A primeira etapa dos ensaios clínicos da ButanVac, candidata a vacina contra a Covid-19 que está em estudo pelo Instituto Butantan, foi finalizada e os resultados preliminares de segurança são positivos. Em breve, as conclusões consolidadas serão encaminhadas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que acompanha todo o processo e, com o aval dela, as fases 2 e 3 serão iniciadas.
A previsão é que o novo ensaio clínico seja concluído ainda em 2022. Até lá, porém, mudanças serão feitas para adaptar o estudo ao atual momento da pandemia. As principais referem-se ao protocolo do ensaio clínico (o que inclui o número de participantes da pesquisa, por exemplo) e ao próprio objetivo do estudo: nas fases 2 e 3, a eficácia da ButanVac será avaliada não em relação a uma população não vacinada (como os ensaios clínicos de novos imunizantes tradicionalmente fazem), mas quanto à sua eficiência para potencializar a proteção de quem já completou o esquema vacinal – ou seja, na dose de reforço.
“O desenvolvimento da ButanVac tem uma necessidade de adaptação por causa dos ciclos da doença, das novas cepas, da incidência. Precisa evoluir junto com a pandemia e com suas nuances”, conta o diretor médico do Butantan, Wellington Briques. “A população deve entender que a gente vai conviver com esse vírus por muito tempo”, acrescenta ele.
Um estudo que evoluiu com a pandemia
Em julho de 2021, quando o Butantan anunciou a pesquisa da ButanVac, o protocolo que havia sido aprovado com a Anvisa era um modelo clássico que mostraria a capacidade de uso primário da vacina em quem nunca tomou o imunizante. O desenho era um ensaio de fase 1/2 duplo cego dividido em três etapas. Na primeira etapa seria avaliada a segurança e seleção de dose em 418 voluntários de um centro de pesquisa de Ribeirão Preto; nas etapas seguintes, seria avaliada a resposta imune de 5 mil voluntários. Em todas as etapas estava prevista a existência de grupos placebo – ou seja, uma parcela dos participantes receberia uma vacina “de mentira”, sem efetividade, para estabelecer as bases de comparação.
Com o avanço da imunização e da própria Covid-19 no Brasil, tornou-se insustentável manter um protocolo que previa grupos placebo. Isso porque essas pessoas, por não receberem a vacina, estariam expostas a um risco muito maior de morte do que o resto da população – protegida graças à campanha nacional de imunização. Sem contar que seria cada vez mais difícil encontrar voluntários que ainda não tinham sido vacinados.
“A primeira fase foi feita junto com o avanço da vacinação pelo PNI [Programa Nacional de Imunização]. E como naquela época o avanço estava muito rápido e o estudo pedia que os voluntários nunca tivessem tomado vacina e não tivessem Covid, o número de pessoas disponíveis foi diminuindo”, explica o médico e consultor do Butantan, Eduardo Motti. “Quando você tem mais transmissão é melhor para analisar a eficácia da vacina, mas as pessoas podiam escolher entre participar do estudo e tomar vacina no posto”, completa.
Era preciso fazer alterações no protocolo da pesquisa e adaptar a ButanVac para outro momento da pandemia: aquele em que toda a população estaria vacinada, mas no qual o vírus continuaria circulando e desenvolvendo variantes.
Como foi a fase 1 e o que mudou
Em junho de 2021, quando foram abertas as pré-inscrições para os interessados em participar do ensaio clínico, mais de 90 mil pessoas se candidataram. Quando o estudo foi iniciado no Hemocentro de Ribeirão Preto, porém, a maioria dos interessados não atendia aos critérios da pesquisa. Além disso, a faixa etária da vacinação pela campanha nacional de imunização era cada vez menor, e o ensaio precisava de pessoas de todas as idades.
Para completar a fase 1, houve a ampliação das cidades participantes da pesquisa para além de Ribeirão Preto, aproveitando locais próximos onde a vacinação estava menos adiantada. Assim, foram envolvidos os municípios de Guaxupé-MG (em agosto), São Sebastião do Paraíso-MG, Itamogi-MG e Piracicaba-SP (em setembro). Voluntários que não tinham tido Covid ou sido vacinados foram selecionados para participar da pesquisa.
Outra medida foi abrir o cego rapidamente e encerrar o placebo até outubro. Ou seja: quem estava no grupo de comparação passou a receber CoronaVac e não mais placebo, para eliminar o risco da exposição ao SARS-CoV-2 o mais rápido possível. Dessa forma, os 327 voluntários da fase 1 receberam ButanVac ou CoronaVac ainda em 2021, em datas muito próximas às que seriam vacinados na campanha nacional de imunização.
Atualmente, as equipes envolvidas no ensaio clínico estão terminando de computar os dados da fase 1 para encaminhar à Anvisa. A agência, com as informações em mãos, vai analisar e dizer se tem algum questionamento. Os dados preliminares são bons e ajudaram a definir a dose que será utilizada nas próximas etapas – todas as dosagens utilizadas nessa etapa apresentaram um bom perfil de segurança.
A ButanVac como dose de reforço para a pandemia que temos atualmente
A ciência ainda não sabe se precisaremos de doses de reforço anuais (também chamadas de “booster”) contra o SARS-CoV-2. É frequente a comparação entre a influenza e a Covid-19, mas os vírus causadores dessas doenças têm comportamentos diferentes. O influenza sofre mutações com bastante frequência e, por isso, a vacina da gripe precisa ser atualizada a cada ano para ser capaz de combater as novas cepas em circulação. Já a evolução do coronavírus não está tão clara. Ainda não há certeza de que haverá mais mutações ou que será preciso mudar o vírus contido no imunizante, atualizando-o. “O que se vê é que as vacinas produzidas hoje conferem uma proteção contra a ômicron com mais doses”, lembra Eduardo Motti.
