola, poliomielite e sarampo. Há poucos anos, assim como durante a peste bubônica, agiu rapidamente para a contenção da pandemia de Covid-19 no país, não apenas disponibilizando à população brasileira a primeira vacina contra o vírus, mas investindo também em ações de vigilância epidemiológica para uma melhor compreensão da doença.
“Tudo isso faz parte de um legado, de um aprendizado, que começou há mais de 100 anos. Claro que os soros e as vacinas são extremamente importantes, mas isso só existe quando existe o cuidado de olhar um vetor, entender a transmissão da doença, sua epidemiologia. Esse foi o principal ensinamento que a peste bubônica nos deixou”, finaliza Flávia Virginio. Atualmente, o Butantan segue reunindo esforços de pesquisa básica e aplicada que podem levar ao controle de doenças transmitidas por vetores, tais como pulgas, carrapatos e mosquitos – caso da dengue e da chikungunya.
Referências:
Cadernos de Histórias da Ciência – Volume 10
Inventário do Fundo Emílio Ribas
Relatório de Atividades do Instituto Butantan – 1901
Revista do Instituto Adolfo Lutz – Notícias sobre a epidemia de peste em Santos
Simpósio Nacional de História – Quando a peste aportou no Brasil
* Além das fontes citadas, também contribuiu com a matéria a pesquisadora voluntária Ivone Yamaguchi, do Centro de Memória do Butantan.
Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Acervo Instituto Butantan/Centro de Memória (imagens 3 e 7); Acervo Instituto Butantan/Museu de Saúde Pública Emílio Ribas (imagens 2, 5, e 6); autoria não identificada/Acervo Instituto Moreira Salles (imagem 1); Acervo Museu Casa de Vital Brazil (imagem 4)