Portal do Butantan

Seguindo os navios: da Bulgária ao Brasil, pesquisador atuou no diagnóstico da Covid-19 e hoje estuda vírus emergentes no Butantan

Especialista em virologia, Svetoslav Nanev teve uma infância ligada à ciência e decidiu construir uma carreira do outro lado do mundo


Publicado em: 27/11/2024

Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan

 

Em meio a béquers, pipetas e tubos de ensaio, Svetoslav Nanev Slavov cresceu assistindo às aulas da avó materna, professora de Química em uma escola de Veliko Tarnovo, norte da Bulgária. Lá passou boa parte da infância, embora tenha nascido na cidade portuária de Varna. Foi assim, acredita ele, que acabou surgindo um cientista em uma família de engenheiros. Hoje, aos 43, do outro lado do Atlântico, Svetoslav estuda vírus emergentes no Instituto Butantan e trabalha com diagnóstico de doenças infecciosas, tendo exercido papel fundamental na Rede de Laboratórios para Diagnóstico do Coronavírus SARS-CoV-2 durante a pandemia.

Influenciado pela avó e pelo interesse em saúde, o então adolescente decidiu cursar Ciências Biológicas e conquistou uma vaga na Universidade de Sófia "St. Kliment Ohridski". Assim que começou a faculdade, pegou gosto pela Bioquímica – o que o levou se dedicar a investigar a função e a atividade de enzimas do fígado em uma iniciação científica na Academia de Ciências da Bulgária. Quando estava prestes a se formar, já tinha quase certeza que faria mestrado na mesma área, mas algo chamou mais a sua atenção enquanto pesquisava oportunidades.

“Acabei me interessando muito por virologia, pois acreditava que poderia ter um impacto mais direto na saúde humana. Mais tarde, essa acabou se tornando minha principal linha de pesquisa”
 


Svetoslav adentrou o universo dos vírus no Instituto de Patologia Experimental da Academia de Ciências da Bulgária. Seu projeto de mestrado, defendido em 2005, envolveu o estudo de substâncias capazes de atuar contra tumores induzidos por vírus, em especial o vírus do sarcoma de Rous, que causa câncer em galinhas. Existem alguns tumores humanos, como câncer de colo de útero e câncer de fígado, que também podem ser causados por vírus – respectivamente, o HPV e os das hepatites B e C.

Decidido a seguir a carreira de pesquisador, ingressou no doutorado no Centro Nacional de Doenças Infecciosas e Parasitárias, instituição referência em diagnósticos e ligada ao Ministério da Saúde do país. Lá, trabalhou com o vírus BK, que era emergente na época: esse patógeno, que geralmente é adquirido na infância e não causa sintomas, pode ser reativado na fase adulta em pessoas com o sistema imune comprometido, especialmente aquelas que fizeram transplante de rim. “O BK pode ficar em estado de latência durante anos no trato urinário. Ao ser reativado em pacientes transplantados, pode causar a rejeição do órgão”, explica o pesquisador.

Foi nesse período que Svetoslav teve o primeiro contato com o diagnóstico de doenças infecciosas. Como o vírus ainda era pouco conhecido, a equipe de pesquisa desenvolveu um teste diagnóstico, e também investigou as características da doença e a prevalência da infecção em pacientes com transplante renal. Os resultados obtidos foram apresentados em sua defesa de doutorado, em 2009 – uma época de muito estresse, mas muita satisfação.

O modelo de defesa então estabelecido na Bulgária envolvia uma comissão de 22 especialistas responsáveis pela avaliação, que poderiam votar “sim”, “não” ou “branco”. Não era permitido obter mais de dois votos em branco ou mais de um “não”, e a apresentação deveria ter exatos 30 minutos.

