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Ciência e cultura ancestral podem conviver no combate a doenças, diz primeira indígena vacinada contra Covid-19 no Brasil

Vanuza Kaimbé visitou o Butantan e falou sobre como combateu a Covid-19 e o negacionismo em sua aldeia em prol da saúde de seu povo


Publicado em: 29/09/2023

No começo de 2020, a técnica de enfermagem e assistente social Vanuza Kaimbé, de 53 anos, vivia o medo de o SARS-CoV-2 dizimar a população de sua aldeia multiétnica Filhos dessa Terra, localizada em Guarulhos (SP). Ciente da vulnerabilidade dos indígenas diante do vírus então pouco conhecido, ela clamou pelas redes sociais e para o poder público por condições de isolamento, testagem e vacina. Foi desacreditada e chamada de “doida”, mas não desistiu. A projeção lhe rendeu a chance de ser a primeira indígena brasileira a ser imunizada contra a Covid-19 com a vacina CoronaVac, produzida no Instituto Butantan, em 17 de janeiro de 2021. 

“A ciência venceu o preconceito, a desinformação e o retrocesso. Eu estava lá muito feliz. Quando tomei a vacina não senti nada, só emoção e gratidão”, disse ela durante a palestra Relatos da Vacina, realizada em 21/9, durante o evento Primavera dos Museus no Parque da Ciência

Vanuza, proveniente da etnia Kaimbé, nasceu e cresceu na aldeia Massacará, situada no município de Euclides da Cunha, no sertão da Bahia. Aos 18 anos, veio para São Paulo com o objetivo de estudar Enfermagem para se tornar “uma mulher de branco”. 

 

A assistente social Vanuza Kaimbé visitou o Museu da Vacina do Instituto Butantan

Ao ver o já pouco dinheiro sumir com o confisco das poupanças no começo dos anos 90, precisou adiar o sonho. Trabalhou como babá, no comércio e em um banco, até se tornar técnica de enfermagem aos 30 anos. O sonho da formação universitária veio com o programa Pindorama, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que oferece bolsas de estudos para indígenas. Vanuza se formou em Assistência Social pela instituição e, desde então, focou seu trabalho na causa indígena.

“Nós, indígenas, não entramos na universidade pensando em comprar carro, casa. Pensamos em levar políticas públicas para nossas aldeias, para o nosso território.”

Prevenção

Com o avanço da pandemia no Brasil, seu engajamento pela saúde indígena ganhou novos contornos e a luta pela sobrevivência começou a passar também pelo enfrentamento do negacionismo. 

Nos primeiros dias de 2020, Vanuza já temia a proximidade da aldeia do aeroporto de Guarulhos, onde intuía que chegariam pessoas infectadas pela Covid-19 no pós-Carnaval. Não deu outra. O primeiro caso de SARS-CoV-2 no Brasil foi notificado em São Paulo em 26 de fevereiro de 2021, proveniente de um homem que viajara à Itália, então epicentro da pandemia. No mês seguinte foram notificados os dois primeiros casos em Guarulhos, em uma profissional de saúde e em um jovem que havia retornado da Europa.

“[Eu dizia]: tenho muito medo da Covid-19 porque o meu povo tem o DNA diferente, é o que mais morre por doença respiratória, o que mais morre de tuberculose. Eu não tenho conhecimento científico, mas tenho conhecimento da vida. Sei como chegaram outras doenças que quase exterminaram o meu povo e não poderia ficar calada. Vamos fazer a prevenção, alguma coisa. Mas falaram que eu estava exagerando, que eu estava doida, que eu tinha que me preocupar com a dengue”, conta. 

O que Vanuza dizia infelizmente se confirmou. Um ano depois, ao menos 45 mil indígenas haviam sido infectados e pelo menos mil haviam morrido pela Covid-19 no país, segundo informações do portal Emergência Indígena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Os dados, porém, ainda são considerados subnotificados.

Vanusa Kaimbé palestrou no Parque da Ciência Butantan

Lavagem das mãos

Após os primeiros casos confirmados de Covid-19 em São Paulo, Vanuza conseguiu convencer os moradores da aldeia a fecharem suas portas para visitas, liberando-as apenas para residentes e profissionais de saúde. À época, com os moradores impedidos de vender artesanato – ocupação da grande maioria –, Vanuza usou mais uma vez as redes pedindo doação de alimentos e máscaras para “não morrerem de Covid nem de fome”.

