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Por que não podemos alimentar ou passar a mão em animais silvestres? Contato ameaça a saúde animal e pode transmitir doenças

Morte de mulher infectada por raiva após ataque de sagui em Pernambuco acende alerta; especialista explica os cuidados necessários para conviver com animais silvestres


Publicado em: 10/02/2025

Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Renato Rodrigues, Shutterstock

 

O caso recente de uma mulher de 56 anos que morreu em Pernambuco após ser infectada pelo vírus da raiva, ao ser mordida por um sagui, chama atenção para os perigos do contato próximo com animais silvestres. Entre 2010 e 2024, o Ministério da Saúde registrou 48 casos de raiva humana no Brasil, sendo que em dois deles a doença foi transmitida por primatas, como os saguis – um em 2023, outro em 2024. Como a presença de fauna silvestre nas cidades brasileiras é cada vez mais frequente, é essencial seguir alguns cuidados para evitar a transmissão de doenças e não colocar em risco nem a saúde humana, nem a animal. 

Segundo a bióloga e diretora do Museu Biológico do Instituto Butantan, Erika Hingst-Zaher, o principal ponto de atenção é não fazer contato direto, já que saguis, capivaras, morcegos, entre outros animais silvestres, podem carregar patógenos, além de serem protegidos por fazerem parte da nossa fauna. “A proximidade favorece a propagação de diversas doenças. Gambás, por exemplo, são reservatórios da Doença de Chagas, aves podem ser reservatórios da gripe aviária, e saguis e morcegos são reservatórios do vírus da raiva”, diz. Isso significa que, além de transmissões isoladas como o caso da mulher de Pernambuco, esses animais podem ser fonte de potenciais surtos – um exemplo são os recentes casos de gripe aviária registrados nos Estados Unidos.

Doenças que migram de animais para humanos, conhecidas como zoonoses, são responsáveis por cerca de 60% das infecções emergentes, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). A transmissão acontece pelo contato direto com os animais e suas secreções e excretas, como a saliva, as fezes e a urina, ou de forma indireta, por meio de vetores (mosquitos e pulgas), água ou alimentos contaminados. Em caso de acidentes com animais, deve-se procurar atendimento médico imediatamente.

 

Saguis podem ser transmissores do vírus da raiva

 

No Butantan, Erika coordena um projeto de pesquisa sobre os impactos dos saguis, primatas originários de outros biomas brasileiros (por isso considerados exóticos à Mata Atlântica) que se estabeleceram e se multiplicaram no parque do Instituto e na área verde da Universidade de São Paulo (USP) há muitos anos. Uma das frentes do trabalho é conscientizar a população sobre a coexistência responsável com esses animais. No caso dos saguis, a chance de haver transmissão de doenças (tanto do humano para o animal, como do animal para o humano) pode ser ainda maior.

“Por também serem primatas, é muito mais fácil haver vírus que infectam ambas as espécies. Queremos incentivar as pessoas a observar, fotografar e se conectar com a natureza através dos animais do parque, mas com responsabilidade. Eles não representam nenhum perigo para nós; eles lá, e nós aqui”, destaca.

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Outro cuidado importante é não alimentar animais silvestres como os saguis – nem com frutas, e muito menos com alimentos ultraprocessados. Além de poder aumentar a população da espécie exótica, que vai se reproduzir mais e ameaçar espécies nativas, esse ato prejudica a saúde do próprio animal. Alimentá-los pode alterar seu metabolismo e causar doenças como obesidade, diabetes e colesterol alto, e também interfere em seu comportamento natural, fazendo com que se aproximem demais dos humanos.


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Zoonoses podem ter alta letalidade

Entre as principais doenças transmitidas por animais está justamente a raiva, causada por um vírus que afeta o sistema nervoso central. A transmissão ocorre por meio de mordidas, arranhões ou contato com a saliva do animal infectado. Em humanos, os sintomas são mal-estar, inquietação, aumento da salivação, irritabilidade e confusão mental. Se não for tratado imediatamente com o soro antirrábico ou vacina antirrábica, o paciente pode sofrer morte cerebral. Na história dos casos de raiva humana no Brasil, apenas duas pessoas sobreviveram; todas as outras foram a óbito, segundo o Ministério da Saúde. Entre os anos 1990 e 2000, o país registrava uma média de 40 casos por ano. Com a vacinação, tanto de animais domésticos como humanos, esse número foi reduzido para 3,2 casos por ano.