“Eu treinei de duas a três vezes por semana, durante meses, em um auditório do instituto. Estava tão nervoso que nem dormi na noite anterior. Quando recebi os 22 ‘sim’, foi um grande alívio”

 

Quando criança, Slav sempre acompanhava a avó Mariya Martinova nas aulas de Química (Arquivo pessoal)


Um novo mundo

Quando defendeu a tese, Svetoslav já tinha em mãos uma proposta para fazer o pós-doutorado no Instituto de Doenças Infecciosas de Roterdã, na Holanda. No entanto, uma oportunidade no Brasil, anunciada em um site que costumava acompanhar, despertou sua curiosidade: para a área de doenças infecciosas com impacto na hemoterapia na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). A vaga o fez lembrar das diversas histórias que ouvia de seu orientador do doutorado, o professor Zlatko Kalvatchev, que havia trabalhado por muitos anos na América do Sul com o diagnóstico e tratamento do HIV

Sem muita pretensão de ser selecionado, Svetoslav decidiu enviar uma proposta de projeto. Para sua surpresa, o documento foi aprovado e ele foi chamado para uma entrevista no Brasil, para onde acabou se mudando em 2009.

“Quando descobri que consegui a vaga, minha família ficou em choque. Até hoje, as pessoas me perguntam como vim parar no Brasil e eu não sei responder. Mas acredito que nada é por acaso”

Não foi fácil ultrapassar as barreiras linguísticas e culturais que separavam os dois países. Para facilitar o contato com os novos colegas, Svetoslav, que passou a ser chamado de Slav, Svet ou até Flávio, fez um curso de Língua Portuguesa. Aos poucos, o búlgaro foi sendo substituído pelo português, e o jeito quieto foi dando lugar a uma personalidade mais aberta e comunicativa – o que considera um ponto positivo. O acolhimento que recebeu nos lugares por onde passou também foi importante para esse processo.

“Eu tinha um caderno onde anotava as palavras que não sabia. Fazia a tradução do búlgaro para o português na minha cabeça e, hoje, quando volto para casa, faço o oposto – e às vezes até esqueço algumas palavras do meu idioma ou uso palavras que já estão em desuso”, brinca.

De lá para cá, Svetoslav seguiu firme na carreira de pesquisador: publicou mais de 120 artigos científicos, atuou na linha de frente da pandemia de Covid-19, contribuindo para a realização de diagnósticos e análise de variantes, e chegou a coordenar atividades de um projeto da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Laboratório da Fronteira, que visa expandir o acesso ao diagnóstico e monitoramento de doenças em regiões de fronteira.


 

Metagenômica e controle de vírus emergentes

Na USP de Ribeirão Preto, Svetoslav trabalhou com doenças virais transmissíveis pelo sangue, em parceria com o Hemocentro do município. Um dos vírus estudados foi o parvovírus B19 – o cientista foi um dos pioneiros a publicar artigos sobre a prevalência desse patógeno em doadores de sangue no Brasil. O vírus causa erupção cutânea em crianças e pode levar à morte fetal quando transmitido durante a gestação.

“Ganhei bastante experiência com diversos métodos de diagnóstico e com sequenciamento genético, algo que ainda não tinha visto na Bulgária. Naquela época, havia poucos sequenciadores na Europa”

O ponto de virada foi em 2018, quando o pesquisador participou de um treinamento de Sequenciamento de Nova Geração durante um intercâmbio no Instituto Nacional de Transfusão Sanguínea de Paris, na França. O conhecimento foi trazido para a equipe de Ribeirão Preto e passou a ser aplicado no laboratório. Foi quando Svetoslav começou a trabalhar com a metagenômica: análise de todos os materiais genéticos presentes em uma amostra.

A proposta era usar a metagenômica para rastrear potenciais vírus emergentes em amostras de sangue de doadores. Isso era feito usando bolsas de sangue de pessoas que apresentaram alguma sintomatologia após a doação e que, por esse motivo, seriam descartadas. Ao analisar esse material, era possível descobrir até vírus não conhecidos pela ciência e para os quais não havia diagnóstico específico.

