Disputa, sedução, conquista, envolvimento, ghosting. À primeira vista, parece até enredo de romance com pitadas de drama, mas a descrição é, também, um resumo certeiro de como pode se desenrolar a rotina de acasalamento das serpentes. Afinal, garantir a perpetuação da linhagem na natureza está longe de ser algo mecânico e burocrático, e compreende uma série de práticas curiosas.
“Quando estudamos o assunto, percebemos que há muitas similaridades com os rituais que acontecem entre os próprios seres humanos. Às vezes o negócio vira uma confusão danada! É muito interessante”, brinca a pesquisadora científica e diretora técnica do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEV), Selma Almeida Santos, referência no estudo da reprodução das serpentes.
Curioso para saber mais? Neste Dia do Sexo (6/9), convidamos você a maratonar essa trama quente, estrelada por personagens de sangue frio.
Machos de cobra-coral em combate: o vencedor tem prioridade de acesso à fêmea
Romance no ar
Tudo começa com a chegada do período reprodutivo, que entre as espécies brasileiras costuma acontecer nos meses de outono e inverno, quando as fêmeas estão com o desenvolvimento folicular ativo. Nessa fase, as células recebem acréscimo de vitelo, uma reserva de nutrientes, e posteriormente, transformam-se em óvulos que poderão ser fecundados.
“Elas também estão produzindo bastante estradiol, um importante hormônio sexual, e passam a exalar determinados feromônios que confirmam sua receptividade para a cópula”, explica a técnica de apoio à pesquisa científica e tecnológica do Laboratório de Herpetologia do Butantan e mestre em reprodução de serpentes pela Universidade de São Paulo (USP) Samira Vieira.
Os machos, que estão em pico de testosterona, sentem-se “atraídos” pelos feromônios femininos e passam a se deslocar na natureza em busca de uma possível parceira. Mas a concorrência pode ser grande. É aí que o jogo, ou a luta, da sedução começa de fato.
Medindo forças
Nesse vaivém de animais, um encontro entre dois machões torna-se iminente. No Brasil, quando isso acontece entre certos representantes das famílias Elapidae, como as corais-verdadeiras (Micrurus altirostris); Viperidae, como a caiçaca (Bothrops moojeni), a jararaca-do-norte (Bothrops atrox) e a jaracuçu (bothrops leucurus); além de determinadas cascavéis, uma das saídas adotadas pelos rivais é lutar.
Durante a dança combate – forma como o ritual é conhecido no mundo científico –, os machos se enrolam entre si, tentando baixar a cabeça de seu opositor. As disputas variam bastante de uma espécie para outra. “As corais-verdadeiras não se levantam muito e fazem um movimento de tesoura em sentido horizontal. Já as cascavéis quase não se entrelaçam, disputando por altura. É como se um macho quisesse mostrar que é maior que o outro”, explica Selma Santos. Literalmente, é um rala e rola – até por isso, muitos leigos acabam se confundindo, e identificam erroneamente a cena de batalha como uma cópula.
A derrota acontece por exaustão, quando um dos machos abandona a “briga”, conferindo ao outro a prioridade de acesso a uma possível fêmea que esteja nas imediações. “No geral, os vencedores são escolhidos para a cópula pois são vistos como ‘geneticamente melhores’. O objetivo é gerar descendentes mais fortes e, assim, aumentar as chances de sobrevivência dos filhotes na natureza”, explica Samira Vieira.
Diferenças entre a dança combate das cascavéis e das cobras-corais
A conquista
Mas sagrar-se vitorioso em uma dança combate nem sempre é garantia de acasalamento. Isso porque, para que a penetração aconteça, a fêmea precisa levantar sua cauda e liberar a cloaca – cavidade que dá acesso ao aparelho reprodutor, assim como ao canal intestinal e urinário. Algumas serpentes, por exemplo, ficam bem enrodilhadas em um canto, demonstrando desinteresse e desencorajando a aproximação do macho.
Mesmo aquelas que estão no clima precisam ser estimuladas pelo parceiro. Geralmente, o macho vai rastejando e esfregando o seu “queixo” sobre o corpo e pela lateral da fêmea. “Existem muitas estratégias de corte descritas na literatura científica, algumas envolvem até ‘mordida no pescoço’”, comenta a especialista do Laboratório de Herpetologia.
Outras cobras, como as da família Pythonidae, podem fazer uso de seus esporões para “massagear” a fêmea. Parecido com uma “unha” e escondido entre as escamas, supõem-se que o membro seja resquício de uma pata que o animal teve no passado.
Macho de cobra-espada morde o corpo da fêmea durante o acasalamento
Na hora “H”
O órgão masculino fica guardado na cauda do macho e é exposto no momento do ato. É por isso que, durante a cópula, a região da cauda do casal fica entrelaçada. Enquanto o macho é dotado de dois hemipênis, cada um localizado paralelamente ao outro e ambos com um formato similar ao da letra “V”, a fêmea possui vagina bilobada, ou seja, dividida em dois canais internos, e também parecida com um “V”.