Diante da dificuldade crescente, sem vacinas à disposição, assolados pelo sofrimento humanitário e econômico, Vanuza se agarrou à fé pedindo uma salvação.

“Eu pedi muito aos meus ancestrais para mostrar o caminho da cura e, antes de chegar a vacina, eu tive um sonho com Deus que dizia que o único jeito de se prevenir era com a água, que era o remédio mais poderoso do mundo, que alimentava, que lavava o nosso corpo por dentro e por fora. Aí eu entendi que a prevenção era pela higiene, pela lavagem das mãos”, explicou.

Apesar de todas as precauções, Vanuza contraiu o SARS-CoV-2 em abril de 2020, mas sobreviveu apesar de alterações no olfato e no paladar. Nem todos os parentes tiveram a mesma sorte: dois primos morreram pela doença. Ao saber da existência de vacinas e de que elas chegariam ao país, também sonhou em ser imunizada e se propôs a entrar na fila da vacinação.

“Quando surgiu a vacina eu falei: eu vou ser a primeira! Se eu tiver que ficar três dias acampada, igual muitos brasileiros ficam para assistir a um cantor famoso, eu vou acampar. Eu não quero morrer, eu não quero pegar o Covid nunca mais. Se me chamar para vacinar, eu vou”, lembrou.

Vacina x negacionismo

O que Vanuza não esperava era que, mesmo com tanto sofrimento, muitos dos seus passaram a duvidar das vacinas, o que a deixava incrédula. “Vocês se vacinaram a vida toda! Agora a ciência não presta mais? A vacinação tem que começar pelos indígenas porque nós somos a população com maior vulnerabilidade. A gente está retrocedendo?”, questionava.

Ao ser convidada para ser a primeira indígena a ser contemplada com o imunizante, sentiu um misto de alegria e de responsabilidade. Achou importante guardar a informação, mesmo para os vizinhos, algo difícil na sua cultura totalmente focada na oralidade. E, desde então, reforçou seu discurso pró-vacina.

Vanuza Kaimbé em instalação do Museu da Vacina

“Eu fui escolhida por ser técnica de enfermagem, assistente social e por ser uma defensora do Sistema Único de Saúde e da ciência. [Para os negacionistas] eu falei: gente, nós somos da época que se tomava vacina que tem a marca no braço, que se vacinava no dia da vacina”, disse.

Vanuza reconhece que sua imunização foi um marco para a população indígena e agradeceu ao Instituto Butantan por fornecer o imunizante.

“O Butantan salvou vidas! Morreu bastante gente, mas desses 700 mil brasileiros, com certeza se não fosse o Butantan teria morrido muito mais. Sou grata todos os dias por esse estado onde eu moro há 35 anos, que distribuiu vacina para o Brasil inteiro. Esse marco é do estado de São Paulo e do Instituto Butantan.”

Ciência e cultura ancestral

Passado o pior momento da pandemia, Vanuza continua em sua luta pela valorização da saúde e cultura indígenas em coexistência com a ciência.

“Não é porque defendo a água que vou desprezar a importância da ciência, a importância da vacina, a importância da medicação. E respeito também os ensinamentos dos meus ancestrais, e não desprezo os meus chás para a febre para as crianças também”, disse. 

Em tempos de desinformação, Vanuza acredita que a sabedoria indígena deveria ser mais bem valorizada. Para isso ela dá o exemplo do maracá, típico instrumento indígena que ela carregava durante a palestra, e que simboliza o “globo, a mãe terra, que sempre soubemos que era redonda”.

“A gente não precisa apagar uma cultura para que a do outro exista. A gente não precisa viver a cultura ocidental e desprezar a cultura tradicional. A ciência tradicional, e os conhecimentos ancestrais estão todos em harmonia”, reflete. 

No cinema 3D do Museu da Vacina: "Se não fosse a vacina do Butantan eu não estaria aqui hoje vendo essa maravilha".

 

Reportagem: Camila Neumam

Fotos: José Felipe Batista