Por isso, entender como funciona uma dose de reforço, e não uma vacina em um cenário sem pandemia, é um objetivo mais alinhado ao cenário atual. A dose de reforço tem sido adicionada a todos os ensaios clínicos de imunizantes atualmente em desenvolvimento, tanto no Brasil quanto fora. “O que a gente tem visto de vários ângulos diferentes, imunogenicidade, neutralização de anticorpos, é que o booster tem um papel muito importante de manter o sistema imunológico em alerta durante o ano para o SARS-CoV-2”, ressalta Wellington Briques.
Por esse motivo, as etapas seguintes da fase 1/2 inicialmente previstas foram canceladas e, em seu lugar, um novo protocolo será submetido à Anvisa prevendo a utilização da ButanVac como dose de reforço. Esse encaminhamento será feito depois que os resultados da fase 1 forem informados à agência regulatória.
As próximas etapas dos ensaios clínicos da ButanVac – fase 2 e 3
Para que a ButanVac possa ser avaliada como dose de reforço, uma das mudanças a serem feitas no ensaio clínico é a exclusão do placebo e a adoção de um comparador ativo em todas as etapas – a CoronaVac, vacina do Butantan e da farmacêutica chinesa Sinovac atualmente em uso no Brasil.
A avaliação entre o desempenho dos dois imunizantes do instituto já estava prevista desde o início dos ensaios clínicos. A diferença é que isso vai ser feito em voluntários que já estão com o esquema vacinal completo. Por isso, um conhecimento adicional que a pesquisa trará é o desempenho da CoronaVac na dose de reforço no Brasil.
Além disso, outro possível desdobramento das fases 2 e 3 será entender se os anticorpos da ButanVac funcionam contra a variante ômicron do SARS-CoV-2, a cepa mais incidente no Brasil e no mundo atualmente. Essa conclusão poderá ser obtida por meio de um estudo exploratório e experimental paralelo inserido no ensaio clínico.
As fases 2 e 3 continuarão sendo realizadas no Hemocentro de Ribeirão Preto e em outros centros de pesquisa. O estudo avança somente com o aval da agência reguladora: ou seja, a fase 3 só será iniciada quando os resultados da fase 2 forem conhecidos. Mas antes disso tudo, a agência precisa aprovar o novo protocolo das fases 2 e 3, que deve ser encaminhado em breve.
Por que desenvolver uma nova vacina quando já há tantas aprovadas?
A ButanVac é uma vacina relativamente inovadora e mais simples, se comparada às de RNA mensageiro. Além disso, é produzida com ovos embrionados de galinha, o que faz com que seu custo de produção seja mais baixo – é a mesma plataforma usada na vacina contra a influenza (gripe), a mais difundida do mundo, e uma especialidade do Butantan: o instituto produz anualmente mais de 80 milhões de doses da vacina da gripe.
Isso quer dizer que a ButanVac será totalmente fabricada no Brasil, sem depender da importação de Insumo Farmacêutico Ativo (IFA). “Estamos vendo na pandemia como é importante ter vacina e ser rápido na produção de vacinas.”, explica Briques. Em uma situação em que todo o mundo precisa da mesma vacina e na qual a produção é limitada, o fornecedor vai decidir para quem ele vai vender. E quando se tem capacidade de produzir e distribuir vacinas sem depender de fornecedor externo, o combate a uma pandemia, epidemia ou surto é muito mais rápido e efetivo. “Para o Brasil, que tem uma população muito grande, é importante esse controle do ponto de vista de custo e disponibilidade”, completa o diretor médico do Butantan.
Em teoria, outra vantagem da ButanVac é que ela poderia ser atualizada com novas cepas, da mesma forma que a vacina da influenza. Essa hipótese, no entanto, ainda não foi estudada a fundo.
Sobre a ButanVac
A ButanVac, chamada internacionalmente de NDV-HXP-S, é desenvolvida a partir da inoculação de um vírus modificado da doença de Newcastle que contém a proteína Spike do SARS-CoV-2 estabilizada. Como este vírus infecta aves e é inofensivo para humanos, ele se replica muito bem em ovos embrionados de galinhas.
A tecnologia do vírus da doença de Newcastle foi criada por cientistas da Icahn School of Medicine no Hospital Mount Sinai, em Nova York, enquanto a proteína S estabilizada do SARS-CoV-2 com tecnologia HexaPro foi desenvolvida na Universidade do Texas em Austin.
A partir do momento que a vacina se mostrou viável, a organização PATH Center for Vaccine Innovation and Access, com o apoio da Fundação Bill & Melinda Gates, estabeleceu os contatos com fabricantes de vacina de países emergentes. Os organismos públicos que fazem parte do consórcio internacional para desenvolvimento da ButanVac são o Instituto de Vacinas e Biologia Médica do Vietnã (IVAC); a Organização Farmacêutica Governamental da Tailândia (GPO); e o Butantan, que concentra 80% da capacidade de produção do consórcio.
Se for provada segura e efetiva nos testes com pessoas, a ButanVac tem potencial de elevar em mais de 1 bilhão por ano a atual oferta de imunobiológicos contra a Covid-19, especialmente nos países em desenvolvimento, que enfrentam mais dificuldades para obter vacinas.