Outra infecção viral de preocupação é a gripe aviária, que atinge tipicamente aves silvestres e tem causado surtos nesses animais nos últimos três anos. Durante suas migrações, as aves podem contrair e disseminar o vírus. A transmissão para humanos pode acontecer de forma esporádica, por meio do contato próximo com a ave infectada ou suas fezes. Em 2024, nos Estados Unidos, mais de 60 casos humanos de gripe aviária foram relatados, segundo os Centros de Controle de Prevenção de Doenças. A doença é grave e pode matar cerca de 50% dos infectados.

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A leptospirose, causada por bactérias do gênero Leptospira, também é transmitida pela proximidade com animais – nesse caso, pelo contato com a urina de ratos infectados ou com água e lama contaminados. No início da doença, o paciente pode ter febre de início súbito acima de 38°C, calafrios, dor de cabeça, dor muscular (principalmente na panturrilha), falta de apetite, náusea e vômitos. Casos graves são mais raros e podem provocar hemorragia pulmonar.


Vacina contra a raiva pode ser recomendada em caso de acidente com animal (Foto: Renato Rodrigues)


O animal nem sempre é transmissor

Embora muitos animais possam ser hospedeiros de determinados patógenos, eles nem sempre são transmissores. Um exemplo é a febre amarela: durante o último surto no Brasil, em 2017, muitos acreditavam que a solução seria eliminar dos ambientes urbanos os macacos, que também são acometidos pela doença. No entanto, assim como os humanos, esses primatas são apenas vítimas da enfermidade e não transmitem o vírus. A transmissão da febre amarela acontece por meio da picada de mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes

“Os bugios, por exemplo, muito sensíveis à febre amarela, funcionaram como ‘sentinelas’, pois sua mortalidade nos avisou de que a doença estava circulando próxima ou dentro das cidades”, aponta Erika. 

A principal medida de prevenção à febre amarela é a vacina, disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). O Ministério da Saúde orienta que devem se imunizar as pessoas que vivem em áreas de risco e que vão viajar para regiões de mata em áreas onde o vírus circula.

O caso da Doença de Chagas é semelhante do ponto de vista da transmissão: a infecção é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, que é transmitido pela picada do barbeiro e não por animais infectados. Quando o inseto pica uma pessoa ou um animal infectado (como gambás, por exemplo), e depois pica outra pessoa, ele pode transmitir a doença. Não existe vacina para Doença de Chagas, mas há tratamento específico disponível.

Outro risco do contato com animais silvestres é a febre maculosa, transmitida pela picada do carrapato-estrela (Amblyomma sculptum) infectado com a bactéria do gênero Rickettsia. Essa espécie ocorre no Sudeste do Brasil, principalmente no interior de São Paulo. Um dos animais que o carrapato costuma parasitar é a capivara, comumente encontrada em ambientes urbanos. Embora o animal não seja o transmissor, ele pode carregar o carrapato, portanto o contato próximo deve ser evitado.

 

Saúde única

Segundo Erika, a presença de fauna silvestre no ambiente urbano também é importante para reconectar as pessoas com a natureza – e isso gera inúmeros benefícios à saúde. Uma revisão publicada em 2018 na revista Current Environmental Health Reports aponta que a exposição a áreas verdes é benéfica para a saúde mental, podendo ajudar a reduzir sintomas de depressão.

A especialista reforça que cuidar dos animais e do meio ambiente é, também, cuidar de nós mesmos. “Esses cuidados são fundamentais do ponto de vista de saúde única, porque todos nós dependemos das árvores, da água, do ar, dos animais e de todo o ambiente que nos cerca para sobreviver.”