“A metagenômica mostra todo o conteúdo de material genético que há dentro de uma amostra sequenciada – de DNA humano ao de bactérias e vírus. Por isso, a técnica também permite identificar vírus desconhecidos”

De acordo com uma revisão publicada pelo pesquisador em 2022, a metagenômica viral também pode contribuir para evitar casos raros de transmissão de vírus emergentes em transfusões de sangue, ajudando a identificar infecções assintomáticas que não seriam detectadas nos testes convencionais.

 


A pandemia e a chegada ao Butantan

A emergência global da Covid-19 fez todos os esforços dos pesquisadores, em especial dos virologistas, se voltarem para combater o novo coronavírus – um patógeno então desconhecido pela ciência. Como a velocidade de disseminação da doença era alta, um dos primeiros embates foi suprir a alta demanda de diagnósticos que sobrecarregava os centros de referência. 

Por meio da FMRP-USP, Svetoslav teve uma colaboração importante nessa frente ao integrar a Rede de Laboratórios para Diagnóstico do Coronavírus SARS-CoV-2, coordenada pelo Instituto Butantan. Em 2021, o cientista se transferiu para São Paulo e foi incorporado ao Laboratório de Ciclo Celular do Butantan, na época responsável pelos sequenciamentos das amostras e diagnósticos. Desde então, vem trabalhando com o monitoramento de vírus emergentes usando metagenômica.

“Foi um trabalho muito intenso e também uma fase de muito crescimento. Sou grato ao Butantan por ter me recebido”

Svetoslav também fez parte da Rede de Alerta de Variantes do SARS-CoV-2, que mais tarde daria origem ao Centro para Vigilância Viral e Avaliação Sorológica (CeVIVAS), projeto voltado para o monitoramento dos vírus da dengue, gripe e Covid-19 no Brasil. O centro tem parceria com laboratórios centrais (LACENS) dos estados de Alagoas, Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, São Paulo e no Distrito Federal.

“Curiosamente, quando pesquisei sobre o Brasil, ainda na Bulgária, li muito sobre o Butantan. Lembro de ter pensado como seria trabalhar lá um dia – e hoje estou aqui”


 

Viagens, cultura e um pouco de adrenalina

Quando criança, Svetoslav ficava admirando o enorme painel que havia no porto de sua cidade natal, que mostrava a localização dos navios no mapa-múndi. Jamais teria imaginado que, anos depois, conheceria mais de 50 países e moraria do outro lado do planeta. Viajante de carteirinha, quando está longe dos laboratórios, gosta de fazer trilhas e se aventurar em atividades radicais, como mergulho e rapel.

“O mundo é tão grande. Acredito que conhecer outras culturas e modos de comportamento humano nos ajuda a abrir a mente e nos faz crescer”

Foi essa mentalidade e a disposição de se abrir para o novo que o trouxe da Europa para a América do Sul ainda jovem, aos 28 anos. Na mesa de sua sala, carrega lembranças da família – uma foto da mãe e um cartão postal de Veliko Tarnovo, onde sua avó mora até hoje. Sempre que pode, visita os familiares na Bulgária, onde diz que “recarrega suas energias” e mata a saudade do joelho de porco e do pimentão recheado, especialidades da avó.

Aos 43 anos, com 15 deles morando no Brasil, Svetoslav afirma que continua aprendendo diariamente. Acredita que é importante enxergar o melhor em cada pessoa e se permitir aprender com as diferenças. Para o futuro, espera seguir contribuindo para a ciência e ter sempre a oportunidade de se conectar com novas culturas.

“A pesquisa é uma área desafiadora, mas também cheia de aprendizados. Espero poder contribuir cada vez mais para a preparação contra vírus emergentes e entendimento das doenças infecciosas”

 

Slav ao lado da irmã, Mariya Naneva Slavova, e da mãe, Antoaneta Ivanova Slavova, suas grandes inspirações (Arquivo pessoal)