Para iniciar a cópula em si, o macho realiza pequenos “tremeliques” na área caudal até conseguir penetrar um de seus hemipênis no órgão reprodutor da fêmea – como em um sistema de plugue e tomada, o encaixe é perfeito. Detalhe: para que fiquem bem grudadinhos durante a relação, o órgão masculino é revestido de pequenos espinhos.
Recentemente, a bióloga Megan Folwell, da Universidade de Adelaide, na Austrália, encontrou um tecido excitável, próximo da cauda das fêmeas da cobra-da-morte (Acanthophis antarcticus). Batizada de hemiclitóris, a área lembra o formato de um coração e é bastante vascularizada, aumentando de tamanho quando estimulada. Segundo a pesquisadora, a descoberta já foi observada em outras espécies e pode ser um indício de existência de prazer durante os rituais de acasalamento.
Quando começa a cópula em si, o macho sai de cima da fêmea e os dois ficam unidos pelas caudas, muitas vezes com as cabeças direcionadas para lados opostos. “Diferentemente dos primatas, as serpentes não têm controle da ejaculação. É mesmo algo difícil, uma maratona que pode demorar horas”, diz Selma Santos. De acordo com a especialista, há registros de atos que se estenderam por mais de dez horas.
Sem sentimentos, promessas e expectativas, quando tudo, enfim, se acaba, cada cobra segue para um lado e dá continuidade à sua vida. A fêmea, inclusive, pode acasalar com diversos machos em uma temporada, dando à luz cobrinhas de diferentes pais em uma mesma ninhada.
Isso é possível porque, após a penetração, o útero de algumas serpentes pode se contrair, armazenando o esperma masculino até que seus óvulos estejam completamente maduros, prontos para serem fecundados. Por mais que o acasalamento aconteça durante o outono e o inverno, é só com a chegada da primavera que o período fértil do animal se estabelece.
Em um processo interno, que carece de mais estudos e observações, as fêmeas realizam uma triagem e selecionam os melhores espermatozoides. Em resumo, acasalar com mais de um macho também pode garantir maior variabilidade genética da ninhada, assim como filhotes mais fortes.
Agregação: vários machos tentam copular com uma única fêmea de jiboia
Bolo de cobras
Outro ritual bem diferente da dança combate é a chamada agregação. Nessa prática, diversos machos são atraídos pelo feromônio de uma fêmea e tentam copular com ela ao mesmo tempo em uma grande briga reprodutiva. “É uma disputa maluca. Existem registros de agregações com muitos machos tentando penetrar uma única serpente”, conta Samira Vieira.
O fenômeno, que já foi avistado entre sucuris, jiboias e diversas espécies da família Colubridae, também envolve práticas curiosas. Uma delas é a inserção de um “plugue de gelatina” na cloaca da fêmea. Chamado de cinto de castidade, a secreção faz com que os outros machos envolvidos na disputa deixem de ficar excitados. O dispositivo já foi encontrado em surucucus-pico-de-jaca (Lachesis muta) e é objeto de um grupo de estudo coordenado pela diretora do LEEV.
Nessa confusão, também entram em ação os “she-male snakes”: machos que apresentam na pele um lipídio encontrado tipicamente nas fêmeas, confundindo assim seus opositores. Enquanto os desavisados concentram seus esforços em copular com o macho travestido, este, por sua vez, toma a fêmea verdadeira do bololô para si, conseguindo penetrá-la.
Fêmea com fêmea
Ao conduzir estudos com a famosa jararaca-ilhoa (Bothrops insularis), endêmica da Ilha da Queimada Grande, no litoral paulista, a equipe de pesquisadores do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan notou, além da vagina, a presença de um hemipênis em diversas fêmeas da espécie.
Fêmea da jararaca-ilhoa (Bothrops insularis) com hemipênis
Os cientistas também observaram algo interessante durante situações de corte na natureza: por mais que as fêmeas sejam maiores que os machos, as serpentes envolvidas no ritual não apresentavam diferença significativa de tamanho. Além disso, não havia evolução para a cópula.
Diante dos indícios, a hipótese defendida por alguns especialistas é que, naquela região, a maioria dos cortejos envolvam, na realidade, dois exemplares de fêmea. Essa espécie de “pseudocópula” poderia acelerar o amadurecimento dos folículos da serpente e, consequentemente, o processo de maturação sexual da espécie para a temporada de acasalamento.
“Fazemos expedições à ilha há mais de 20 anos e só em 2019 uma de nossas alunas conseguiu registrar um acasalamento. É uma possibilidade que ainda carece de testes para ser totalmente confirmada, mas definitivamente muito interessante”, finaliza Selma Santos.
Reportagem: Natasha Pinelli
Vídeo: imagens de Selma Santos e Bruno Costa; edição de Marília Ruberti/Comunicação Butantan
Fotos: todas as imagens foram gentilmente cedidas pela pesquisadora Selma Santos