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Entenda por que a OMS quer reduzir pela metade os casos de envenenamento por picada de cobra até 2030

Acidente ofídico acomete milhões, mata milhares e causa impacto econômico incontrolável em todo o mundo


Publicado em: 21/03/2023

O envenenamento por picada de cobra coloca em risco 5,8 bilhões de pessoas, acomete quase 3 milhões e mata pelo menos 138 mil todos os anos no mundo, além de causar prejuízos econômicos incalculáveis, segundo a Organização Mundial da Saúde. Por isso, desde 2017, o acidente ofídico, ou ofidismo, entrou na lista das 20 doenças tropicais negligenciadas (DNTs) e um plano estratégico foi elaborado para  reduzir as mortes em 50% até 2030, segundo meta da OMS. Nesta lista figuram outras doenças comuns no Brasil e em outros países pobres ou em desenvolvimento, como a doença de chagas, dengue e chikungunya, que, apesar de evitáveis, ainda matam ou causam sequelas.

Segundo a OMS, as DNTs afetam mais de 1 bilhão de pessoas no planeta que vivem principalmente em áreas marginalizadas, rurais e urbanas pobres ou em zonas de conflitos. São doenças tratáveis, mas que podem se agravar pela desassistência e pela falta de condições sanitárias. Isto é, são bilhões de pessoas no planeta que podem ser picadas por uma cobra durante atividades diárias como cuidar da plantação, ir a pé para escola, buscar água, ir ao banheiro, pastorear animais, etc.

A víbora-das-árvores (Atheris squamigera) é uma cobra venenosa que pode ser encontrada na África ocidental e central

“O ofidismo pode, obviamente, acometer qualquer pessoa, mas é sobretudo um agravo à saúde relacionado com a pobreza, que acomete na maioria populações invisíveis, como indígenas, agricultores, ribeirinhos que vivem em localidades distantes, sem condições de vida precárias e dificuldade de acesso aos soros antiofídicos”, esclarece a diretora técnica de produção do Centro Bioindustrial do Butantan, Fan Hui Wen, responsável por toda a cadeia de produção dos soros antiveneno do Butantan e que participou do grupo que elaborou o plano da OMS. 

A administração de soros antiofídicos é a forma mais conhecida e cientificamente comprovada de tratar o envenenamento por picada de serpentes e outros animais, e quanto antes for administrado, maior a chance de evitar o óbito e complicações de saúde. 

Isso porque o envenenamento por picadas de serpentes como jararaca e cascavel (as de maior ocorrência no Brasil), por exemplo, pode matar ou causar sequelas na região da picada ou em órgãos à distância (como renais) quando não tratados a tempo. De acordo com a OMS, para cada pessoa que morre após uma picada de cobra, outras quatro ou cinco apresentam incapacidades como mobilidade restrita ou amputação, além de transtorno de estresse pós-traumático.

Escassez de soros

Porém, um dos grandes gargalos mundiais do controle do ofidismo é a disponibilidade dos soros para quem mais precisa. 

“O que temos de precioso para reverter o ofidismo, o soro antiofídico, está cada vez mais escasso no mundo. Na África, continente mais afetado pelo ofidismo, temos poucos laboratórios que produzem para todo o continente”, esclarece Fan.

Por isso, a OMS entendeu que a inclusão dos acidentes ofídicos na lista de DNTs era importante para a doença ter mais visibilidade e consequentemente mais esforços para minimizar seus riscos. “Estar na lista faz com que a OMS direcione propostas para os países reduzirem o impacto do ofidismo sobre as populações, além de mobilizar a comunidade científica e os produtores a desenvolverem e produzirem mais soros”, afirma a diretora do Butantan.

O Instituto Butantan começou sua produção de soros há mais de cem anos e atualmente produz 12 soros hiperimunes, parte deles contra venenos de espécies de jararaca, cascavel, coral verdadeira, entre outras serpentes, além de soros que neutralizam o veneno de escorpiões, aranhas, lonomias (lagartas) e os soro antidiftérico, antitetânico, antibotulínico AB e antirrábico. Contando com a única linha de produção de soros hiperimunes com a certificação de Boas Práticas de Fabricação da Anvisa no país, o instituto fornece atualmente cerca de 600 mil frascos-ampolas ao Ministério de Saúde, que os distribui no Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Soro antibotrópico, produzido pelo Instituto Butantan, é indicado contra envenenamento por picada de jararaca

Políticas públicas e educação

O impacto socioeconômico do ofidismo também é um problema relevante na maioria dos países atingidos, pois afeta não apenas as vítimas, mas muitas vezes suas famílias, principalmente em comunidades pobres em países de baixa e média renda que não têm acesso aos serviços de saúde, descreve o documento “Snakebite Envenoming – A strategy for prevention and control” publicado pela OMS em 2019, com diretrizes para países controlarem o avanço do ofidismo. 

“Os acidentes ofídicos levam uma carga grande de morbidade (taxa de incidência da doença) e mortalidade (taxa de óbitos pela doença). Quando não morrem, muitos ficam com sequelas e incapacidade para o trabalho e que obviamente impactam a renda da família”, diz Fan.

Para se chegar à meta de redução de 50%, a OMS sugere maior participação de gestores públicos em campanhas de educação sobre os riscos, e o encorajamento da comunidade para procurar por serviços médicos em caso de envenenamento. 

“Os primeiros socorros, o tratamento eficaz e acessível fornecido por uma equipe médica bem treinada e a reabilitação permitirão que muitas vítimas recuperem mais rapidamente uma boa saúde e uma vida produtiva”, destaca a OMS.

Em 2020, a OMS criou o Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas, celebrado em 30 de janeiro, para que as nações reflitam sobre o sofrimento causado por estes tipos de doenças e reforcem políticas para sua eliminação, erradicação ou controle.

“É uma doença que existe tratamento com tecnologia conhecida e, então, é preciso ter políticas assertivas de enfrentamento. No caso do ofidismo, não vamos conseguir erradicar, mas dá para controlar e reduzir os casos graves, já que os soros são eficazes quando administrados precocemente. Tanto que a letalidade dos grupos que recebem o soro é muito menor do que entre os que não recebem”, diz Fan.

 

Cascavel (Crotalus durissus) surge em meio a mata

Ofidismo no Brasil

No Brasil, assim como nos outros países afetados – a maioria na África e no sul asiático - o ofidismo é considerado um problema de saúde pública, sobretudo na Amazônia, onde boa parte da população vive em regiões de mata ou floresta e onde há menor acesso à serviços médicos, devido à dificuldade de locomoção em regiões distantes dos grandes centros. 

Em 2021, o Ministério da Saúde registrou 31 mil acidentes com picadas de serpentes no Brasil, e 121 mortes. Destes, o envenenamento por picada de jararacas são responsáveis por 70% dos acidentes; as cascavéis por 9%; as surucucus 1,5%; e as corais verdadeiras com menos de 1% dos registros. De acordo com a pasta, grande parte desses acidentes incidem em grupos de maior risco, como trabalhadores rurais e populações indígenas. No entanto, o último levantamento feito no país registrou aumento significativo de acidentes ofídicos com cascavel no Rio Grande do Sul, devido ao desmatamento.

A pessoa picada por uma cobra deve ser levada a um centro de referência ou unidade de saúde mais próxima para receber o soro antiofídico específico. O Hospital Vital Brazil, localizado no Instituto Butantan, na cidade de São Paulo, é referência no atendimento de acidentes com animais peçonhentos, e atende pelo SUS ou quem chegar diretamente. O hospital também orienta profissionais de saúde onde encontrar o soro adequado para o acidente ofídico em diferentes locais do Brasil e do mundo.